John E. Burns, PhD, CEAP
A Psicologia arquetípica pode ser útil a adictos? Em Vila Serena, um centro para tratamento de dependência química em São Paulo, Brasil, a resposta é "sim", apesar do fato que não foi fácil chegar a essa conclusão. Uma equipe profissional altamente motivada e inspirada cria um ambiente terapêutico com calor humano no qual os dependentes podem encontrar uma perspectiva de vida mais profunda e abrangente, conseguindo dessa forma viver sem o uso de qualquer substância psicoativa. Nós criamos o clima e os dependentes encontram seu caminho. O desafio está em motivar os terapeutas a se envolverem com o problema complexo da dependência.
No Brasil, temos sido capazes de manter elevado o nível de entusiasmo e dedicação entre o pessoal de nossos centros de tratamento¹, através de um programa pragmático tendo por base nosso conhecimento de psicologia arquetípica. O resultado obtido consiste na baixa rotatividade de funcionários, alta taxa de ocupação e redução das recaídas. Quando começamos o tratamento da dependência química no Brasil há dezesseis anos, fazíamos a recomendação ao dependente de entregar sua vontade e sua vida aos cuidados de um "Poder Superior" ou a "Deus na forma em que O concebíamos", (como sugerido pelos Doze Passos dos Alcoólicos e Narcóticos Anônimos), assistir às reuniões de grupo de ajuda-mútua² e ler a literatura indicada. Isto nos permitia uma taxa de sobriedade em cerca de trinta por cento.³
Gradualmente fomos percebendo que a sobriedade era estabelecida pelo fato de o dependente repetidamente contar sua estória(4) aos outros dependentes dentro de um ambiente humano. Embora apreciássemos a importância da estória do paciente e compreendêssemos que ela é a base da teoria popular dos sistemas de família(5) precisávamos de confiança para enfocar nosso programa na estória, uma vez que não percebíamos os fundamentos filosóficos para este procedimento. Também, apesar do fato que a natureza monoteísta Cristã do programa de Doze Passos seja rejeitada por um número crescente de dependentes de álcool e outras drogas, especialmente entre os adolescentes,(6) não abandonamos os programas de Doze Passos porque eles proporcionam reuniões livres ao redor do mundo e enfocam temas religiosos e espirituais de formas diversas que a maioria dos programas psicoterapêuticos. Conseqüentemente sobrecarregávamos o programa com atividades numa tentativa de proporcionar algo para todos, o que levava à insatisfação do paciente e à exaustão da equipe terapêutica.
As reuniões semanais da equipe eram cansativas, de forma que introduzimos treinamentos ao invés de falarmos somente de trabalho e isto revelou-se ser nossa salvação. Buscando por algo novo, examinamos os fatores genéticos e ambientais, especialmente a influência da família e infância como determinantes para a dependência. Rebuscamos dados científicos e exploramos abordagens alternativas com cristais e visualização para desafios além dos limites. Dentro de uma visão macro, elaborei uma tese de doutorado sobre a "Teoria Geral de Sistemas e o Tratamento de Dependência Química", mas minha contribuição foi pequena. Novas análises trouxeram mais complexidade ao programa de tratamento.
[Prosiga a leitura]
A primeira luz chegou através do estudo das obras de M. Scott Peck, A Trilha Menos Percorrida e na seqüência Prosseguindo na Trilha Menos Percorrida(7). Não achamos relevante a introdução da espiritualidade na psiquiatria, mas a sutil mudança da visão da saúde mental de analítica para holística, de literal para poética foi revigorante, embora não nos sentíssemos confortáveis abandonando a psicologia analítica em prol de uma abordagem mais humanística. Foi quando o livro de James Hillman, We've Had a Hundred Years of Psychotherapy and the World's Getting Worse (8) (Tivemos Cem Anos de Psicoterapia e o Mundo Está Ficando Pior), irrompeu em nossa cena e, pela primeira vez, questionamos abertamente a eficácia da psicologia ou psiquiatria para tratar a dependência química. Alguns profissionais se sentiram ofendidos e os perdemos.
