sábado, 31 de maio de 2014

"Na volta do barco é que sente, o quanto deixou de cumprir"


Hoje o título deste post corresponde a dois versos da composição "Roda Viva", de Chico Buarque, dos quais procurei retirar o caráter político, transferindo-os para um outro contexto, que diz respeito ao breve balanço que faço do meu uso de drogas e das consequências que tal uso significou em minha vida. 

Comecei usando drogas lícitas: nicotina e álcool. Era muito careta e excelente estudante, sem, necessariamente, ser um CDF. 

Um ano antes de me iniciar no uso da maconha, dois amigos discutiam a prova de vestibular que haviam feito e procuravam saber se acertaram as questões. Ainda não havia saído o gabarito da prova que examinavam, que era de matemática. Junto com eles fui resolvendo as questões e dando a eles minhas respostas. Eles marcavam minhas respostas. Dia seguinte um deles me falou que havia acertado tudo e fechado a prova. 

Pois bem, em um ano de uso, minha capacidade de concentração e memória estavam desgastadas...

Véspera de prova usei.  No dia da primeira prova, minha performance caiu assustadoramente. O resultado não poderia ser outro, perdi o vestibular. 

No curso de um ano deixei de ser um aluno atento, pois assistia aulas, depois da "cabeça feita" pois sempre tinha que dar uma "bola". Aquela máxima de Bezerra da Silva não existia: "vou apertar, mas não vou acender agora. Se segura malandro, pra fazer a cabeça tem hora". Era época do "falou tá falado, não tem discussão. Imperava o absolutismo ditatorial, as botas e seus generais. Ditadura e torturas nunca mais. 

Passado dois anos, arrumei uma namorada, por quem fui apaixonado. Fizemos vestibular, ela passou em Medicina e eu perdi. Curioso é que eu havia obtido, de uma certa pessoa, todas as provas que seriam realizadas, com as respectivas respostas. 

Ainda dizem que inexiste fraude, imagine só! 

Mas consegui o inacreditável, no dia da prova me deu um branco e tudo que havia decorado foi para o brejo. Ela ficou triste comigo, pois eu havia fornecido cópia das provas para ela, que era muito boa em todos os sentidos. "Mas logo você, que tinha tudo e nos deu, acabou esquecendo?". Para passar ela não precisava de nada, pois era muito inteligente e competente. Era, não, ela é!

Preocupada comigo, disse que passaria a me dar aulas. Eu gostava das aulas dela porque uníamos o útil ao agradável. Era tão bom estudar com ela. Era muito didática!

Fiz o vestibular de meio de ano, que era mero teste. Passei com ótima colocação. Era ótimo sinal de que passaria no final do ano. Contudo, resolvi me matricular no curso, em que fui aprovado, e fui largando de lado os estudos. 

Tornei-me auto confiante e recomecei a intensificar o uso da "ganja". Depois fui me distanciando dela, a quem sou eternamente agradecido, por tudo. Terminei com ela. Creio que errei, mas aconteceu e não posso lamentar o que passou. 

Usava bebidas alcoólicas também. A maconha amplificava meus sentidos, mas me retirava outras coisas, como a capacidade de concentração e redução da memória. Então perdi muito e, devido ao uso, abandonei o curso e já não queria mais estudar. 

Depois, cansei de usar e cessei o uso. Recuperei-me e fiz um excelente vestibular para o curso de Direito, numa concorrência bastante elevada e qualificada. Concluídas as provas eu sabia, antecipadamente, que havia passado e  passei. Depois de dois anos, abandonei o curso, por outras razões.  

Mas o uso não me prejudicou apenas no campo dos estudos. Perdi amigos, ganhei o estigma, portas se fecharam e, mesmo liberto do uso, era vitimado pelo preconceito e discriminação. As perdas foram grandes. Porém, depois que as pessoas foram verificando que eu era um outro cara, muita coisa foi mudando, mas nas cabecinhas daquela gente desinformada, eu era um bicho papão. Aliás, o cérebro dessas figurinhas, miúdas e desinformadas, é tão limitado! Não custou para reconquistar muita gente e delas receber apoio e solidariedade. A confiança foi restabelecida. Mas o estigma permaneceu. Ressalto que, quanto mais inteligentes são as pessoas, mais solidárias, solicitas e prestativas elas se revelam. 

Saliento que, na época em que usei maconha, era comum usar outras drogas (pesadas), que não me convém citar, nem ficar recordando. Em meu balanço tudo contribuiu para diversas perdas. Estou convencido de que o melhor remédio seria apagar tudo que me fizesse lembrar que um dia usei drogas da memória, mas isto é impossível, por isso reedito o solo das minhas recordações mais amargas. 

Hoje o drama se repete. Cessei o uso, mas o usuário de drogas carrega consigo o descrédito, a desconfiança e tantas coisas mais e más, no meio social em que convive e habita. Um ex-usuário tem que percorrer a "Estrada de Damasco"... 

Em minha avaliação, fica evidente que o chavão "USAR É PERDER" é correto. Perdi muitas coisas, principalmente oportunidades. 

Desaconselho quem quer que seja a usar, seja qual for o motivo. Não vale à pena experimentar, no meu entendimento. Hoje procuro viver um dia de cada vez.

Para finalizar, no retorno da sobriedade (o barco) é que percebi o quanto deixei de cumprir. Quantas coisas boas deixei de edificar e construir, deixando pelo caminho marcas de decepção. Peço desculpas!

Hoje, mesmo adoentado, de corpo mole, achei que não devia ficar sem escrever só pra não ficar ausente!

O barco voltou e me resta fazer cumprir o que deixei de lado. Interessante é que me vejo de outra maneira. Mas o mundo circundante me olha com os mesmos olhos, com as mesmas velhas opiniões... 

Sinto o antigo desconforto do descrédito a me acompanhar, mas a vida é como ela é e só posso modificar a mim mesmo. "Falem bem, ou mal, mas falem de mim"! 
SPH

sexta-feira, 30 de maio de 2014

Só Por Hoje para quem busca recuperação com DOZE PASSOS.mp4


O pensamento parece uma coisa à toa


Hoje eu queria escrever algo. Comecei a escrever, mas não deu para concluir. "O pensamento parece uma coisa à toa, mas como e que a gente voa, quando começa a pensar"?... 

Tive o prazer de receber a visita de uma irmã, inesperadamente. Era preciso conversar com uma filha, trocar algumas idéias. Não mais que de repente um filho aparece para me passar alguns papéis... Contas a pagar e, nessas horas paro e penso: Deus proverá! 

Então o dia não foi de marasmo. Foi bom sair da monotonia e tagarelar e soltar o verbo de  maneira sóbria.

A solidão, para mim, é má companhia. Pensei em abrir o notebook, mas não havia como. Muitas vezes preciso estar em silêncio, no silêncio que a linha de pensamento requer para que possa exterioriza-lo, sob a forma de texto.

Hoje, só por hoje, não li as reflexões diárias de A.A., nem de N.A. e minhas metas tiveram que ser modificadas. O sentimento é o de ter deixado de cumprir tarefas, de ter deixado de cumprir certas obrigações rotineiras. Mas, muitas vezes, é bom sair da rotina para não ficar fixado em uma única atividade.

Não abri ainda as minhas caixas de e-mails. Tenho uma coleção de e-mails. Um ótimo exercício para a memória pois tenho que digitar diversas senhas. Mas é preciso, vez em quando, relaxar. 

Abri um caderno e, feito isto, caiu um pedaço de papel, que estava dentro do mesmo. Nele constava nomes de alguns companheiros e companheiras de adicção. Como deve estar cada um? Espero que reabilitados.

Relembrei de alguns e fixei-me numa garota que um dia chegou naquele lugar encantado em que estive para buscar minha reabilitação.

Ela havia chegado do exterior. Estava bem magrinha e aparentava ser usuária de crack. Ela mostrava as marcas da auto-flagelação que praticava contra ela própria. O tempo passou  e ela foi nos contando coisas. Era usuária de heroína. Um médico psiquiatra famoso, especialista em lidar com dependentes e dependência química, sugeriu a ela a redução de danos. Sugeriu que mudasse para a cocaína e essa coisa de redução de danos pode provocar reações loucas, mas a redução de danos funciona. 

Já me sugeriram fumar marijuana e não achei legal. Foi uma droga que, de tanto usar, me causou o efeito da tolerância. Era preciso fumar e fumar e fumar e não ficava do jeito desejado. Cansei e parei. 

