DO LIVRO "VIVER SÓBRIO"
Uma companheira de A.A. lembra-se de que, mesmo durante a pior fase de sua carreira na bebida, nunca perdeu a fé. “Eu tinha uma crença firme e inabalável... na desgraça”, explica ela. “Toda manhã, meu primeiro pensamento consciente quase sempre era: Oh! Meu Deus, só queria saber que novas dificuldades vão me atingir hoje!”.
Quando alguém batia à porta, ela estava certa de que era qualquer coisa desagradável. Tinha certeza de só poder esperar que o correio lhe trouxesse cobranças e outras más notícias. E, se o telefone tocava, ela suspirava, na expectativa de algo desagradável.
Um dispêndio tão enorme de energia em cogitações negativas é familiar a muitos de nós. Lembramos de nossa negra disposição mental durante o nosso próprio alcoolismo ativo. Parte dela é verdade, podia ser efeito farmacológico do álcool, que é uma droga depressora. Quando eliminamos a última gota de álcool de nosso organismo, grande parte de nossa melancolia se dilui junto.
Todavia, o hábito de pensar de maneiras tão neuroticamente deprimentes pode continuar com alguns de nós até aprendermos a reconhece-lo e a desenraiza-lo cuidadosamente.
Isso não é uma receita de otimismo insensato. Não pretendemos fazer crer que as dificuldades não têm sentido, nem negar que todo mundo se defronta com montanhas a escalar de vez em quando. O desgosto dói, de fato, assim como tantas outras mágoas.
Contudo, agora que estamos livres do álcool, temos muito mais controle de nosso pensamento. Há uma faixa mais ampla de pensamentos em mentes não mais anuviadas. Os pensamentos que escolhemos para passar qualquer período de 24 horas podem influenciar fortemente em nossos sentimentos naquele dia – alegres e saudáveis ou sombrios e desalentados.
Desde que nossos pensamentos, em grande parte, costumavam estar intimamente associados com o nosso estilo de vida alcoólica, verificamos que valia a pena examinar cuidadosamente os nossos hábitos de pensar e buscar outras formas diferentes de utilizar a nossa mente.
Os exemplos que seguem podem não servir exatamente ao seu caso; porém, mesmo que as palavras sejam novas, talvez seu ânimo o faça reconhecer o tom emocional que os acompanha. Alguns são intencionalmente exagerados, a fim de tornar o assunto indiscutivelmente claro. Outros podem, à primeira vista, parecer triviais. Muitos de nós verificamos, todavia, que pequeninas mudanças fáceis são um bom ponto de partida para uma grande e sólida recuperação.
Quando nossa caçula cai, bate a cabeça e apronta um berreiro, é bastante fácil verificar se ela está ferida gravemente ou somente assustada. Depois, podemos escolher: ou gritarmos histericamente porque a criança se feriu ou se assustou e lamentar sobre o que poderia ter acontecido ou, então, permanecermos calmos, consolar a criança e agradecer por nada ter acontecido.
Quando nossa avozinha de 90 anos, há muito doente e infeliz, vem finalmente a falecer, novamente temos de escolher. Podemos insistir em que a unia coisa a fazer é encher-nos de desgosto e mágoa pelo desenlace ou revolver-nos de culpa – e, possivelmente, beber em ambos os casos. Ou podemos, além de lamentar o ocorrido, lembrar que ela realmente teve uma vida longa, quase sempre boa e feliz; que nós tentamos ser bons para ela e assegurar-lhe o nosso afeto permanente; e que seu sofrimento e infelicidade terminam agora. É duvidoso que ela gostasse de que usássemos sua morte como desculpa para embriagar-nos e pôr em perigo a nossa saúde.
Quando, por fim, conseguimos visitar um lugar com que há muito sonhamos, podemos fixar-nos nos inconvenientes de nossas acomodações e do tempo, nos belos dias que já se foram ou no fato de termos apenas alguns dias ou semanas para aproveitar; ou podemos agradecer por termos finalmente conseguido visitar aquele local e continuar enumerando, mentalmente, as alegrias que podemos encontrar, se as procurarmos.
