Andrea Dip
Antes de eu ir aos hospitais, coordenadoras do Fórum Paulista da Luta Antimanicomial me fizeram re-
comendações: “Não precisa visitar muitos manicômios. Eles são sempre iguais. Têm grandes pátios, onde provavelmente não vão te deixar entrar, e as pessoas são iguais. Elas ficam iguais. A institucionalização faz isso.
A pele é amarela, queimada pelo sol forte que tomam nos pátios, e pela medicação, que mexe com a melanina. O cheiro das pessoas é o mesmo. Um cheiro forte, também causado pelos remédios. Os dedos são queimados pelas xepas de cigarros. Alguns babam e parecem robôs, têm tiques, esses tomam Haldol. Sabe o estereótipo de louco? Não é a doença, é o efeito colateral da medicação.
Não vá sozinha, pelo menos no primeiro, porque você vai ficar muito impressionada. E boa sorte”. Fui para a primeira visita.
Hospital Psiquiátrico Pinel, no bairro de Pirituba, em São Paulo. Confesso que fui receosa, sem saber direito do que ter medo.
Por fora, o prédio da recepção parece cenário de um filme sobre o tema. Amarelo, antigo, janelões. Fomos bem recebidos (eu e o fotógrafo) pelo psiquiatra Eduardo Guidolin, que dirige há três anos o hospital. Sua sala fica no fi nal de um grande corredor esverdeado, tal qual meu sonho.
Ele conta que o Pinel tem hoje três programas “bem distintos um do outro”. Um com catorze vagas para adolescentes e cinco para crianças; o segundo para “agudos”, só homens adultos em crise, com 38 leitos, “com média de in-ternação de 25 dias”; e o terceiro programa é o de moradores, pessoas que estão há vinte, trinta anos internadas e já perde-ram o vínculo social e familiar. São os chamados “crônicos”, a maioria dos hóspedes dos manicômios. Renato Del Sant, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clinicas, explica: “Os familiares lidam muito bem com doenças físicas como Aids, câncer.
Mas a doen-ça mental mexe com o emocional da família. Ninguém agüenta mais do que uma semana ou duas ao ver um parente demenciando, ou psicótico. A família pede ‘pelo amor de Deus, interna meu parente’!
E o povo com baixos recursos sociais e econômicos, chega do trabalho às 10 da noite, às 4 tem que acordar, e tem aquele parente gritan-do que vai se matar. Aí, a família acaba abandonando, ou em algum hospital ou na rua”.
Um exemplo dado pelo próprio Eduardo Guidolin é o de uma mulher que estava rodando de manicômio em manicômio havia mais de vinte anos. “Ela teve um filho e pouco tempo depois teve um surto psicótico e foi internada.
O pai foi informado de que ela sofrera psicocirurgia e havia morrido. Ninguém foi atrás do corpo. Então, ela foi parar na Bolívia, não se sabe como, e veio para o Pinel repatriada. Conseguimos achar a família no interior de São Paulo e a estamos devolvendo pra eles.” Os pacientes crônicos do Pinel ficam em pequenas casas, onde teriam maior autonomia. “Esses pacientes escolhem se querem comer frango ou carne, por exemplo. Porque tantos anos de internação deixam a pessoa sem autonomia; alguém sempre escolhia o que ela ia comer, vestir”, explica o psiquiatra.
Terminada a entrevis-ta, fomos conhecer o hospital. Ao que parece, o governo do Estado não nega verbas ao Pinel. Salão de jogos com mesa de sinuca e pebolim novíssimos. O doutor Guido-lin ia, molho de chaves na mão, nos mostrando as ins-talações, que mais pareciam pertencer a um spa.
Sala de cinema com telão e televisão gigante. “Eles assistem fi lmes toda quinta-feira, às 15 horas.” Olhei no relógio. 15h40. Era quinta-feira. Nem sinal de que alguém tives-se passado por ali.
Comecei a desconfiar que o estado de conservação das instalações não se dava por zelo, e sim por falta de uso.
Abrem-se as portas da biblioteca – também trancada a chave e de luzes apagadas. “Os internos têm acesso livre às áreas de lazer e oficinas”, diz o diretor, enquanto tranca novamente a biblioteca.
Conhecemos a área de crianças, alguns dormitórios, o refeitório e comecei a reparar em outra coisa estranha. Exceto uma área em que entramos rapidamente, onde havia cinco ou seis pessoas maltrapilhas – inclusive uma mulher sem as calças, sentada no chão, “paralítica ela não gosta da cadeira de rodas, prefere o chão” –, não senhoras dormiam o sono da tarde. Uma, na contraluz da única janela, brincava de boneca.