Outros fatores me conduziram a parar. Uma das razões que me fez cessar o uso foi uma loucura praticada pela Polícia Federal, que, naquela época, era muito mais voltada para a repressão política. Era o tempo do pão e circo. Usar maconha também era uma contravenção penal e, mais do que isso, uma form de se rebelar.

Foi uma grande armação que resultou em uma encenação. O único cara que ficou assustado com a ação cinematográfica fui eu...

Foi uma farsa!

De um lado o mundo careta se deliciava com o fato de ter "dançado" e no mundo dos "muito doidos", dava status, de quase um mito. Pra mim foi a maior sujeira! Que fama infame, de um lado e do outro!

- Pô, cara, foi você que a Federal prendeu? Acho que você está me confundindo com outra pessoa, respondia.  Uma chateação!

Pior era sacar que tudo estava previamente armado. Reexaminei, na época, cena por cena, e ia me dando conta de que fui atraiçoado. 

Éramos três dentro de um passat azul, que foi interceptado por um fusca. A posição em que o passat estava revelava que o piloto cometeu uma imprudência muito grande, de modo a facilitar a interceptação do carro.  

Tudo aconteceu no momento em que centenas de mulheres, que trabalhavam numa fábrica, saiam do trabalho para almoço. Coincidência! Uma "campanha desmoralizante"

Os dois federais deviam ser agentes especiais. Tocaram o terror. O piloto do fusca meteu o trinta e oito na minha cabeça. Tomei um susto grande! Que merda era aquela? Pensei que o cara fosse detonar a arma, mas eles queriam a droga que não existia: - CADÊ A MACONHA! 

Um cara, ex-cabo da marinha, tinha enrolado um toca-fitas numa calça jeans. Vacilão! Era um estranho para mim e era no bagulho dele que os caras se apegavam para gritar que encontraram a maconha. Quem viu a cena deve ter imaginado que eles diziam a verdade. 

Que sufoco! Mãos na parede, pernas abertas, revista e algema. Sacanagem! Depois nos metem dentro do fusca. O co-piloto apontava a arma e dizia: "abra logo o serviço, malandro", em tom de intimidação. Depois dizia: - Vamos levar eles direto para a pedreira, se eles não falarem jogamos todos lá embaixo! 

O cano do trinta e oito apontado na minha cabeça e o insistente pedido para falar algo que não existia, que não sabia. Mas, por momentos, imaginei que um dos dois, com quem estava apenas de carona, haviam aprontado algo terrível. Surge uma história de uma Kombi branca, que nunca vi. Perguntam com que dinheiro Z.T., comprou a mesma. Depois falam em assalto a banco. Imaginei que estava fodido. 

Chegamos na Federal, vi um monte de gente que jamais poderia imaginar fossem agentes federais, pessoas simples. Fomos para o pavimento superior.

Empurrado, cai no chão e a algema apertou. Demorou um pouco. Depois fomos conduzidos para uma sala, uma espécie de sala de pancadaria.Alguém estava sendo torturado, pois havia um rádio com um som altíssimo e ensurdecedor.

Um não podia ver o outro. Tinha que olhar o agente que estava sentado numa carteira. Ele de um lado eu do outro. Dai ouvi gritos e virei para ver o que estava acontecendo. Z.T. estava sendo, aparentemente, espancado. Depois o ex-cabo da marinha, em pé, fingia estar apanhando. Filho da puta!

Perguntas e mais perguntas. Entra um cara e me puxa pelos cabelos e com os punhos fechados. Fez de conta que me daria um direto na cara. Outro agente o deteve. Já dava para sacar que era uma armação. 

Já não me recordo bem como, mas fomos levados para uma cela. O ex-cabo, não sei onde ficou. Circulou a versão mentirosa de que havia fugido da Federal.

Na cela, com voz baixa, Z.T. disse que iria limpar minha barra e revelar minha inocência. Tiram ele da cela para depor, fiquei sozinho. 

De repente, em fila indiana, começam a passar um bocado de homens de paletó e gravata. Ao passarem diante de mim, paravam, um a um, me olhavam e seguiam em frente. Que porra era aquilo? Só um parou, me olhou e me mandou cuspir. Não tinha cuspe! Falei, que não tinha cuspe algum porque tinha muita sede. Dai, aparece um agente idoso que começa a tirar um sarro. Ele dizia que haviam pegado um tubarão. "Peixe grande"! Depois falava em inglês com um negão, que, com certeza era africano e se achava preso na cela vizinha. 

O carcereiro, senhor de idade, me olhava com os olhos de piedade. Chamei ele e falei que tinha sede e fome. Ele me falou algumas palavras de consolo e me disse que poderia comprar um lanche pra mim. Tinha um dinheirinho, que ficou intocável, no meu bolso, denotando uma falha na revista... Sacou?

O velho carcereiro saiu. Da cela eu via, pelo portão da garagem dos fundos, algumas lanchonetes e o movimento da rua. 

O senhor já velhinho, de cor escura, foi muito atencioso. Me deu o lanche comprado e uma coca-cola. Delícia! 

Me pareceu ser um bom sujeito. Agradeci e ofereci o troco para ele, que recusou. Depois de lanchar, me retiraram da cela e me levaram para uma sala. 

O "delegado", com sotaque bem nordestino, mandou-me sentar. Pegou o trinta e oito dele e colocou em cima da mesa, bem ao alcance das minhas mãos algemadas. Perguntou se eu queria afrouxar a algema. Disse que sim. Ele folgou. A arma lá em cima, convidativa para otário. Truque antigo, armadilha de armadores! 

O cara senta numa cadeira em que ficava uma máquina de escrever. Começa a me interrogar. Minhas respostas eram evasivas. O ex-cabo da marinha havia dito que fumei maconha com ele. Isso me fez - quando estava na sala de porradas - levantar da cadeira e, mesmo algemado, intentar avançar, com fúria, contra aquele sacana!. 

Então o delegado começa a fazer perguntas. Acho que começou perguntando quanto tempo eu fazia uso de maconha. Falei que era fumante social e que usei apenas para ir a uma festinha e nada mais que isso. 

Comprou maconha onde? Nunca comprei nada, não entendo como funciona. Nem sei quem vai comprar porque tudo é sigiloso. Dou apenas uma pequena importância. Não sei quem vai, nem quem traz. Só vejo quando o baseado é aceso e dou uns tragos e nada mais que isso. 

Ele ia escrevendo: - Perguntado se... respondeu que...

Dai o cara se  irritou  com  minhas respostas e deu um tapa na  mesa. E, em tom de  intimidação,  berrou:: "Porra! vai dizer que não sabe nem um nome de traficante?!" Então, com o tom de voz civilizado, respondi, bem, só ouvi falar de um. O delegado, satisfeito, perguntou, qual o nome?

Falei que era "Ricardo Coração de Leão" e ele escreveu, acreditando. Citava o lendário rei da Inglaterra e ele levou a sério. 

O depoimento me foi dado para ler e assinar. Era bem pequeno. Li e assinei. 

Na realidade fumar maconha, para mim, não era nada demais. Por isso não quis dizer que nunca havia fumado, mas não podia dizer que fumava intensamente. 

O meu advogado era advogado de presos políticos e fui logo solto. Antes, porém, o advogado, homem exemplar, corajoso, valente e respeitado, na frente de autoridades da SPF me perguntou, em tom altivo:

- Alguém lhe torturou, aqui dentro? Respondi que não. 

Esqueci de dizer que me ficharam! Disse no carro e ele me deu um severo esporro!

Depois da pergunta e da resposta, ouvi uma "autoridade" dizer que eu poderia vir a ser chamado para depor novamente. O advogado me pegou pelo braço e foi me conduzindo para fora da sede da PF. Tirou o paletó dele e mandou que eu vestisse o mesmo. Entrei no carro dele e partimos. 

Levei um sermão merecido e esta revelação embaraçosa acaba com aquela frase que me trouxe a escrever isto: " o pensamento parece uma coisa à toa, mas como é que a gente voa quando começa a pensar?"...

Eu era um cara que criticava muito a ditadura, abertamente. A lei tem "ouvidos, pra te delatar"...  Não queria falar sobre isso! 

SPH

quinta-feira, 29 de maio de 2014

O QUE É DESLIGAMENTO EMOCIONAL - AABR



Desligamento não significa deixar de amar,significa que não posso fazer pelo outro aquilo que ele precisa fazer.

