terça-feira, 20 de maio de 2014

CIDADE DOS ESQUECIDOS - POR FORA BELA VIOLA, POR DENTRO...


ANDREA DIP

“(...) Meu Deus! Estou tonto, falta-me o ar. Só ouço as batidas do meu coração. Minhas pernas estão tremendo, acho que vou desmaiar. (...) Eu estava em choque de tanto medo. (...) Fui deitado de barriga pra cima, com a cabeça em dire-ção à porta.

Marcelo colocou uma de suas pernas dobradas em cima do meu tórax. Uma das mãos em cada braço meu, perto dos ombros, forçando tudo para baixo. O outro enfermeiro pediu que abrisse a boca, e por ela enfi ou um tubo preto, oco, de borracha.

Disse que mordesse com força. Em seguida juntou minhas pernas e começou a forçá-las para baixo. 
Antes, porém, passou uma coisa gordurosa em minhas têmporas.

Eu não conseguia mais raciocinar – estava paralisado. (...) Eles faziam força além do peso de seus cor-pos. Vi o médico se aproximar da minha cabeça, por trás, seu rosto perto do meu. (...) Suas mãos tocaram meu cabelo (...), em seguida recuou um pouco. Só escutei parte do meu gemido.
Perdi os sentidos.”

A descrição feita por Austregési-lo Carrano, no terceiro capítulo do Canto dos Malditos, é na verdade bem parecida com o que  vi no IPQ. Talvez o cenário seja diferente, talvez o aparelho que aplica o ECT hoje seja mais sofisticado. Mas o ritual é exatamente esse.

Me senti mal assistindo ao sofrimento do outro. Mas precisava ver de perto o que eles, psiquiatras, tratam com tanta naturalidade e, mais do que isso, como medida de cura milagrosa.Cheguei ao IPQ por volta das 9 da manhã, com minha colega de redação Natalia Viana, que foi me dar um apoio moral. Fomos recebidas pela assessora de imprensa, que nos levou até o local onde são feitas as aplicações. “Vem muito jornalista assistir ao ECT?”, pergunta Natalia. “Nenhum. Vo-ês são as primeiras.

Ninguém tem coragem, eles acham que é o bicho de sete cabeças”, ri a assessora.O corredor estava lotado de familiares, separados por um biombo dos pacientes e das duas salas de aplicação. Ultra-passado o limite, fomos apresentadas a um médico de baixa estatura, magro, de óculos e jaleco aberto, que imediatamente começa a falar sobre as maravilhas do eletrochoque, num discurso comovido, dizendo, entre uma frase e outra: “Isso salva vidas! É preciso lembrar que isso salva vidas”.

Confesso que não prestei muita atenção na história do ECT, pois já havia lido a respeito, e a cena por trás do médico me chama-va mais a atenção. Um homem alto e magro, de seus 30 a 40 anos, estava deitado em uma maca, com duas enfermeiras segurando-o, e outra dando um tipo de anestésico para ele as-pirar. Ele tentava se mexer, resmungar, mas era impedido pe-las enfermeiras.

“Isso aqui não está funcionando, eu estou dizendo! Já faz tempo que eu acho que não está fazendo efeito”, dizia uma. “Então faz um relatório por escrito e encaminha”, dizia a outra. O homem se mexia. Estava “um pouco agitado”, o médico olhou para trás. Entramos na sala. Aquele era um paciente esquizofrênico, segundo seu personal trainer, que o acompanhava sempre nas sessões. “Ele fi ca bem mais tran-qüilo depois da sessão”, falava o homem. “Mas o que ele faz quando está em surto?”, pergunto. “Ah, ele xinga as pessoas na rua de fi lhas da puta.” Olho pra Natalia. Acho que pensa-mos juntas. Deveriam então aplicar choques nos torcedores de futebol, nos motoristas de trânsito estressados. Que preço!Colocam uma gaze na boca do homem.

“Ele já está dormindo”, diz o médico. O homem resmunga por entre os dentes. As enfermeiras seguram. O médico vai até a cabeceira do homem, ajusta o aparelho para a voltagem ideal, coloca os eletrodos em suas têmporas e dá a descarga. O corpo dá um pequeno salto. Pára. Começa a repuxar inteiro, como se sofresse  uma intensa cãibra dos pés à cabeça. Isso dura alguns segundos. Em mais alguns minutos o homem deve acordar.

