A primeira parte dei o título de "Diário de um Interno I" e sua continuidade como "Fragmentos de um diário", vez que, em ambas as postagens contem cortes, então é algo fragmentado, que fiz para, muitas vezes, deixar algo nas entrelinhas, mas ninguém, ou quase ninguém, está acostumado a ler as entrelinhas. Quem me ensinou isso foi Carlos Ott, um grande pesquisador, natural da Alemanha e que adotou a Bahia como sua terra. Mas vamos ao que interessa que é a continuidade da minha desventura no interior paulista:
03/06/11- Estava acabando de orar quando fui avisado de que algum familiar queria falar comigo pelo telefone... era meu irmão Marcelo. Lamentável que o telefone estivesse, novamente, no viva voz de modo impertinente. Sinto-me policiado...Depois tive a emoção de falar com meu pai. Represei o choro. Pedi que ele viesse a São Paulo com os "flinstones". É fundamental a presença de uma inteligência superior iluminanda. Devo a meus pais infinitos pedidos de perdão... (corte )Sofrer é uma experimentação dolorosa que pode nos ajudar a crescer. Com fé em Deus estaremos juntos!
04/06/11- Amanhã L faz 33 anos de idade. Não estou esquecido de ninguém. Espero falar com ele. Como terá sido a viagem de Agui? e a minha maninha M.? minha mãe, como estará ela? Sonho com meus pais e filhos, com meus irmãos ainda na infância, são sonhos lindos, mas quando acabam e desperto para a realidade incomoda. A frente fria chegou com o tempo bonito. É o vento que gela mais que a temperatura. Não anoiteceu e já faz frio. Visto cinco camisas de malha junto com o blusão de L.
São dezenove horas e a temperatura marca 12 graus, enquanto a sensação térmica deve ser de menos cinco graus, calculo, o que representaria sete graus. Tentei proteger o corpo, mas pouco adianta. As mãos e a cabeça ficam gélidas. Porque meus filhos ignoram o que o frio representa para mim em termos de padecimento? o pulmão direito dóia ao final da tarde. Porque não me internaram na Bahia onde eu não teria que passar por este vexame?
05/06/11- Hoje L. completa 33 anos de idade e gostaria de poder falar com ele. Não sei se deixarão. Espero que sim. (corte) por falar em leitura estou impossibilitado de ler pois não enxergo de perto e escrevo obedecendo a cadência mecânica da caligrafia. Desde ontem um torcicolo me acometeu... o frio está insuportável e, falar e me queixar do frio tornou-se uma obsessão. Tenho andado taciturno, quase isolado e com uma tristeza interior indisfarçavel. Ocorre-me chorar escondido e, confessar isto, nestas páginas, não me envergonha.
Fui acordado onze horas da noite para uma das reuniões do pastor, "sem noção", que durou até
cerca de uma e meia da madrugada. Estava morrendo de frio. ( nota minha feita fora do diário. A reunião foi feita para humilhar G. e F. que foram presos no "quartinho do pânico". G. foi acusado de ter comido uma pessoa na casa do pastor, onde prestava serviços não remunerados enquanto desviados do que se denomina "restauração", rolou outras fofocas. Era esta a Clínica em que me achava!)
06/06/11- (corte)... uma sensação de abandono me invade e me entristece... (corte) lembro minha mãe dizendo "Deus dá o frio conforme o cobertor"... estou me isolando de todos (nota minha feita fora do diário. Este isolamento decorria de muitos fatores: saudades da família, o que ocorria na clínica, o pessimismo porquanto companheiros me pediam resignação pois ninguém sai daquele inferno e, algumas vezes, fica por lá muito mais tempo, o fato de saber que não havia tratamento algum, apenas um confinamento, meu desejo de liberdade me levava a, isolado, procurar encontrar vulnerabilidades para uma eventual fuga futura, se meus planos não dessem certos e meus planos eram, rigorosamente, secretos. Também servia para meditar, refletir, pensar, fazer auto-análises, planejamento de uma rebelião, questionamento sobre o comportamento de filho e esposa comigo...) Percebo que sou um dependente emocional dos meus familiares que tanto machuquei neste processo de insanidade que o simples afastamento de E. me causou. Quanto estrago! (corte)... porque ninguém compreende a força construtiva do amor , ao invés de usar a força destrutiva que o desamor causa? (corte) ... escrevo na parte baixa do beliche balança mais não cai, que me atrapalha o sono (corte) Porque meus filhos e minha mulher me trouxeram para São Paulo? (nota minha: no começo do "diário" havia um tratamento de crença em meus filhos e mulher, mas, na medida em que eu era informado, por telefonema, dei para proceder questionamentos e estabeleceu-se em mim um sentimento de abandono cada vez mais evidente. Seriam 5 meses e dias numa clínica de confinamento, sem saborear a liberdade com sobriedade. A mulher só falou comigo uma única vez. Não fiz nada contra ela, nem a ela, que motivasse o sumiço da mesma. Então, como não questionar?)