Seria bom precaver-se contra nossa tendência de dizer: “Sim, mas...” em resposta a uma afirmação otimista, lisonjeira ou positiva. A boa sorte de um amigo, sua aparência jovem ou a participação de uma celebridade em prol de uma obra social podem tentar-nos a dizer de mau-humor: “Sim, mas...” Ora, este modo de pensar é bom para alguém, inclusive nós mesmos? Não podemos deixar que algo de bom realmente aconteça? Não podemos ficar satisfeitos com o fato sem tentar diminuir sua importância?
Os que tentam parar de fumar compreendem que duas possibilidades lhes são abertas: continuar lamentando sobre a dificuldade de conseguir: “Desta vez, dá certo, também”. “Olha, que praga, acabo de acender outro!”; ou desfrutar de uma profunda aspiração livre da fumaça do cigarro, quando pensamos nele, alegrando-nos de já termos passado uma hora sem uma tragada e, mesmo, quando inconscientemente acendemos um cigarro, alegrando-nos de joga-lo fora sem o fumar até o toco.
Se um de nós ganha só R$ 10.000,00 numa loteria cujo prêmio maior é de R$ 100.000,00 o certo é ir, tranqüilamente, receber o prêmio e não mostrar amargura por ter perdido a sorte grande.
Continuamente, encontramos oportunidade de fazer escolhas consideradas semelhantes, e nossa experiência nos convence de que o sentimento de gratidão é muito mais salutar e torna mais fácil permanecer sóbrio. Será uma surpresa agradável descobrir que não é difícil cultivar o hábito da gratidão se nos esforçarmos um pouco.
Muitos de nós relutamos em tentar. Mas os resultados, tivemos de admitir, falaram por si mesmos. Pode doer, a princípio, conter o comentário cínico na ponta da língua. Pode ser que tenhamos de engolir duas vezes antes de emitir uma observação positiva, daquelas que chamamos de açucaradas quando bebíamos. Logo, porém, fica mais fácil e pode tornar-se uma força poderosa e confortadora em nossa recuperação. A vida foi feita para ser desfrutada, e nós nos dispomos a desfruta-la plenamente.
Folheando as memórias de nosso passado de bebida, alguns de nós distinguimos outra manifestação de negativismo. Mas, este, igualmente, é um tipo de comportamento que muitos aprenderam a modificar, e a mudança em nossos atos produziu também melhores atitudes e uma melhora em nossos sentimentos.
Por alguma razão, gastamos uma porção de tempo pensando, observando ou falando a respeito de como outras pessoas, em tão grande número, eram teimosamente erradas ou faltosas. (Se realmente o eram ou não, é irrelevante para nossa bendita mudança de sentimentos atualmente.) Para alguns, inicialmente, há uma boa disposição experimental de esperar e observar, de aceitar por um momento a hipótese de que a outra pessoa realmente poderia ter razão. Antes de precipitar-nos a julgar, contivemos nossa argumentação, ouvimos atentamente e observamos o resultado.
Pode ser que estejamos errados, pode ser que não. Não é isso que importa aqui. Qualquer que seja o resultado, livramo-nos, pelo menos temporariamente, da compulsiva necessidade de sempre ter razão ou de ser vencedor. Verificamos que um sincero “não sei” pode ser rejuvenescedor. Dizer: “Estou errado, você tem razão” é animador, quando estamos suficientemente em paz conosco mesmos para não nos aborrecermos por estar de fato errados. Isso nos deixa tranqüilos e agradecidos por nos abrirmos para novas idéias.
Os melhores cientistas estão sempre atentos a novos indícios que comprovem que suas teorias estão erradas, a fim de poderem eliminar quaisquer noções falsas e aproximarem-se da verdade definitiva que estão buscando.
Quando conseguimos uma abertura semelhante, verificamos que nosso negativismo imediato começa a evaporar. Talvez uma explanação possa esclarecer entre o desejo de estar sempre com a razão (o negativismo de considerar quase todo mundo errado) e a liberdade de estarmos nos próprios errados – para abraçar e usar novas idéias ou outra ajuda, a fim de permanecer sóbrios.