Demos início então a um longo e árduo estudo sobre a psicologia arquetípica utilizando o difícil e denso sumário, Psicologia Arquetípica - Um Breve Relato.(9) Para compreender a psicologia arquetípica "que pode ser vista como um movimento cultural, onde parte de sua tarefa é a revisão da psicologia, da psicopatologia e da psicoterapia de acordo com a imaginação do Ocidente"(10), é necessário o questionamento de nossas crenças fundamentais. Uma vez que esta abordagem é designada "psicologia" arquetípica, a tendência foi utilizar conceitos populares correntes da psicologia acadêmica e terapêutica como pontos de referência, o que foi muito frustrante. Até percebermos que estávamos lidando com um ponto de vista filosófico abrangente, não tínhamos condições de avançar. Fácil de entender essa perspectiva, porém difícil de implementar e prever suas implicações. Alguns profissionais resistiram, de modo que fizemos a leitura e estudamos os textos em grupo, capítulo por capítulo.
As primeiras discussões se concentraram no uso da alma por Hillman e isto foi complicado porque utilizamos o trabalho de Thomas Moore, que era muito acessível, mas nos retornava repetidamente para a singularidade da alma cristã como objeto. É de difícil compreensão a idéia da alma como "uma perspectiva ao invés de uma substância, um ponto de vista em direção a coisas em vez da coisa em si"(11) e "tentar ver a alma, não como singular, mas um múltiplo de si mesma" (12). Ainda lutamos com isto e precisamos lembrar-nos sempre de que esta intensa batalha é alma.
Gastamos tempo discutindo o arquétipo da dependência, mas foi Rafael López-Pedraza quem ressaltou que o uso compulsivo não é arquetípico, mas titânico, "sem lei, sem ordem, sem limites."(13) Isto nos salvou da cilada de usar o arquétipo como um tipo ou categoria de diagnóstico. A verdadeira transformação aconteceu quando começamos a focalizar na "base poética da mente."(14) Considerar o tratamento da dependência química sob o aspecto poético, intuitivo, estético, holístico, em contraposição a um aspecto literal, analítico, científico ou acadêmico, causa uma profunda e relutante mudança pessoal e profissional, uma mudança monumental.
Quando solicitados a considerar o tratamento sob uma perspectiva poética, os terapeutas geralmente respondem que já fazem isto, uma vez que o objetivo do tratamento é a melhoria da qualidade de vida ou ter os valores espirituais renovados. Ainda assim, um exame rápido demonstra que os Doze Passos de AA/NA, em especial os primeiros cinco, são usados como instrumentos para "penetrar a negação", evocar "entrega" e "aceitação" de alguma causa da dependência. Algo muito analítico, muito literal.
O desenvolvimento de uma base mental poética é um trabalho longo e árduo, uma nova filosofia, pois questiona todas as hipóteses da terapia atual. As patologias são tidas como "existencialmente humanas e, assim sendo, fundamentalmente normais".(15) É difícil para alguns aceitarem que "cada vida é formada por sua imagem única, uma imagem que é a essência dessa vida que a chama para um destino" (16) e ver cada imagem tão diferente quanto a totalidade do "contexto específico, humor e cena"(17). A Regra de Ouro da terapia é "aderir à imagem", (18) que apresenta ao invés de representar, conota ao invés de denotar, evoca ao invés de descrever.(19) A terapia consiste em aprofundar-se, não mudar a imagem, mas ganhar perspectiva e apreciação, de tal forma que o uso compulsivo de uma droga psicoativa não mais combine com o quadro.
A observação de James Hillman é aplicável: "Seu objetivo terapêutico não deve ser nem a adaptação social ou a individualização pessoal, mas ao inverso, um trabalho a serviço da restauração da realidade imaginal do paciente."(20) "A personalidade saudável, madura ou ideal irá, então, mostrar que conhece sua situação ambígua e dramaticamente mascarada. Ironia, humor e compaixão serão a sua marca, uma vez que estes traços indicam uma consciência da multiplicidade de significados e destinos e a multiplicidade de intenções incorporadas por qualquer sujeito a qualquer momento."(21) O objetivo não é mais o crescimento na direção da perfeição.
A porta principal para a imagem é a estória. Fazemos uso da arte, música, esportes e poesia, mas a estória da vida relatada numa reunião de pessoas com uma experiência similar é o acesso mais econômico à imagem. Devemos nos lembrar de que a estória é a ficção do momento, a ilusão necessária e não a imagem, mas que revela a imagem. (22) A tendência é ver a estória como a imagem que conduz à interpretação, o que destrói a narrativa e a imagem. Quando uma sessão de estória se torna monótona, normalmente é o que está acontecendo.