Desligamento não é cortar a comunicação, é a admissão de que não posso controlar uma outra pessoa.

Desligamento não é facilitação, mas deixar que haja aprendizado através das consequências naturais.

Desligamento é admitir impotência, o que significa que a solução não está nas minhas mãos.

Desligamento não é tentar mudar ou culpar o outro, é fazer o melhor para mim mesmo.

Desligamento não é cuidar do outro, mas sim importar-se com o outro.

Desligamento,então não é consertar, mas dar apoio.

Desligamento não é julgar, mas permitir que o outro seja um ser humano.

Desligamento não é ficar no meio, controlando os resultados, mas deixar que os outros influam nos seus próprios destinos.

Desligamento não é ser protetor, é permitir que o outro encare a realidade.
Desligamento não é negar, mas aceitar.

Desligamento não é azucrinar, rejeitar ou discutir, porém descobrir minhas próprias limitações e corrigi-las.

Desligamento não é ajeitar tudo de acordo com os meus desejos, mas viver cada dia que vier e cuidar de mim mesmo(a) nesse dia.

Desligamento não é me arrepender do passado, mas crescer e viver o presente.
Desligar-se é temer menos e amar mais.


Autor desconhecido - Traduzido da revista "Alcoholism and Addiction - Outubro 1986

Vivência nº 48 de Julho/Agosto 1997 

Fonte: AABR - Visite o chat online => www.aabr-online.com.br/prochatrooms 

quarta-feira, 28 de maio de 2014

REFLEXÕES DIÁRIAS - ALCOÓLICOS ANÔNIMOS


QUARTA-FEIRA, 28 de Maio DE 2014.

DIREITOS IGUAIS

Uma vez ou outra, Grupos de A.A. resolvem inventar regras... Após um período de medo e intolerância, o Grupo se acalma... Não queremos negar a ninguém a oportunidade de recuperar-se do alcoolismo. Queremos ser justos, tanto quanto possível, sempre ficando ao alcance de todos.
A TRADIÇÃO DE A.A. COMO SE DESENVOLVEU, p. 14, 15, 17

A.A. me ofereceu completa liberdade e me aceitou na Irmandade por mim mesmo. Para ser membro não dependia de concordância, sucesso financeiro ou educação, e sou muito grato por isto. Muitas vezes me pergunto se estendo essa mesma igualdade aos outros ou se nego a eles a liberdade de ser diferentes.

Hoje tento substituir meu medo e minha intolerância pela fé, paciência, amor e aceitação. Posso levar estas forças para meu Grupo de A.A., minha casa e meu escritório. Faço um esforço para levar minha atitude positiva para qualquer lugar que vou.

Não tenho nem o direito, nem a responsabilidade de julgar os outros. Dependendo da minha atitude, posso ver os ingressantes em A.A., membros da família e amigos, como ameaças ou como professores. Quando penso em algum dos meus julgamentos passados, fica claro como meu farisaísmo me causou danos espirituais.

REFLEXÕES DIÁRIAS, p. 157

Meditação do Dia - Narcóticos Anônimos


QUARTA, 28 DE MAIO DE 2014

A forma como concebemos
"Examinamos as nossas vidas e descobrimos quem realmente somos. Ser-se verdadeiramente humilde é aceitarmo-nos e tentarmos honestamente ser nós próprios." 
Texto Básico, p. 41

Como adictos na ativa, as exigências da nossa doença determinaram a nossa personalidade. 

Podíamos ser quem ou aquilo que precisássemos ser para conseguirmos a nossa dose. Éramos máquinas de sobrevivência, adaptando-nos facilmente a qualquer circunstância de uma vida de uso. 

Uma vez em recuperação, iniciamos uma vida nova e diferente. Muitos de nós não tinham ideia do comportamento apropriado para cada situação. Alguns de nós não sabiam como falar com as pessoas, como se vestir ou como se comportar em público. Não podíamos ser nós próprios porque já não sabíamos mais quem éramos. 

Os Doze Passos dão-nos um método simples para descobrirmos quem realmente somos. Pomos a descoberto as nossas qualidades e os nossos defeitos, as coisas que gostamos em nós e aquelas que não nos agradam tanto. 

Através do poder reparador do Doze Passos, começamos a perceber que somos indivíduos, criados para sermos quem somos pelo Poder Superior da nossa concepção. 

A verdadeira recuperação começa quando compreendemos que se o nosso Poder Superior nos criou deste modo, deve então estar bem sermos quem somos.

Só por hoje: Ao trabalhar os passos posso sentir a liberdade de ser eu próprio, a pessoa que o meu Poder Superior pretendeu que eu fosse.

Fonte: http://www.na-pt.org/sph.php  (em português de Portugal)


segunda-feira, 26 de maio de 2014

A mudança começa dentro de cada um de nós


Mudar, remodelar, melhorar tudo é tarefa complexa. Começa que implementar qualquer mudança, mesmo no lar e em sociedade, acarreta em resistência.

Então vamos imaginar o quanto é difícil modificar o inconsciente coletivo, modificar uma cultura, alterar comportamentos individuais, inadequados. Sabemos que "é mais fácil desintegrar um átomo, do que acabar com os preconceitos". A afirmação é verdadeira e acrescento que foi mais fácil fazer o homem chegar a lua, que fazê-lo edificar uma cultura de paz. 

Existem interesses escusos por detrás de cada guerra, são, geralmente, colonialistas, mas os interesses que se escondem sob sete chaves, detrás de cortinas nebulosas de fumaça, nós, a maioria dos mortais, desconhecemos. 

Nós vivemos no país tropical, onde o futebol é quase que uma instituição sagrada, como o carnaval, a cachaça e o jogo do bicho. 

Vivemos em uma sociedade altamente organizada, onde o caos é organizado. Isso não se aplica apenas à física, não. Os interesses são divergentes, os meios justificam fins e fins justificam meios. Existem rebeldes com causa e rebeldes sem causa. 

A sociedade é complexa e não iremos, facilmente, levar os legisladores e jurisconsultos, a modificarem certos aspectos legais, em nosso ordenamento jurídico, como o de redefinir e readequar conceitos no que concerne aos direitos de um dependente químico e de um ex-dependente (há que haver uma distinção). Uma pessoa que deixou de usar precisa ser vista com outros olhos no campo do direito e da justiça. Se mudou para melhor, porque vamos lhe destinar o pior?

Aquela velha opinião formada sobre tudo precisa de pessoas com mente aberta e arejada, além de permeáveis às novas idéias e conceitos. Sem paradigmas, nem tabus e dogmas! 

É preciso redefinir muita coisa, inclusive o que é vício e viciado além de distinguir o hábito do vício, dentre outras coisas.  

Hoje, com o que vi e vivi, posso dizer que nada é impossível para um adicto se libertar da droga que utiliza e muitas vezes o escraviza. O conceito de incapacidade relativa é relativo, em meu entendimento precisa ser revisto. Mas quem é que vai pensar vasto, numa cultura que demoniza o crack, para tirar proveito da situação? Quem vai dar o ponta-pé inicial, ou pegar este gancho? 

Muitos legisladores, destituídos de uma capacidade reflexiva e de um senso crítico apurado, nada questiona e tudo aceita. São levados pela maré! São surfistas que pegam altas "ondas", sem ir no mar.

A política higienista, de limpeza, aplicada contra usuários de crack não funciona, agrava. Esconde dos olhos e do coração da sociedade uma chaga social, dando a impressão de mudança favorável.

Inexistem dados estatísticos sérios, científicos, sobre recuperação de usuários de drogas, que foram levados compulsoriamente para "tratamento".

Felizmente, no âmbito da dependência química, existem pessoas que tendem a evoluir mentalmente e que buscam melhorar a podridão que se encontra por detrás da questão das drogas. Estas pessoas se organizam, porque sabem que sozinhas nada significam.

Hoje existem movimentos que lutam por melhorias no campo da saúde pública, mesmo sabendo que a saúde privada sabota o que a população reclama e deseja.

A saúde privada é detentora do Capital e os defensores da saúde pública, são pessoas inteligentes, abnegadas, que abraçam uma causa, sem fins remuneratórios. Lutam por um ideal. A estas pessoas devemos muitas mudanças. 