O pastor me falou que L estava vindo me ver. Perguntei quando e ele disse que não sabia. Seria bom não ficar na lanterna dos afogados.
07/06/11 - Amanheceu com forte ventania mas não fazia frio. O sol raiava... às 15 horas chovia e o frio se pronunciava delicado. Anoiteceu e o tempo ficou raivoso (...) chovia, goteiras no telhado do avarandado da casa, bem na frente da porta principal. Raios e trovoadas e de repente falta de energia. O caos se estabeleceu e a ordem era colocar todos dentro de casa e fechar as dependências para evitar fugas. Senti o desconforto de uma casa cheia de homens, na maior algazarra. A casa sequer possuía um gerador. Estava irritado por me sentir como uma sardinha enlatada. De bom mesmo, nesta terça-feira, foi o telefonema da minha filha P. que me deu noticias (falou que meu pai não viria e eu fiz um apelo desesperado para ela conversar com ele para vir de qualquer maneira pois ele era imprescindível. Sobre a mãe disse-me que ela viria me visitar) Este diário não contempla críticas à casa. Restrinjo-me a falar sobre condições climáticas. Tomei uma coca-cola ( tomar coca-cola era algo muito prazeroso pra mim, lá só era servido uma espécie de tang, que era horrível e os internos chamavam a garapa de suco!)
08/06/2011 - ... houve um entrevero entre o monitor e o terapeuta. Houve ofensa de parte do terapeuta. Pegou mal. Faz frio mesmo com sol
F I M
Esse entrevero era o ápice de um conflito administrativo entre os dois, culminando com a demissão do monitor. Ambos eram contratados da clínica. Somava-se a ele o cunhado do pastor, a nora do mesmo, possivelmente mulher e filhos, mas não tenho certeza. Quem mais ? já não recordo. Sei que ele utilizava-se de internos para efetuar os trabalhos que profissionais contratados, com carteira assinada, FGTS, INSS, mas creio, havia uma poupança de encargos sociais com a utilização de uma mão de obra, que segundo fui informado, consistia em uma espécie de gratificação de 200 reais. Algo de estranho ocorreu com a esposa pois viajou e nunca mais deu noticia. Foi decisivo para mim o telefonema da minha filha informando que o avô não estaria em minha visita e, daí, falei com ela que era imperativo a vinda dele. Foram me visitar os 3 filhos e meu pai. Eu não sabia que eles haviam chegado. Estava despreparado, mas eu arrisquei fazer o que outros fizeram e se deram muito mal. Comecei a denunciar o pastor, tete a tete, e ele é um grande manipulador. A esposa se intrometia, diziam que eu estava abstinente e os filhos todos concordaram. Foi uma luta dura, durou um bom período de tempo. O pastor jogou a toalha em dado momento, mas recuou na palavra e mudou de comportamento. Me fez ir pegar minha mala para me trancafiar enquanto convenciam meu pai de que eu deveria permanecer por lá. Mas meu pai exigiu que eu estivesse presente, diante dele, que ele queria me ver. Foram me buscar. A esta altura já estavam decididos a me pegarem à força e o pastor ousou dizer, na frente de meu pai, "Eu vou ter que lhe levar. Ou você vai por bem, ou vai por mal". Ai o pau quebrou. Meu companheiro de conspiração, o que eu mais confiava, assistiu a tudo, pois ela estava no regime semi-aberto e olhava tudo da janela. Podia vê-lo. Deve ter ficado satisfeito. Espero que ele consiga a liberdade sonhada. Enfim, consegui. Estou limpo, deixei de fumar e aqueles que me internaram sem obediência a legislação e do mesmo modo a clínica, tomaram o que na Bahia chamamos de chá de se pique. Não sei, ninguém sabe do paradeiro deles, nem porque se isolaram do resto da família. Presume-se fuxicaria e muitas mentiras. Interessante, não estão e não irão responder processo. Só por hoje faço valer minha liberdade com a determinação de não dar chance a recaída, nem chance às drogas. Acabou, mundo imundo!
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