UM MATA-LEÃO |
As crianças daquele bairro cantavam alegremente, sob a batuta da professorinha, antiga canção de roda que revelava o amor e a dó que a população tinha pelos animais, principalmente os chamado vira-latas. A letra da canção merece ser reproduzida:
A carrocinha pegou
Três cachorros de uma vez
A carrocinha pegou
Três cachorros de uma vez
Tra-lá-lá
Que gente é essa
Tra-lá-lá
Que gente má
Da carrocinha pulou
Três cachorros de uma vez
Da carrocinha pulou
Três cachorros de uma vez
Tra-lá-lá
Que bom à beça
Tra-lá-lá
Vamos cantar
Do outro lado da praça um carro estaciona e três "bombados", descem do mesmo, com pinta de cana e, sorrateiramente caminham em direção a um bar, onde iriam pegar um alcoólico anônimo recaído. Eles já sabiam de tudo. Era "canal dado", como se diz na gíria.
Sujeito tranquilo, tipo paz e amor... Bebia cerveja, tranquilamente!
O TRATAMENTO |
Não mais que de repente o líder da equipe deu um mata-leão no pobre coitado, enquanto os outros dois tratavam de algema-lo, como se fosse um criminoso. O alcoólico arroxeava... quando a tarefa findou, foi solto do mata leão. O líder então disse:
- Você perdeu!
- Perdi o quê?
- Ah, compadre você perdeu... quem mandou você beber?
- O que vocês vão fazer comigo? não sou bandido, nem cometi crime algum!
- Cala a boca, merda!
Jogaram o cara no fundo do carro. A porta do assento em que foi colocado, não abria. Tinha tranca especial.
Ainda era possivel ele ouvir a última estrofe da "Carrocinha":
"Tra-lá-lá
Que gente é essa
Tra-lá-lá
Que gente má"
O alcoólico, sem nada entender indagou:
- Tão me levando pra onde?
- Você vai para a "desova".
O alcoólico emudeceu. Ia ser assassinado, pensou e calou. Voltou a pensar alto:
- Se é pra morrer, morrerei como homem, não serei o covarde dessa história.
Mais adiante um enorme outdoor mostrava o quanto o IBAMA era eficaz e bom e o bebado começou a cantar "a carrocinha pegou este pobre bebado de uma vez"... Interrompeu e disse:
- Vocês são traiçoeiros e covardes!
Isso lhe custou um tapa na cara. Mandaram ele calar a boca e ficar quietinho, vez que estava indo para um lugar bom, onde filhinho apanha e mamãe não vê.
O alcoólico nada entendia. Tres dias depois encarcerado numa "clínica" ele caiu na real. A humilhação se iniciava. Recebia a comida através de uma grade. Via tanta diferente gente. De imediato assistiu uma briga por um motivo qualquer. No quinto dia um colega de quarto o chamou para se unir a facção dele:
- aqui é assim, ou você fica de um lado, ou fica do outro. Não tem meio termo não! Tem alguma grana ai? se tiver algo de valor me dê que posso conseguir sua droga de preferencia.
O alcólico, a esta altura, sabia que foi a família que acionou os "caras" que pegaram ele. O que o mesmo não compreendia era a medida da maldade. O emprego da violência. E, no fundo sentiu uma enorme desafeição pelos que fizeram "isso" com ele. Deitou-se, cobriu-se até a cabeça e começou a chorar. Depois disso ele repetia todos os dias: posso levar o tempo que for, mas ao sair daqui vou tomar um porre!
-Faz isso não, camarada! ai te pegam de novo e te pregam nessa mesma cruz. Aqui é pior que na cadeia. Lá eu recebia visita íntima. Não existe médico e tudo é de fachada. Sua família vai ser embromada, vai ser manipulada e vão lhe deixar preso por um tempo de 6 meses. O contrato aqui é de 6 meses. Você tá pagando a pena de um réu primário que furtou. Compreende ? Você vai cumprir sua sentença e quando sair vai virar bicho cheio de ódio da sua família, não é mesmo?
A SENTENÇA |
O alcoólico nunca teve esses tipos de papo, mas, no fundo, em seu silêncio, consentiu...
E os três cachorros que a carrocinha pegou, eram mais importante que ele. A vida dele, não mais lhe pertencia. A família se apropriou de tudo o que um ser humano pode prezar. Sentiu que sua liberdade de ir e vir fora violentada e que o direito dele, doravante, seria o de obedecer. Uma usurpação de direitos, como numa ditadura.
Triste ele matutava desaparecer no mundo. Sumir de todos para não passar por tanta dor.
Quando saiu, foi visitar o pai, a mãe, e depois sumiu no mundo. Ninguém mais teve notícia dele. Para ele morrer é nunca mais ser visto. Ele morreu para a família e a família morreu para ele.
Nenhum comentário :
Postar um comentário
soporhoje10@gmail.com