Não fossem os que se insurgiram contra a ditadura militar, uns pegando em armas, outros no campo logístico, outros nas tribunas parlamentares, outros organizando pequenos grupos de pessoas, para conscientizá-las e difundir suas idéias de redemocratização no país. Isso se chama  trabalho de massa. 

Sem trabalhar as massas e mobiliza-las, não obteremos mudanças significativas no campo da saúde pública. 

Para finalizar e mostrar o quanto é difícil mudar lembro que um ex-governador, conhecido, quis erradicar o analfabetismo, no estado, mas teve seu projeto totalmente sabotado, tanto na capital, quanto no interior. É triste constatar tal realidade!

Essas coisas são tão absurdas... Ainda existem inúmeros absurdos no terreno das políticas e legislação que se referem aos dependentes químicos. Mudar, já mencionamos,  implica resistências e a burrice é tão resistente que pode ser considerada uma insanidade, tratável, controlável. Se a burrice progride, a sociedade continuará sendo portadora de uma doença incurável, progressiva e fatal, mas tratável. 

Dizem que a mudança começa dentro de cada um de nós, tomara que muita gente aceite e admita mudar a si mesmo, porque juntos e unidos poderemos concretizar muita coisa.

Defeitos de caráter e outras considerações



Falar na existência de defeitos de caráter, em quem quer que seja, pode ser mero juízo de valor, não de fato, ou mesmo de fato, mas não significa dizer que tais imperfeições são única e meramente uma condição que só se aplica aos adictos, esta categoria de seres humanos tão mal vista pela opinião pública, por desinformação, principalmente. 

Afirmar que defeitos de caráter é algo que só acontece com adictos, não é uma verdade, mas um sofisma. As premissas podem ser corretas, mas a conclusão é errônea, porque defeitos de caráter não escolhe classe social, etnia, religião, opção sexual, é onipresente. 

Defeitos de caráter podemos verificar em uma infinidade de pessoas que não utilizam substâncias tóxicas. Não é condição privativa de um adicto. O que se busca - quando se diz para um adicto que o mesmo possui defeitos de caráter -é para alerta-lo para tal revelação, para que procure em si, não nos outros, tudo quanto precisa corrigir em si mesmo, transformando a pedra bruta, em um brilhante, ou, quiça, em um diamante. Em suma em uma pessoa nova, mais humanizada e mais humana, dotada de princípios que passarão a norteá-los. 

Há quem diga que fulano de tal é agressivo e que isso decorre do uso da droga. Pode ser e pode não ser. Diversos fatores devem ser observados em uma pessoa agressiva, pois o ser agressivo não é necessariamente um usuário de drogas. Nem a droga, necessariamente, transforma pessoas em seres agressivos. 

Em qualquer parte do mundo iremos encontrar seres humanos que mais se assemelham a bichos.  É complexo o tema "agressividade".  

Será que um cara que cumpriu sentença, em um presidio, sairá de lá como um anjo, ressocializado e perfeito? Se acontecer será uma exceção, porque nosso sistema penitencial é muito mais uma escola do crime do que uma instituição de reabilitação, de recuperação...

Manicômios, do gênero que o livro Canto dos Malditos revela, tanto quanto os textos redigidos pela jornalista Ana Dip, acrescidos de numerosos filmes e livros, mostram uma realidade obscena e deplorável, uma indignidade, pois é inconcebível ver como seres humanos são "tratados", nestes locais em que a seriedade, a ética, a responsabilidade e o profissionalismo deveriam presidir a consciência de que se propõe cuidar de seres vivos adoecidos.

Do mesmo modo observamos as similaridades manicomiais em clínicas para adictos. Estas "cínicas" que prometem, mundos e fundos, para recuperar dependentes químicos, mediante propaganda enganosa, não passam de centros de tortura e maus tratos... só prestam um desserviço à sociedade. O poder público não pode, nem deve financiar estes locais. Seria ser, assim procedendo, coparticipe e conivente com as atrocidades que dia a dia vem sendo revelada.  



sexta-feira, 23 de maio de 2014

A carrocinha e o resgate, que diferença faz?

UM MATA-LEÃO

As crianças daquele bairro cantavam alegremente, sob a batuta da professorinha, antiga canção de roda que revelava o amor e a dó que a população tinha pelos animais, principalmente os chamado vira-latas. A letra da canção merece ser reproduzida:

A carrocinha pegou
Três cachorros de uma vez
A carrocinha pegou
Três cachorros de uma vez

Tra-lá-lá
Que gente é essa
Tra-lá-lá
Que gente má

Da carrocinha pulou
Três cachorros de uma vez
Da carrocinha pulou
Três cachorros de uma vez

Tra-lá-lá
Que bom à beça
Tra-lá-lá
Vamos cantar

Do outro lado da praça um carro estaciona e três "bombados", descem do mesmo, com pinta de cana e, sorrateiramente caminham em direção a um bar, onde iriam pegar um alcoólico anônimo recaído. Eles já sabiam de tudo. Era "canal dado", como se diz na gíria. 

Sujeito tranquilo, tipo paz e amor... Bebia cerveja, tranquilamente!

O TRATAMENTO


Não mais que de repente o líder da equipe deu um mata-leão no pobre coitado, enquanto os outros dois tratavam de algema-lo, como se fosse um criminoso.  O alcoólico arroxeava... quando a tarefa findou, foi solto do mata leão. O líder então disse:

- Você perdeu!
- Perdi o quê?
- Ah, compadre você perdeu... quem mandou você beber?
- O que vocês vão fazer comigo? não sou bandido, nem cometi crime algum!
- Cala a boca, merda!

Jogaram o cara no fundo do carro. A porta do assento em que foi colocado, não abria. Tinha tranca especial. 

Ainda era possivel ele ouvir a última estrofe da "Carrocinha":

"Tra-lá-lá
Que gente é essa
Tra-lá-lá
Que gente má"

O alcoólico, sem nada entender indagou:

- Tão me levando pra onde?

- Você vai para a "desova".

O alcoólico emudeceu. Ia ser assassinado, pensou e calou. Voltou a pensar alto:

- Se é pra morrer, morrerei como homem, não serei o covarde dessa história.

Mais adiante um enorme outdoor mostrava o quanto o IBAMA era eficaz e bom e o bebado começou a cantar "a carrocinha pegou este pobre bebado de uma vez"... Interrompeu e disse:

- Vocês são traiçoeiros e covardes!

Isso lhe custou um tapa na cara. Mandaram ele calar a boca e ficar quietinho, vez que estava indo para um lugar bom, onde filhinho apanha e mamãe não vê.

O alcoólico nada entendia. Tres dias depois encarcerado numa "clínica" ele caiu na real. A humilhação se iniciava. Recebia a comida através de uma grade. Via tanta diferente gente. De imediato assistiu uma briga por um motivo qualquer. No quinto dia um colega de quarto o chamou para se unir a facção dele: 

- aqui é assim, ou você fica de um lado, ou fica do outro. Não tem meio termo não! Tem alguma grana ai? se tiver algo de valor me dê que posso conseguir sua droga de preferencia. 

O alcólico, a esta altura, sabia que foi a família que acionou os "caras" que pegaram ele. O que o mesmo não compreendia era a medida da maldade. O emprego da violência. E, no fundo sentiu uma enorme desafeição pelos que fizeram "isso" com ele. Deitou-se, cobriu-se até a cabeça e começou a chorar.  Depois disso ele repetia todos os dias: posso levar o tempo que for, mas ao sair daqui vou tomar um porre!

-Faz isso não, camarada! ai te pegam de novo e te pregam nessa mesma cruz. Aqui é pior que na cadeia. Lá eu recebia visita íntima. Não existe médico e tudo é de fachada. Sua família vai ser embromada, vai ser manipulada e vão lhe deixar preso por um tempo de 6 meses. O contrato aqui é de 6 meses. Você tá pagando a pena de um réu primário que furtou. Compreende ?  Você vai cumprir sua sentença e quando sair vai virar bicho cheio de ódio da sua família, não é mesmo?

A SENTENÇA

O alcoólico nunca teve esses tipos de papo, mas, no fundo, em seu silêncio, consentiu...

E os três cachorros que a carrocinha pegou, eram mais importante que ele. A vida dele, não mais lhe pertencia. A família se apropriou de tudo o que um ser humano pode prezar. Sentiu que sua liberdade de ir e vir fora violentada e que o direito dele, doravante, seria o de obedecer. Uma usurpação de direitos, como numa ditadura.

Triste ele matutava desaparecer no mundo. Sumir de todos para não passar por tanta dor.