O tempo médio de internação dos 466 pacientes que agora estão no hospital é de 25 anos e nove meses. A idade média é de 57 anos e oito meses. E, talvez o mais triste, ape-nas 19 por cento recebem visitas de familiares. Os pacientes crônicos são vítimas do que Franco Basaglia, precursor da reforma psiquiátrica italiana, chamou de “duplo da doença mental”, tudo o que se sobrepõe à doença como resultado do processo de institucionalização. A perda da cidadania, da subjetividade e da autonomia, a distorção dos valores familiares – os funcionários da instituição é que se tornam a família –, a aceitação da incapacidade e da loucura. E a família, que ia visitar de vez em quando, começa a ir cada vez menos.
“A família sente raiva, sente vergonha, e aí sente culpa por ter sentimentos feios e acaba abandonando”, explica Myrna Coelho, psicóloga que trabalhou no Manicômio Judiciário, também no município de Franco da Rocha. Grande parte desses pacientes do Juquery está sendo en-caminhada para outros tipos de instituição, como os asilos fi lantrópicos. “Se o indivíduo é esquizofrênico, cardíaco e teve um acidente vascular cerebral, o menor problema dele é ser esquizofrênico. Então nós o transferimos para outro lu-gar, que atenda melhor às necessidades dele”, diz a doutora Maria Alice. “Nós não vamos desativar o complexo, porque aqui temos serviço de clínicas gerais que atende a comunidade de Franco da Rocha, como obstetrícia e pronto-socorro.
O que muda é que não vamos mais ter internações longas, a cada paciente crônico que sai, o leito é fechado”, explica.
Tanto é que várias áreas estão sendo reformadas. Inclusive para internação de agudos. Seguindo a visita, conheci dona Mercedes – para nunca mais esquecer. Ela toma conta de uma ala que prepara para a desinternação, onde os pacientes têm quarto próprio e ajudam nas tarefas.
Dona Mercedes trabalha no Juquery há mais de trinta anos e diz que já viu de tudo. Entrou na pior época, em plena ditadura militar, e quase foi exonerada após libertar sessenta homens do pátio – que fi cava tran-cado – para que pudessem freqüentar todo o complexo. “O diretor falou que, se um fugisse, eu iria ser exonerada. Nenhum fugiu”, conta orgulhosa.
A “casa” de dona Mercedes é colorida. Tudo limpo, cheio de plantas. “Ela é minha arma secreta”, confidencia Maria Alice. “Não tem pepino que ela não resolva.” Dona Mercedes chama a atenção de um homem que está sentado num canto, descalço. Diz pra ele sentar no sofá com os outros. “Vicio de pátio”, me explica. “Eles chegam sem querer pôr sapato, só querem ficar no chão. Eu dei um chinelo para ele e ele me devolveu. Amanhã dou de novo, ele fica cinco minutos e me devolve. Uma hora, ele volta a usar sapato. A gente tem que ensinar tudo de novo. Comer com talheres, usar sapato, escolher a comida,”. Os “filhos” de dona Mercedes são felizes, simpáticos, e saem pra ir ao banco, por exemplo.
Como seu João (nome fictício), um senhor negro muito simpático e sorridente que me mostrou orgulhoso seu quarto, suas coisas. Torcedor do Corinthians, o emblema do time está em tudo. No armário, fotos da fa-mília. “Quem são?”, pergunto. “Minha família.” “Eles vêm te visitar?”, arrisco. “Às vezes vêm... meu irmão às vezes vem”, diz, fechando o sorriso. E logo muda de assunto. Conta que foi promovido a assistente do seu médico, e me mostra o ventilador do doutor que guardou com cuidado, sua pri-meira tarefa. Ao deixarmos dona Mercedes, faço o pedido: “Doutora, queremos conhecer o cemitério”.
“Vou ter que pedir ajuda de alguém, porque nunca fui lá”, confessa Maria Alice. O clima pesa quando pronuncio a palavra “clandestino” para a diretora técnica do Juquery, doutora Maria Tereza Gianerini Freire. “Não é clandestino. Nunca foi. Era apenas um lugar para enterrar os pacientes que não tinham mais contato com a família, e que iam ser enterrados como indigentes em outro cemitério. Mas hoje ele está desativado”, diz com rispidez.
A estrada que liga o hospital ao cemitério é de terra. Cheia de curvas, com o mato alto. Ao avistarmos a infinidade de túmulos brancos e algumas cruzes azuis sob o mato alto, Maria Alice exclama: “Que lindo!” Dou um sorriso amarelo. Lindo? É a coisa mais macabra que já vi na vida. Cruzes quebradas, mato crescendo de dentro dos sepulcros. Lembro do depoimento da doutora Cristina. Estão todos ali. Só Deus sabe o que passaram.
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