“Mas, doutor, qual é a explicação científica? O que isso causa no cérebro?”, pergunto. “Olha, na verdade, ainda não se sabe exatamente o que acontece. Só se sabe que funciona.”

A partir daí, o discurso para mim muda de tom. Se não há explicação científica, o eletrochoque poderia também ser aplicado por curandeiros, ou na sessão do descarrego da Igreja Universal! “E quais as con-seqüências?”, pergunta Natalia. “Poucas, uma pequena perda de memória que dura alguns dias, nada mais grave.”

Assistimos a mais uma aplicação, em um rapaz de ascendência japonesa, que seguiu o mesmo ritual. Com a diferença de que este tinha tomado água antes da aplicação, então começou a vomitar e quase sufocou com a água. Conversei com seus parentes, levada pelo doutor.

“Pergunta pra eles como o paciente melhora depois da aplicação!” Eram dois senhores de idade. O pai e a irmã. Mal falavam português. Do que me responderam, só entendi que o moço havia melhorado muito, porque antes só queria ficar dormindo, e agora assiste à televisão.

“A eletroconvulsoterapia nasceu em 1930, quando um grupo de médicos percebeu que após ataques epiléticos os pacientes com problemas mentais tinham melhora signifi cativa durante alguns dias”, conta Renato Del Sant. “Então, eles pensaram: ‘Vamos provocar um ataque epilético’. E foi revolucionário na época, porque não havia remédios.

Com o passar dos anos, o ECT passou de recurso terapêutico a castigo em manicômios superlotados como o Juquery. Na década de 90, ‘a década do cérebro’, a eletroconvulsoterapia voltou. Mas hoje é necessária uma autorização por escrito da pessoa ou da família, a aplicação é feita com anestesia, e a família vem junto, toma até um café da manhã depois!”

Os pacientes de hospitais como o Juquery e o Pinel vão ao Instituto tomar o ECT. “E há fi la para o procedimento”, diz a assessora do IPQ. As aplicações são indicadas, segundo Del Sant, em casos de depressão profunda, esquizofrenias – principalmente as catatônicas – e para gestantes e idosos, que não podem tomar remédios fortes. Perguntado sobre o sucesso do tratamento, Paulo Amarante, que é dos poucos psiquiatras que conde-nam a prática, rebate: “Para qualquer coisa que você for vender, há cliente. Basta você fazer uma boa propaganda. Você chega lá, um médico de uma universidade de renome, vestido de branco, com o poder da ciência, do Esta-do e do dinheiro, te falando que isso vai te curar, você faz!” Carrano vai além: “Eles dizem que com algumas sessões de doze aplicações, dia sim, dia não, somem os sintomas de depressão. Pois ele (o paciente) esquecerá até quem ele é! Solução rápida e eficiente que acaba com a sua mente.

Os psiquiatras tupiniquins estão envolvidos e empolgados com aparelhos ultra-sofi sticados para a aplicação do ECT, que custam apenas 10.000 dólares, e que têm os efeitos minimizados por drogas fortes. E a eletricidade é humanizada”.Há várias ONGs espalhadas pelo mundo que condenam a prática. Um exem-plo é a Coalizão para a Abolição do Eletrochoque, sediada nos Estados Unidos, formada por psiquiatras, psicólogos e ex-pacientes psiquiátricos. John Breeding, psicólogo da organização, diz que o eletrochoque, em longo prazo, causa danos de memória e queima de neurônios irreversível.

 “O cérebro se submete a uma descarga de mais de 100 volts de tempos em tempos, criando um dano físico para o tecido. Isso também causa um excitamento extremo, prejudicando os neurônios e causando perda permanente de memória. As pessoas ficam com dificuldades de receber novas informações, dificuldade em se adaptar a novos empregos e conseqüentemente de ter alguma função social. Além disso, estudos mostram que, após três meses da última aplicação, você tem 100 por cento de regressão da doença.

”Os procedimentos usados pela psiquiatria moderna pouco diferem dos métodos de antigamente. Ainda se aplicam os choques, ainda se amarram pes-soas (contenção), ainda se entopem estômagos e veias com remédios fortes.

A diferença está nos nomes, mais técnicos, mais sonoros, na alta tecnologia dos remédios, que deslumbram alguns médicos, no código de ética, que exige mais burocracia no trato aos pacientes. Roupa nova em corpo velho. A verdadeira reforma psiquiátrica ainda não aconteceu na mente da maioria dos tutores da loucura. Nem no inconsciente coletivo, o que causa o preconceito, repele e encarcera o que não entende

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