Quando saiu, foi visitar o pai, a mãe, e depois sumiu no mundo. Ninguém mais teve notícia dele. Para ele morrer é nunca mais ser visto. Ele morreu para a família e a família morreu para ele.


quinta-feira, 22 de maio de 2014

Meditação do Dia - Narcóticos Anônimos

QUINTA, 22 DE MAIO DE 2014

Sintomas de um despertar espiritual

"Os passos conduzem a um despertar de uma natureza espiritual. Este despertar é demonstrado através das mudanças nas nossas vidas." 

Texto Básico, p. 56


Sabemos reconhecer a doença da adicção. Os seus sintomas são incontestáveis. Para além de um apetite descontrolado por drogas, temos comportamentos doentios egocêntricos e egoístas. Quando a nossa adicção activa se encontrava no seu auge, nós encontrávamo-nos obviamente em grande dor. Julgávamos implacavelmente nós próprios e os outros, e passávamos a maior parte do tempo preocupados ou a tentar controlar os resultados. 

Assim como a doença da adicção é evidenciada por sintomas definidos, também o despertar espiritual se manifesta por determinados sinais óbvios num adicto em recuperação. Podemos observar uma tendência para pensar e agir espontaneamente, uma perda de interesse em julgar ou interpretar as acções de outra pessoa qualquer, uma capacidade clara de apreciar cada momento, assim como frequentes ataques de risos. 

Se virmos alguém a demonstrar sintomas de um despertar espiritual, deveremos estar avisados de que esses despertares são contagiosos. O nosso melhor curso de acção é aproximarmo-nos dessas pessoas. Quando começarmos a ter frequentes e enormes episódios de gratidão, uma receptividade crescente ao amor dado pelos nossos companheiros adictos, e uma vontade descontrolada de retribuir esse amor, vamos compreender que, também nós, tivemos um despertar espiritual.

Só por hoje o meu desejo mais forte é ter um despertar espiritual. Vou estar atento aos seus sintomas e alegrar-me quando os descobrir.


Fonte: NA DE PORTUGAL

REFLEXÃO DIÁRIA - Alcoólicos Anônimos


PRIMEIRO PASSO

22 de maio de 2014;

Admitimos... ("Nós" a primeira palavra do Primeiro Passo)

OS DOZE PASSOS E AS DOZE TRADIÇÕES

Quando eu bebia, tudo o que eu pensava era sempre "Eu, Eu, Eu", ou "Meu, Meu, Meu." Tal obsessão do ser, tal doença da alma, tal egoísmo espiritual me escravizou à garrafa mais da metade de minha vida.

O caminho para encontrar Deus e fazer Sua vontade um dia de cada vez, começou com a primeira expressão do Primeiro Passo..."Nós".

Havia poder, força e segurança no plural e para um alcoólico como eu, também havia vida. Se tivesse tentado me recuperar sozinho, provavelmente teria morrido. Com Deus e outro alcoólico tenho um propósito divino na minha vida... tornei-me um canal para o amor benéfico de Deus.

Fonte: http://www.aa.org.br/reflexao-diaria

A ESPERANÇA NASCIDA DO DESESPERO


A ESPERANÇA NASCIDA DO DESESPERO

Carta ao Dr. Carl Jung:

“Muitas experiências de conversão, qualquer que seja a variedade, têm como denominador comum o profundo colapso do ego. O indivíduo enfrenta um dilema impossível.

“No meu caso, o dilema tinha sido criado por minha compulsão pela bebida, e o profundo sentimento de desespero foi extremamente aumentado por meu médico. Foi aumentado ainda mais quando meu amigo alcoólatra contou-me de seu veredicto de desespero com respeito ao caso de Rowland H.

“No despertar de minha experiência espiritual, veio-me uma visão de uma sociedade de alcoólicos. Se cada sofredor levasse a outro a visão científica quanto à condição desesperada do alcoólico, poderia abrir-lhe a possibilidade de uma experiência espiritual transformadora. Esse conceito foi e é a base do sucesso, que desde então A. A. tem alcançado.”

FELIZES – QUANDO SOMOS LIVRES

Para a maioria das pessoas normais a bebida significa a libertação da preocupação, do aborrecimento e da ansiedade. Significa uma alegre intimidade com os amigos e um sentimento de que a vida é boa.

Mas não foi isso o que aconteceu conosco, nos últimos tempos de nossas pesadas bebedeiras. Os velhos prazeres desapareceram. Havia um desejo ardente de gozar a vida, como nunca, e uma dolorosa ilusão de que algum novo controle milagroso nos permitisse fazê-lo. Havia sempre mais uma tentativa e mais um fracasso.

Estamos certos de que Deus nos quer ver felizes, alegres e livres. Portanto, não podemos compartilhar a crença de que esta vida seja necessariamente um vale de lágrimas, embora em certa época tenha sido exatamente isto para muitos de nós. Mas ficou claro que vivíamos criando nossa própria miséria.

EM BUSCA DA FÉ PERDIDA
Muitos Aas podem dizer a uma pessoa sem fé: “Nós desviamos da fé que tínhamos quando crianças. Com a chegada do sucesso material, achamos que estávamos ganhando o jogo da vida. Isso era emocionante e nos fazia felizes.

“Por que deveríamos nos preocupar com abstrações teológicas e deveres religiosos ou com o estado de nossas almas aqui ou no além? A vontade de ganhar nos levaria para frente”.
“Mas então o álcool começou a nos dominar. Finalmente, quando começamos a ver nosso placar marcando zero, e percebemos que mais um golpe nos colocaria fora do jogo para sempre, tivemos que buscar nossa fé perdida. Foi em A. A. que a reencontramos.”

RENDIÇÃO “Na Opinião do Bill”


NAS MÃOS DE DEUS

Quando olhamos para o passado, reconhecemos que as coisas que nos chegaram quando nos entregamos nas mãos de Deus foram melhores do que qualquer coisa que pudéssemos ter planejado.

Minha depressão aumentou de forma insuportável até que finalmente me pareceu estar no fundo do poço, pois naquele momento o último vestígio de minha orgulhosa obstinação foi esmagado. Imediatamente me encontrei exclamando: “Se existe um Deus, que Ele se manifeste! Estou pronto para fazer qualquer coisa, qualquer coisa!”

De repente, o quarto se encheu de uma forte luz. Pareceu-me com os olhos de minha mente, que eu estava numa montanha e que soprava um vento, não de ar, mas de espírito. E então tive a sensação de que era um homem livre. Lentamente o êxtase passou. Eu estava deitado na cama, mas agora por instantes me encontrava em outro mundo, um mundo novo de conscientização. Ao meu redor e dentro de mim, havia uma maravilhosa sensação de presença e pensei comigo mesmo: “Então, esse é o Deus dos pregadores!”

AUTO CONFIANÇA E FORÇA DE VONTADE

Quando pela primeira vez fomos desafiados a admitir a derrota, a maioria de nós se revoltou. Havíamos nos aproximado de A. A. esperando aprender a ter auto confiança. Então nos disseram que, no tocante ao álcool, de nada nos serviria a auto confiança: aliás, ela era um empecilho total. Não era possível ao alcoólico vencer a compulsão pela mera força de vontade.

É quando tentamos fazer com que nossa vontade se harmonize com a vontade de Deus, que começamos a usá-la corretamente. Para todos nós, esta foi uma das mais maravilhosas revelações. Todo o nosso problema tinha sido o mau uso da força de vontade. Tínhamos tentado atacar nossos problemas com ela ao invés de tentar fazer com que ela se alinhasse com os planos de Deus para conosco. O propósito dos Doze Passos de A. A. é tornar isto cada vez mais possível.

A FORÇA NASCENDO DA FRAQUEZA

Se estamos dispostos a parar de beber, não podemos abrigar, de forma nenhuma, a esperança de que um dia seremos imunes ao álcool.
Tal é o paradoxo da recuperação em A. A.: a força nascendo da fraqueza e da derrota completa, a perda de uma vida antiga como condição para encontrar uma nova.

SOMENTE COM O PODER DA INTELIGÊNCIA?

Para o homem ou mulher intelectualmente auto suficiente, muitos Aas podem dizer: “Sim, éramos como você – inteligentes demais para nosso próprio bem. Adorávamos ouvir as pessoas nos chamarem de precoces. Usávamos nossa instrução para nos vangloriar, embora tivéssemos o cuidado de esconder isso dos outros. Secretamente, achávamos que poderíamos flutuar acima dos outros, somente com o poder da inteligência.