Foi difícil abandonar as sessões individuais de terapia, que consumiam muito tempo, eram caras e causavam divisão, até que fomos direcionados ao capítulo final do livro de Robert Stein, Incesto e Amor Humano: "O uso da transferência como instrumento terapêutico é mau para a alma."(23) "A ausência de experiência grupal representa uma infeliz omissão na análise ortodoxa."(24) "Tentar dizer ao outro qual é a percepção que ele tem de mim reflete uma certa dose de arrogância científica bastante destrutiva."(25)
A mescla da psicologia arquetípica com o tratamento de Doze Passos tem gerado um produto melhor. Resultados melhores a um custo mais baixo. Profissionais super qualificados têm sido substituídos por assistentes sociais que administram um programa simplificado. Pela manhã, acontece uma apresentação didática e uma estória é contada ou repete-se uma estória pessoal. À tarde, há um grupo de sentimentos seguido por diversas atividades comuns tais como: arte, música ou esportes. As noites são livres para freqüência às reuniões de Alcoólicos ou Narcóticos Anônimos. Deixamos um tempo livre para os dependentes trocarem suas estórias informalmente. Aprendemos a abrir espaços e a confiar os pacientes uns aos outros.
O produto vende bem. Para apresentar esta posição ao público, organizamos eventos artísticos como "Rei Lear" de Shakespeare, " A Divina Comédia" de Dante, os mitos de Psyche e Eros, I Ching, Os Sete Pecados Capitais, Contos de Fadas, "Fausto" de Marlowe, análise de sonhos, música popular, festivais de música folclórica e os analisamos sob o ponto de vista da psicologia arquetípica. Os participantes saem com um sentimento de que estamos fazendo algo diferente e profundo.
A taxa de recuperação é o primeiro indicador de eficiência. Sabemos que pacientes de empresas como Johnson & Johnson, Caterpillar, Goodyear, Avon, do sistema público de transportes e da indústria petrolífera têm entre 60 a 80% de recuperação, medidos através de uma melhoria do desempenho no emprego. Só podemos acompanhar o sucesso de pacientes particulares através da sua freqüência às sessões de pós-tratamento e reuniões de ajuda-mútua, que também apresentam uma média de 60 a 80% de índice de recuperação. Quando a estória é o foco, há uma transição suave e natural entre o tratamento e cuidados do pós-tratamento. Também deve ser mencionado que o Brasil favorece uma experimentação inovadora, já que possui uma cultura poética e politeísta (26) sem a ameaça de litígios, licenças obstrutivas e certificações, sem que haja necessidade de uma obediência ao DSM ou "managed care".
Este processo não tem sido fácil. Estudei os artigos publicados de Hillman, assisti a algumas de suas palestras, escutei as fitas do Festival de Psicologia Arquetípica conduzido na Universidade de Notre Dame em 1992, li os Spring Journals de 1970 até hoje, e os importantes trabalhos de Adolf Guggenbuhl-Craig, Charles Boer, David Miller, Edward Casey, Ginette Paris, Greg Mogenson, Mary Watkins, Rafael Lopez-Pedraza e Roberto Stein. Somos especialmente gratos a Jay Livernois, Cindy Sebrell, Charles Boer, Ben Sells e Rafael López-Pedraza que, pacientemente, nos conduziram através de longas e intensas discussões para a configuração da psicologia arquetípica para o tratamento da dependência química.
A citação abaixo da literatura de psicologia arquetípica ressoa com a abordagem de Doze Passos dos Alcoólicos Anônimos que melhor expressa o objetivo de nosso programa:
Um novo sentimento de perdoar-se e aceitar-se, começa a espalhar e circular. É como se o coração. . . estivesse aumentando sua influência. Aspectos sombrios da personalidade continuam com seu peso negativo, mas agora dentro de um contexto de uma "estória" mais ampla, o mito de si mesmo, e o começo de um sentimento de que eu sou como eu devo ser. Meu mito transforma-se em minha verdade; minha vida torna-se simbólica e alegórica. Perdoar-se, aceitar-se, amar-se e mais, perceber-se como pecador mas sem culpa; agradecido por seus pecados e não pelos pecados dos outros, amando seu destino até o ponto de sempre estar desejando ser como é e manter esse relacionamento consigo mesmo. (27)
1 Operamos dez centros que utilizam o Modelo Minnesota em regime de internação, ambulatorial e programa para familiares, com aproximadamente 250 empregados e temos tratado mais de 25.000 dependentes e seus familiares. Vide: http://www.vilaserena.com ou http://www.vilaserena.com.br.