Muitos de nós, quando bebíamos, estávamos profundamente convencidos de que nossa maneira de beber era inofensiva. Não éramos, necessariamente, de tocar no assunto. Mas, quando ouvíamos um religioso, um psiquiatra ou um membro de A.A. falar sobre o alcoolismo, éramos rápidos a observar que nossa maneira de beber era diferente, que nós não precisávamos fazer nenhuma das coisas que aquelas pessoas sugeriam. Ou, mesmo que pudéssemos admitir um pouco de dificuldade com a bebida, estávamos certos de poder dar um jeito nós mesmos. Assim, fechamos a porta à informação e ao auxílio. E atrás dessa porta nossa bebedeira continuou, naturalmente.
Nossas dificuldades tiveram de ser terríveis e tivemos que começar a sentir-nos bastante desesperados antes de abrir-nos um pouquinho e deixar entrar um pouco de luz e socorro.
Para milhares de nós, uma das lembranças mais vividas que a sabedoria de “ser agradecido” incorpora é a recordação do que originariamente pensamos e dissemos a respeito de Alcoólicos Anônimos, logo que ele nos chamou a atenção.
“É ótimo para eles, mas eu não estou tão ruim assim, portanto não é para mim”.
“Já encontrei alguns ex-membros de A.A. bêbados em bares. Pelo que eles dizem, estou certo de que não funciona para mim também”.
“Conheci um cara que entrou no A.A. Transformou-se num abstêmio rígido, fanático e chato”.
“Esse negócio de Deus e freqüentar reuniões não é comigo. De qualquer modo, nunca fui membro de nada”.
Ora, a honestidade nos faz reconhecer que despendemos mais tempo concentrando-nos naquelas opiniões negativas e reforçando nossos próprios motivos para beber do que realmente analisando o A.A. com espírito aberto.
Nossa investigação em torno dele dificilmente foi científica. Ao contrário, foi superficial e pessimista – uma pesquisa sobre coisas das quais não gostar.
Nem conversamos com muitos dos membros sóbrios nem lemos com atenção a extensa bibliografia do A.A. ou sobre ele. Se não gostamos de algumas coisas ou pessoas que no começo encontramos no A.A., desistimos. Tínhamos tentado, não tínhamos? (Lembra-se do homem que disse que não gostava de ler? Ele já tinha lido um livro e não gostado dele!).
Está claro, agora, que podíamos ter agido diferentemente. Podíamos ter investido algum tempo em selecionar as coisas de que gostamos no A.A., maneiras que podíamos adotar, afirmações e idéias com que concordamos. Podíamos ser gratos pelo fato de o A.A. receber visitantes ocasionais e não exigir que ingressássemos precipitadamente. Podíamos ter agradecido pelo fato de o A.A. não ter taxas, nem mensalidades, nem a exigência de adesão a quaisquer doutrinas, regras ou ritos. Se alguns membros tagarelas não eram de nosso agrado, podíamos ter ficado contentes por tantos outros que se mantinham quietos ou falavam mais ou menos como nós gostávamos. Podíamos ter continuado tentando descobrir porque tantos proeminentes especialistas profissionais têm recomendado o A.A., repetidamente através dos anos. Ele deve estar fazendo alguma coisa certa!
Permanecer sóbrio, aprendemos, pode reduzir-se apenas a esta escolha. Podemos passar horas pensando nos motivos que queremos, precisamos ou projetamos para tomar um gole. Ou gastar o mesmo tempo arrolando os motivos pelo qual beber não nos faz bem, porque a abstenção é mais saudável e elaborando uma lista das coisas que podemos fazer em vez de beber.
Cada um de nós escolhe a seu próprio modo. Ficamos contentes quando alguém mais decide tomar uma decisão como a nossa. Mas, esteja interessado no A.A. ou não, fazemos os melhores votos a qualquer um que comece a permanecer sóbrio de qualquer maneira. Continuamos a agradecer por sermos livres para faze-los nas maneiras aqui descritas.
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