“O progresso científico nos dizia que não havia nada que o homem não pudesse fazer. O conhecimento era todo poderoso. O intelecto era capaz de conquistar a natureza. Uma vez que éramos mais brilhantes do que a maioria (assim pensávamos), os benefícios da vitória seriam nossos, automaticamente. O deus do intelecto substituía o Deus de nossos pais.
“Mas novamente o álcool tinha outras idéias. Nós, que tão brilhantemente tínhamos vencido, de repente nos convertemos nos maiores derrotados de todos os tempos. Percebemos que tínhamos que mudar ou morrer.”

A PEDRA FUNDAMENTAL DO ARCO DO TRÍUNFO

Tendo experimentado a destruição alcoólica, abrimos nossas mentes em relação às coisas espirituais. A esse respeito, o álcool foi um grande persuasor. Ele finalmente nos derrotou obrigando-nos a raciocinar.

Tivemos que deixar de fazer o papel de Deus. Isso não funcionou. Decidimos que dali por diante, nesse drama da vida, Deus ia ser nosso Diretor. Ele seria o Chefe: nós, os Seus agentes.
As boas idéias, na sua maioria, são simples, e esse conceito constitui a pedra fundamental do novo arco do triunfo, através do qual passamos à liberdade.

PRELÚDIO AO PROGRAMA

Poucas pessoas tentarão praticar sinceramente o programa de A. A., a não ser que tenham “chegado ao fundo do poço”, pois praticar os Passos de A. A. requer a adoção de atitudes e ações que quase nenhum alcoólico que ainda bebe pode sonhar em adotar. O alcoólico típico, egoísta ao extremo, não se interessa por essa perspectiva, a não ser que tenha que fazer essas coisas para não morrer.

Sabemos que o recém-chegado tem que “chegar ao fundo do poço”, do contrário pouca coisa pode acontecer. Por sermos alcoólicos que o compreendem. Podemos usar a fundo o poderoso argumento da obsessão mais alegria, como uma força que pode destruir seu ego. Só assim ele pode se convencer de que unicamente com seus recursos tem pouca ou nenhuma chance.


NÓS NÃO ESTAMOS LUTANDO

Paramos de lutar com tudo e com todos – mesmo com o álcool, pois a essa altura a sanidade voltou. Agora podemos reagir sadia e normalmente, e constatamos que isso aconteceu quase automaticamente. Vemos que essa nova atitude face ao álcool é realmente uma dádiva de Deus.
Aí esta o milagre. Não estamos lutando com ele, nem estamos evitando a tentação. Tampouco temos que prestar juramento. Em vez disso, o problema foi removido. Ele não existe para nós. Não somos nem atrevidos nem medrosos.
É assim que reagimos – enquanto nos mantivermos em boas condições espirituais.


VITÓRIA NA DERROTA

Convencido de que nunca conseguiria fazer parte e jurando nunca me conformar com o segundo lugar, eu sentia que simplesmente tinha que vencer em tudo que quisesse fazer, fosse trabalho ou divertimento. Como essa atraente fórmula de bem viver começou a dar resultado, de acordo com a idéia que eu então fazia do que fosse sucesso, fiquei delirantemente feliz.

Mas quando acontecia de um empreendimento falhar, eu me enchia de ressentimento e depressão que só podiam ser curados com o próximo triunfo. Portanto, muito cedo comecei a avaliar tudo em termos de vitória ou derrota – “tudo ou nada”. A única satisfação que eu conhecia era vencer.

Somente através da derrota total é que somos capazes de dar os primeiros passos em direção à libertação e à força. Nossa admissão de impotência pessoal finalmente vem a ser o leito de rocha firme sobre o qual podem ser construídas vidas felizes e significativas.


ACEITANDO AS DÁDIVAS DE DEUS

“Embora muitos teólogos afirmem que as experiências espirituais súbitas representem alguma distinção especial ou algum tipo de preferência divina, eu questiono esse ponto de vista. Todo ser humano, qualquer que sejam seus atributos para o bem ou para o mal, é uma parte da economia espiritual divina. Portanto, cada um de nós têm seu lugar, e não posso aceitar que Deus pretenda elevar alguns mais do que outros.

Dessa forma, é preciso que todos nós aceitemos qualquer dádiva positiva que recebamos com profunda humildade, tendo sempre em mente que primeiro foram necessárias nossas atitudes negativas, como um meio de nos reduzir a um estado tal que nos deixasse prontos para receber uma dádiva positiva através da experiência da conversão. Nosso próprio alcoolismo e a imensa deflação, que finalmente daí resultou, constituem na verdade a base sobre a qual repousa nossa experiência espiritual.”


FORÇAS CONSTRUTIVAS

Minha opinião era tão arraigada, como a frequentemente vemos hoje em dia nas pessoas que se dizem atéias ou agnósticas, sua vontade de descrer é tão forte, que parecem preferir a morte a uma busca sincera de Deus, feita com a mente aberta. Felizmente para mim e para muitos como eu que buscaram A. A., as forças construtivas, produzidas em nossa Irmandade, quase sempre venceram essa colossal teimosia. Abatidos e completamente derrotados pelo álcool, frente a frente com a prova viva da libertação e rodeados por pessoas que podiam nos falar do fundo do coração, finalmente nos rendemos.

E então, paradoxalmente, nos encontramos numa nova dimensão, o verdadeiro mundo do espírito e da fé. Boa vontade suficiente, mente aberta suficiente – e pronto!


NUNCA O MESMO OUTRA VEZ

Descobrimos que quando um alcoólico plantava na mente de outro a idéia da verdadeira natureza de sua doença, este jamais voltaria a ser o mesmo. Após cada bebedeira, ele diria a si mesmo: “Talvez esses Aas tenham razão”. Depois de algumas experiências assim, e muitas vezes antes do começar a ter grandes dificuldades, ele voltaria a nós, convencido.

Nos primeiros anos, aqueles dentre nós que ficaram sóbrios em A. A., eram na verdade casos horríveis e completamente sem esperança. Mas depois começamos a ter sucesso com alcoólicos moderados, e mesmo com alguns alcoólicos em potencial. Começaram a aparecer pessoas mais jovens. Chegavam muitas pessoas que ainda tinham trabalho, lar, saúde e posição social.
Naturalmente foi necessário que esses recém-chegados chegassem emocionalmente ao fundo do poço, mas eles não tiveram que chegar a todos os tipos de fundo de poço possíveis para admitir que estavam derrotados.

RENDIÇÃO, ADMISSÃO E ACEITAÇÃO


O primeiro passo nos fala de rendição. A palavra "render" me leva a outra: "derrota" e derrota para mim era algo inconcebível. Meu orgulho me impedia de enxergar qualquer tipo de derrota, mas os companheiros de A.A. conseguiram abrir uma brecha em meu orgulho, o suficiente para eu me sentir derrotado pelo álcool.

Eu me rendi, admiti e aceitei que era um alcoólico. Tinha algo errado em minha maneira de beber. Percebi logo cedo em A.A. que eu tinha que viver no mundo real, que a vida no mundo imaginário do alcoolismo estava me destruindo e não me levaria a lugar nenhum.

A admissão da impotência é o primeiro passo para a libertação desta obsessão mental poderosa que nos leva sempre a buscar o álcool como refugio. Aliada a esta obsessão ou depois de satisfeita esta obsessão através da ingestão de algum gole de bebida surgia outra força tão poderosa quanto à obsessão que era a compulsão. Esta compulsão me obrigava a continuar bebendo cada vez mais. 

Que loucura! Como entender que uma pessoa inteligente, segura de si, já experiente, ciente do buraco para o qual estava encaminhando não conseguia controlar a sua maneira de beber? 

Pois é, eu não tinha resposta para esta pergunta, mas o A.A. logo em seu Primeiro Passo para a recuperação me mostrou a dura realidade: o alcoolismo é uma doença incurável, progressiva e de fins quase sempre fatais. 

