Clínicas clandestinas maltratam dependentes químicos
Durante dois meses, o repórter Eduardo Faustini investigou a exploração do sofrimento causado pela dependência química.O assunto de clínicas de internação que não cumprem a lei é muito grave. Para saber continue lendo
O que a gente vai ver agora não é só uma matéria sobre álcool, drogas e saúde pública. É a revelação do submundo no tratamento da dependência química.
No comércio escandaloso de internações forçadas, doentes são maltratados
e famílias, enganadas. E paga-se alto por tudo isso.
Dependência química: o inferno atrás dos muros.
Atenção para o desabafo. Ele estava sufocado em casas aparentemente acima de qualquer suspeita.
“Quebrou quatro vidros de uma veneziana com a minha cabeça”, diz
um homem, que é ex-interno em uma clínica para tratamento de
dependência química.
“Quebrou minha última costela do lado esquerdo”, diz.
E este é o relato de um ex-funcionário de uma dessas clínicas
clandestinas: ““Leva ele pro sol, dá uma coça, dá um pau bem servido”,
conta.
O Fantástico revela a nova consequência do uso de crack.
“O crack é a cocaína numa forma impura, muito barata, de muito
fácil acesso e que tem sido devastadora”, afirma o Pedro Delgado,
coordenador de saúde mental, álcool e drogas do Ministério da Saúde.
O desespero e a urgência causados pelo crack aumentaram rapidamente a procura por clínicas de tratamento.
“De uma hora pra outra começaram a surgir inúmeras comunidades
terapêuticas, sem registro na Vigilância Sanitária. Pessoas sendo
espancadas, com marcas, fios, pedaços de fios, choque elétrico,
porretes”, afirma o promotor de Justiça de Minas Gerais Lúcio Flávio
Silva.
“A família pagava R$ 1.200 por mês”, diz o paciente.
“Pagava R$ 800, dez vezes de 800”, afirma o ex-funcionário.
“A minha mãe dava R$ 900 por mês e uma cesta básica”, diz a funcionária pública Keila de Oliveira.
E essa procura desesperada e urgente abriu espaço para a proliferação de clínicas piratas.
“Se você não quisesse fazer alguma coisa, tinha um buraco que
eles mandavam você pro buraco. Eles dopavam a gente, davam uns oito ou
dez comprimidos pra gente, forte mesmo. Quando você tava morrendo de
sono, caindo, eles jogavam água na cara, baldada de água na cara pra
você despertar”, diz Keila.
Durante dois meses, o repórter Eduardo Faustini investigou a exploração do sofrimento causado pela dependência química.
“Aquelas internações involuntárias que nós presenciamos ali são internações ilegais”, observa Pedro Delgado.
“Eles estão lá colocados à força por determinado prazo e vão
sair de lá e vão voltar pra droga”, diz o promotor Lúcio Flávio Silva.
“No dia que eu saí de lá eu amanheci fumando”, lembra Keila.
E descobriu a inacreditável figura do corretor de internação.
“Ele consegue a família. A família liga pra ele. E ele consegue uma comissão”, conta José Alfaro, dono de clínica.
O Ministério Público de Minas Gerais fechou cinco clínicas
particulares no estado. Elas ofereciam a internação involuntária de
dependentes.
No último mês, foram fechadas também uma clínica no Mato Grosso e
duas em São Paulo. Em São José dos Campos, um retrato de todas as
outras.
“Eles não tinham autorização da Vigilância Sanitária do
município para funcionar, eles não tinham alvará da prefeitura pra
funcionar, eles não tinham alvará da Anvisa, não tinham cadastro na
Anvisa”, diz o investigador da polícia Valcir Pimentel.
À margem do sistema de saúde, o lugar não cumpria a legislação.
“O Brasil tem uma lei reconhecida no mundo inteiro que não
autoriza ninguém a internar pessoas contra a vontade, exceto se
comunicar à Justiça até 72 horas, ao Ministério Público”, diz Pedro
Delgado.
“E na lei diz que a não comunicação ao Ministério Público em 72
horas automaticamente transforma isso em cárcere privado. É seqüestro”,
explica Pimentel.
Sequestro, cárcere privado e também maus-tratos. São as acusações feitas aos responsáveis pelas clínicas clandestinas.
“Quais os recursos que eu tenho para saber, ou que qualquer
outro pai tem, para saber que uma clinica é boa?”, pergunta uma
empresária, que gastou, em oito anos, R$ 200 mil em internações do
filho. Ele estava na clínica que foi fechada em São José dos Campos.