2 Reconhecemos uma contradição interna aqui.
3 Apenas 5% dos que freqüentam as reuniões de Alcoólicos Anônimos permanecem após um ano. Vide: Bragg, John, (1990) Comment's On AA's Triennial Survey, New York, AA General Service Office. Para uma exaustiva discussão deste tema, subscrever ao listserver Addict-L: listserv@listserv.kent.edu e "subscreva addict-l" no corpo da mensagem sem "dois pontos" e sem assunto.
4 Sabemos que a ortografia brasileira utiliza "história" e não "estória". Fazemos uso da palavra "estória" de forma técnica porque "história" contém uma infinidade de elementos os quais jamais iremos nos lembrar, enquanto que a "estória" conta aqueles fatores que recordamos dependendo de nossos valores, memória, intenção, momento e platéia.
5 Também chamada hermenêutica, vide Parry, A. e Doan, R., Story Re-Visions - Narrative Therapy in the Postmodern World, 1994, Guilford Press, New York.
6 Grupos de auto-ajuda de ateus tais como o Rational Recovery (http://rational.org/recovery/) estão em crescimento.
7 Editora Imago, RJ, 1978 e 1993.
8 Hillman, J. e Ventura, M., We've Had a Hundred Years of Psychotherapy and the World's Getting Worse, 1992, Harper, San Francisco.
9 Desenvolvi um guia com 30 páginas para a equipe terapêutica com alguns destaques do livro Psicologia Arquetípica - Um Breve Relato, de James Hillman, 1983, Cultrix. Este documento pode ser adquirido através de nossa home-page http://www.vilaserena.com ou http://www.vilaserena.com.br, clicando em "Downloads". James Hillman o leu e fez alguns comentários que estão inclusos no texto.
10 Hillman, J., Psicologia Arquetípica - Um Breve Relato, p. 22.
11 Hillman, J., Re-Visioning Psychology, 1976, Harper Perennial, New York, p. xvi.
12 Correspondência pessoal de James Hillman para John Burns, Maio 1998.
13 Vide López-Pedraza, R., Cultural Anxiety, 1990, Daimon Verlag, Einsiedeln, Switzerland, Chapter I "Moon Madness—Titanic Love."
14 Hillman J., Psicologia Arquetípica - Um Breve Relato, p. 27.
15 Ibid, p. 72.
16 Hillman, J. O Código do Ser, Objetiva, 1996 p. 51.
17 Hillman, J. "An Inquiry into Image", Spring 1977, Spring Publications, p. 62.
18 Atribuído a Rafael López-Pedraza, Veja Berry, P., "An Approach to the Dream", Spring 1974, p. 61.
19 Hillman, J. "An Inquiry into Image", Spring 1977, Spring Publications, p. 84.
20 Hillman, J., Psicologia Arquetípica - Um Breve Relato, p. 24.
21 Ibid, p. 89.
22 Por que recontar a estória a um grupo é tão eficaz é raramente questionado porque seu impacto é óbvio, mas a explicação mais profunda e técnica pode ser encontrada na brilhante contribuição ao estudo do alcoolismo e AA de Gregory Bateson em seu capítulo: "The Cybernetics of Self: A Theory of Alcoholism", a ser encontrado em seu livro "Steps to an Ecology of the Mind", 1972, Ballantine Books, NY e no periódico Psychiatry, Vol. 34, No. 1, pp. 1-18.
23 Stein, R. Incesto e Amor Humano - A Traição da Alma na Psicoterapia, 1973, Símbolo, SP, p. 201.
24 Ibid, p. 204.
25 Ibid, p. 201.
26 Vide John Burns, "A Twelve Step Meeting of the Afro-Brazilian Gods", Spring 61, 1997, Spring Publications, pp. 113-124.
27 Hillman, J., Insearch – Psychology and Religion, 1994, Spring Publications, Woodstock, Connecticut, 2nd Revised Edition, p. 119.
De: "Lost Souls – Spring 65 – A Journal of Archetype and Culture", Spring and Summer, 1999, Spring Journal, Woodstock, Connecticut, página 15:
Crédito: http://www.rubedo.psc.br/artigosb/arqueadi.htm
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