Que triste notícia, mas junto com essa triste notícia veio outra e essa outra era confortadora e me mostrava o caminho a ser seguido: - só existe uma forma de deter este anseio louco pela bebida alcoólica: Este caminho é evitar o primeiro gole, pois é ele que põe em movimento toda esta loucura mental, esta obsessão aliada a compulsão que leva o alcoólico cada vez mais para o fundo, cada vez mais para a escuridão do fundo de poço. E é esta fabulosa sugestão que eu venho seguindo com sucesso: evitando o primeiro gole e me apoiando nos companheiros através das reuniões venho conseguindo, um dia de cada vez, conter esta destruição chamada alcoolismo. Quero destacar dois pontos muito importantes que constam em nossa literatura:

01. Nos primeiros tempos de A.A era pensamento que somente os alcoólicos mais desesperados conseguiram digerir estas notícias amargas, mas com o passar dos anos puderam perceber que mesmo aqueles que apenas eram bebedores potenciais poderiam ser atingidos pela experiência salvadora de A.A. e conseguiram evitar muitos anos de puro inferno em suas vidas. Cada vez mais, alcoólicos mais jovens e com um fundo de poço menos doloroso vêm alcançando A.A.

2.  Existe um a pergunta de fundamental importância em nosso Primeiro Passo: Por que insistir que todo A.A. precisa chegar ao fundo do poço? E a resposta vem logo a seguir: porque para praticar os restantes onze passos de A.A. requer a adoção de atitudes e ações que quase nenhum alcoólico sonharia adotar. Quem se dispõe a ser rigorosamente honesto e tolerante? Honestidade, tolerância, compreensão, humildade, coragem e tantas outras virtudes até então desconhecidas para o alcoólico
passam a ter importância fundamental na prática do restante do programa. Mas não precisamos nos desesperar, pois estas virtudes virão aparecendo pouco a pouco, um dia de cada vez, necessitamos para que isso ocorra somente ter a mente aberta e boa vontade. Obrigada Revista Vivência, companheiros, amigos e amigas de A.A. pela oportunidade de crescimento proporcionada.


Revista Vivência nº111 - Jan./Fev./2008


terça-feira, 20 de maio de 2014

CIDADE DOS ESQUECIDOS - JABÁ PSIQUIÁTRICO


ANDREA DIP

 “Se em 1992, no Brasil, havia 83.000 leitos em hospitais psiquiátricos financiados pelo SUS, com recursos da ordem de 250 milhões de reais por ano, hoje, com 42.000 leitos, o SUS gasta 460 milhões por ano. Acrescentem-se os mais de 200 milhões com outros gastos que continuam a funcionar na lógica espaçocêntrica, clientelista e privativista. Desse total, 80 por cento continuam a ser destinados ao setor privado, os chamados ‘empresários da loucura’. 

Na sua maioria, empresas familiares que agregam pequenas fortunas acumuladas em especial com recursos públicos, e que praticamente não se submetem à lógica do capital de risco.

O lucro é certo – seja pelos baixos salários pagos, pela insuficiência dos recursos aplicados, pela má qualidade de alimentação e de higiene”, diz o doutor Nacile. E completa: “A representante sindical do setor psiquiátrico privado, a FBH, Federação Brasileira de Hospitais, é um dos lobbies mais freqüentes junto ao Congresso Nacional e ao Ministério da Saúde, e constantemente ameaça paralisação e fechamento para conseguir aumento nas diárias hospitalares”. 

Outra grande incentivadora do atual modelo é a indústria farmacêutica, que, com a ajuda da mídia, divulga novas doenças e instantaneamente sua cura por meio do remédio tal. Fato confirmado por psiquiatras, como Renato Del Sant: “Se não existisse o Fantástico, não existiria a medicina. De segunda-feira, o consultório é cheio! O que vem de fora é o apelo das drogas da felicidade”. E acrescenta:

“A psiquiatria hoje está seguindo muito o modelo americano, que é mais medicamentoso. E nós somos muito americanófilos, aceitamos fácil o que vem de lá. Vêm coisas boas, realmente, mas eu aviso os meus residentes: não deixem de estudar a psiquiatria européia, que trata mais o lado humano, psicoterápico. Porque é fácil difundir o modelo americano, que vem com uma propaganda poderosa da indústria farmacêutica. 

Um psiquiatra que vai falar na mídia sobre determinado tratamento e medicamento recebe grande apoio da indústria farmacêutica, é mais fácil de ele aparecer. E um médico que vai falar de um tratamento existencial não tem apoio”. 

Paulo Amarante, também psiquiatra, faz parte desses que Del Sant chama de humanistas. Ele diz que é muito difícil desenvolver uma pesquisa que não envolva algum tipo de medicamento. “As pesquisas são financiadas diretamente pelos laboratórios, e vendidas para os próprios. Eles contratam os pesquisadores. O resultado dessa pesquisa é confidencial e entregue à empresa farmacêutica. A indústria vai julgar se o resultado é divulgável ou não. Se considerar que o resultado prejudica a visão do remédio, não divulga. E se o cara publicar qualquer coisa, está frito. Isso deveria ser proibido. 

Outra questão é a propaganda médica. Os laboratórios pagam viagens aos médicos e suas famílias, botam na primeira classe de aviões, em hotéis caros. Pagam tudo, dão prêmios. Esse gasto é repassado ao consumidor. Então você tem remédios que custam 600, 800 reais a caixa. Qual foi o custo? Não foi só o da produção, foi também do investimento que o laboratório faz em psiquiatras que o receitam.”

CIDADE DOS ESQUECIDOS - POR FORA BELA VIOLA, POR DENTRO...


ANDREA DIP

“(...) Meu Deus! Estou tonto, falta-me o ar. Só ouço as batidas do meu coração. Minhas pernas estão tremendo, acho que vou desmaiar. (...) Eu estava em choque de tanto medo. (...) Fui deitado de barriga pra cima, com a cabeça em dire-ção à porta.

Marcelo colocou uma de suas pernas dobradas em cima do meu tórax. Uma das mãos em cada braço meu, perto dos ombros, forçando tudo para baixo. O outro enfermeiro pediu que abrisse a boca, e por ela enfi ou um tubo preto, oco, de borracha.

Disse que mordesse com força. Em seguida juntou minhas pernas e começou a forçá-las para baixo. 
Antes, porém, passou uma coisa gordurosa em minhas têmporas.

Eu não conseguia mais raciocinar – estava paralisado. (...) Eles faziam força além do peso de seus cor-pos. Vi o médico se aproximar da minha cabeça, por trás, seu rosto perto do meu. (...) Suas mãos tocaram meu cabelo (...), em seguida recuou um pouco. Só escutei parte do meu gemido.
Perdi os sentidos.”

A descrição feita por Austregési-lo Carrano, no terceiro capítulo do Canto dos Malditos, é na verdade bem parecida com o que  vi no IPQ. Talvez o cenário seja diferente, talvez o aparelho que aplica o ECT hoje seja mais sofisticado. Mas o ritual é exatamente esse.

Me senti mal assistindo ao sofrimento do outro. Mas precisava ver de perto o que eles, psiquiatras, tratam com tanta naturalidade e, mais do que isso, como medida de cura milagrosa.Cheguei ao IPQ por volta das 9 da manhã, com minha colega de redação Natalia Viana, que foi me dar um apoio moral. Fomos recebidas pela assessora de imprensa, que nos levou até o local onde são feitas as aplicações. “Vem muito jornalista assistir ao ECT?”, pergunta Natalia. “Nenhum. Vo-ês são as primeiras.

Ninguém tem coragem, eles acham que é o bicho de sete cabeças”, ri a assessora.O corredor estava lotado de familiares, separados por um biombo dos pacientes e das duas salas de aplicação. Ultra-passado o limite, fomos apresentadas a um médico de baixa estatura, magro, de óculos e jaleco aberto, que imediatamente começa a falar sobre as maravilhas do eletrochoque, num discurso comovido, dizendo, entre uma frase e outra: “Isso salva vidas! É preciso lembrar que isso salva vidas”.

Confesso que não prestei muita atenção na história do ECT, pois já havia lido a respeito, e a cena por trás do médico me chama-va mais a atenção. Um homem alto e magro, de seus 30 a 40 anos, estava deitado em uma maca, com duas enfermeiras segurando-o, e outra dando um tipo de anestésico para ele as-pirar. Ele tentava se mexer, resmungar, mas era impedido pe-las enfermeiras.