“A rua, quando ele está usando droga, eu não sou culpada disso. É
uma coisa que ele está escolhendo. Agora, aquela clínica fechada onde
ele não tinha nenhum tipo de tratamento, aquilo era escolha da mãe
dele”, afirma.
A polícia procura o dono da clínica.
“A clínica Novo Dia trabalha com internação voluntária, e essa
aqui seria uma filial que trabalharia com internações involuntárias”,
diz o investigador.
Atrás do suposto dono da clínica fechada, chamado Julio Cesar, o repórter do Fantástico foi até a Novo Dia.
“O Júlio César não tem ligação nenhuma com clínica Novo Dia”, diz o dono da clínica.
E descobriu a figura do corretor de pacientes. Julio Cesar foi mesmo dono da clínica, mas mudou de função.
“Ele tem as comissões de internação. Quanto mais gente ele
internar, mais dinheiro ele vai ganhar”, afirma o dono da clínica.
O Ministério da Saúde anuncia um ataque à indústria pirata de clínicas para dependência química.
“Buscar melhorar os mecanismos de fiscalização e
aperfeiçoamento, e buscar também os outros setores do governo e das
demais políticas públicas que cuidam desse assunto para buscar, de fato,
impedir a proliferação desses serviços”, diz Pedro Delgado.
O Brasil tem, hoje, 1.396 unidades dos Caps, Centros de
Assistência Psicossocial. Duzentas e duas se dedicam a pacientes com
problemas de álcool e outras drogas. Os Caps AD são ligados ao SUS e
seguem o procedimento padrão no tratamento da dependência química.
“O paciente entrou, ele vai ser monitorado pela enfermagem, pelo
médico, pra ver o aspecto da desintoxicação, uso de medicação. A partir
do momento que o paciente já está podendo se deslocar, ouvir, falar, a
gente vai trabalhar nos grupos psicoterapêuticos a questão da
dependência, falar de sentimentos, trabalhar a emergência deles.”, diz a
assistente social Lílian Fagundes.
Nos últimos anos, os Caps AD vêm lidando com um novo tipo de paciente.
“Por último eu usava, por exemplo, fazia uso de drogas com arma
na mão. Isso que começou a me preocupar. Eu senti que uma hora ou outra
eu ia puxar, uma hora eu ia puxar o gatilho”, conta o policial militar
Videwilson basque.
O policial militar Videwilson começou a usar crack aos 37 anos.
O advogado Luiz Toledo está limpo há 21 anos. Conviveu por duas décadas com álcool, maconha e remédios.
“Quando eu conheci o crack, aí realmente eu perdi todo o
controle. Perdi família, perdi emprego, perdi moral, perdi dignidade,
perdi respeito, fui morar na rua. Aqui em Curitiba eu terminei a minha
carreira sendo expulso de uma turminha de catador de papel”, lembra o
avogado.
Ele tinha 39 anos. Começou a se tratar, reconstruiu a vida
profissional, adotou dois filhos. Hoje, colabora com um Caps AD de
Curitiba.
O psiquiatra Hélio Rotemberg, dono de uma clínica que trata de
dois mil pacientes no sistema ambulatorial, chama atenção para a
necessidade da criação de novas vagas de internação na rede pública de
saúde.
“Claro que precisamos aumentar essa rede. Porque o problema das
drogas é crescente, grave e atinge grande numero de pessoas”, diz Pedro
Delgado.
A Secretaria Nacional Antidrogas tem cadastradas cerca de 500
comunidades terapêuticas. Entre elas, clínicas particulares legalizadas.
“Está bem, está internado. Está numa clinica, está muito bem,
está sendo muito bem tratado. Está se recuperando. Eu visitei
recentemente e estou com muita esperança”, diz uma mãe.
A empresária espera ter encontrado, para o filho, uma das casas
que tratam o dependente químico com a dignidade que todo doente merece.
“E queria dizer que, se eu não tô mostrando o meu rosto, não é
porque eu tenho vergonha do meu filho. A dependência química é um pedaço
do meu filho, não é meu filho todo. E eu só não estou mostrando o rosto
por respeito a ele. Mas eu não tenho vergonha do meu filho. Isso eu
queria que você colocasse”, pede a mãe.
Nenhum comentário :
Postar um comentário
soporhoje10@gmail.com