“Isso aqui não está funcionando, eu estou dizendo! Já faz tempo que eu acho que não está fazendo efeito”, dizia uma. “Então faz um relatório por escrito e encaminha”, dizia a outra. O homem se mexia. Estava “um pouco agitado”, o médico olhou para trás. Entramos na sala. Aquele era um paciente esquizofrênico, segundo seu personal trainer, que o acompanhava sempre nas sessões. “Ele fi ca bem mais tran-qüilo depois da sessão”, falava o homem. “Mas o que ele faz quando está em surto?”, pergunto. “Ah, ele xinga as pessoas na rua de fi lhas da puta.” Olho pra Natalia. Acho que pensa-mos juntas. Deveriam então aplicar choques nos torcedores de futebol, nos motoristas de trânsito estressados. Que preço!Colocam uma gaze na boca do homem.

“Ele já está dormindo”, diz o médico. O homem resmunga por entre os dentes. As enfermeiras seguram. O médico vai até a cabeceira do homem, ajusta o aparelho para a voltagem ideal, coloca os eletrodos em suas têmporas e dá a descarga. O corpo dá um pequeno salto. Pára. Começa a repuxar inteiro, como se sofresse  uma intensa cãibra dos pés à cabeça. Isso dura alguns segundos. Em mais alguns minutos o homem deve acordar.

“Mas, doutor, qual é a explicação científica? O que isso causa no cérebro?”, pergunto. “Olha, na verdade, ainda não se sabe exatamente o que acontece. Só se sabe que funciona.”

A partir daí, o discurso para mim muda de tom. Se não há explicação científica, o eletrochoque poderia também ser aplicado por curandeiros, ou na sessão do descarrego da Igreja Universal! “E quais as con-seqüências?”, pergunta Natalia. “Poucas, uma pequena perda de memória que dura alguns dias, nada mais grave.”

Assistimos a mais uma aplicação, em um rapaz de ascendência japonesa, que seguiu o mesmo ritual. Com a diferença de que este tinha tomado água antes da aplicação, então começou a vomitar e quase sufocou com a água. Conversei com seus parentes, levada pelo doutor.

“Pergunta pra eles como o paciente melhora depois da aplicação!” Eram dois senhores de idade. O pai e a irmã. Mal falavam português. Do que me responderam, só entendi que o moço havia melhorado muito, porque antes só queria ficar dormindo, e agora assiste à televisão.

“A eletroconvulsoterapia nasceu em 1930, quando um grupo de médicos percebeu que após ataques epiléticos os pacientes com problemas mentais tinham melhora signifi cativa durante alguns dias”, conta Renato Del Sant. “Então, eles pensaram: ‘Vamos provocar um ataque epilético’. E foi revolucionário na época, porque não havia remédios.

Com o passar dos anos, o ECT passou de recurso terapêutico a castigo em manicômios superlotados como o Juquery. Na década de 90, ‘a década do cérebro’, a eletroconvulsoterapia voltou. Mas hoje é necessária uma autorização por escrito da pessoa ou da família, a aplicação é feita com anestesia, e a família vem junto, toma até um café da manhã depois!”

Os pacientes de hospitais como o Juquery e o Pinel vão ao Instituto tomar o ECT. “E há fi la para o procedimento”, diz a assessora do IPQ. As aplicações são indicadas, segundo Del Sant, em casos de depressão profunda, esquizofrenias – principalmente as catatônicas – e para gestantes e idosos, que não podem tomar remédios fortes. Perguntado sobre o sucesso do tratamento, Paulo Amarante, que é dos poucos psiquiatras que conde-nam a prática, rebate: “Para qualquer coisa que você for vender, há cliente. Basta você fazer uma boa propaganda. Você chega lá, um médico de uma universidade de renome, vestido de branco, com o poder da ciência, do Esta-do e do dinheiro, te falando que isso vai te curar, você faz!” Carrano vai além: “Eles dizem que com algumas sessões de doze aplicações, dia sim, dia não, somem os sintomas de depressão. Pois ele (o paciente) esquecerá até quem ele é! Solução rápida e eficiente que acaba com a sua mente.

Os psiquiatras tupiniquins estão envolvidos e empolgados com aparelhos ultra-sofi sticados para a aplicação do ECT, que custam apenas 10.000 dólares, e que têm os efeitos minimizados por drogas fortes. E a eletricidade é humanizada”.Há várias ONGs espalhadas pelo mundo que condenam a prática. Um exem-plo é a Coalizão para a Abolição do Eletrochoque, sediada nos Estados Unidos, formada por psiquiatras, psicólogos e ex-pacientes psiquiátricos. John Breeding, psicólogo da organização, diz que o eletrochoque, em longo prazo, causa danos de memória e queima de neurônios irreversível.

 “O cérebro se submete a uma descarga de mais de 100 volts de tempos em tempos, criando um dano físico para o tecido. Isso também causa um excitamento extremo, prejudicando os neurônios e causando perda permanente de memória. As pessoas ficam com dificuldades de receber novas informações, dificuldade em se adaptar a novos empregos e conseqüentemente de ter alguma função social. Além disso, estudos mostram que, após três meses da última aplicação, você tem 100 por cento de regressão da doença.

”Os procedimentos usados pela psiquiatria moderna pouco diferem dos métodos de antigamente. Ainda se aplicam os choques, ainda se amarram pes-soas (contenção), ainda se entopem estômagos e veias com remédios fortes.

A diferença está nos nomes, mais técnicos, mais sonoros, na alta tecnologia dos remédios, que deslumbram alguns médicos, no código de ética, que exige mais burocracia no trato aos pacientes. Roupa nova em corpo velho. A verdadeira reforma psiquiátrica ainda não aconteceu na mente da maioria dos tutores da loucura. Nem no inconsciente coletivo, o que causa o preconceito, repele e encarcera o que não entende

CIDADE DOS ESQUECIDOS - TERCEIRA VISITA

POR ANDREA DIP


O Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, o IPQ, em nada se parece com o Juquery ou com o Pinel. Depois de uma reforma bancada em 30 milhões de reais pelo governo do Estado, está mais perto de um shopping center high tech. 

As enfermarias são pequenas, bem divididas. Há residentes o tempo todo, há médicos professores da faculdade de medicina da USP. Os quartos são para até duas pessoas. E tudo parecia calmo no momento em que andei por lá. 

Duas mulheres me chamaram a atenção. Uma estava sentada na cama, lendo, de brincos, roupas bonitas. A outra veio conversar com o doutor Renato Del Sant, que me acompanhava.

Dizia, com a maior lucidez do mundo, que estava bem melhor. “Melhor do que, doutor?”, pergunto. “Depressão”, diz o doutor. 

Chega um grupo de estudantes, futuros residentes. Carregavam cadernos e faziam mais ou menos o mesmo que eu – conheciam o hospital. 

O Instituto de Psiquiatria não tem na aparência o ranço dos hospitais psiquiátricos. Mas é inevitável pensar que aquilo tudo funciona como um grande laboratório para os alunos de medicina. Lá se fazem psicocirurgias, aplicações de ECT (eletroconvulsoterapia, o eletrochoque), tudo com a mais alta tecnologia, sob a responsabilidade de médicos renomados da psiquiatria brasileira. 

O Instituto é declaradamente um dos maiores inimigos da reforma psiquiátrica 
no Brasil e do movimento antimanicomial, por considerar o atual modelo – lei desde 2001 – “irresponsável”.



Tem, por tradição, formação biologicista, que acredita mais na indústria farmacêutica do que nos tratamentos humanistas. Seu atual diretor, Valentim Gentil Filho, é “matemático”. 



Doença tem de ser tratada com remédio, como afirmou em entrevista à Revista Latino-Americana de Psicopatologia Fundamental: “(...) psiquiatria é medicina e, como em qualquer outra área médica, a partir de um diagnóstico há uma formulação clínica, propõe-se uma conduta terapêutica e espera-se um determinado resultado dentro de um prazo determinado. Isso não é nada além de medicina; em todas as áreas é assim”.  



Paulo Amarante, psiquiatra fundador do movimento antimanicomial e autor de vários livros, diz que é impossível não considerar o social na doença psiquiátrica. “Então eu tenho um susto, aquilo aumenta a adrenalina. Abaixa a descarga, aumenta a emoção, que aumenta de novo a adrenalina. Não! As pessoas sofrem miséria, sofrem depressão, sofrem violência sexual! Você vai dizer que o medo é porque elas têm a serotonina aumentada? 



Agora, o impressionante é que os pesquisadores, as universidades, recebem direitos "da indústria farmacêutica”, desafia. 



Saí do Instituto de Psiquiatria com um compromisso marcado para o dia seguinte.  
Assistir a uma sessão de ECT.

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