quinta-feira, 24 de abril de 2014

Tempo de Travessia


Hoje algumas coisas me fizeram perder o prumo do viver o aqui e o agora. Fiquei desfocado e estou insone. 

Recordo, agora, dos meus tempos de "residente" (vou chamar aqueles lugares com esse eufemismo meu, porque só eu seu o que vivi) em que me distanciava de muitos companheiros para pensar na minha família; era um momento exclusivamente meu. Sozinho eu podia proceder reflexões e eu orava por todos, pela família e, ao mesmo tempo, me perguntava tantas coisas.

Estava preso e o pouco tempo em que saia do confinamento aproveitava para fumar, pensar em fugir, pedir a Deus força para suportar o tempo que deveria ficar enclausurado e, em minha reflexões, podia observar os meus erros e os erros de quem me punha em tais lugares. Nestes locais o que escutava era o pessoal dizer que ao sair daquele lugar, a primeira coisa era sair e usar, como que busca se vingar. É uma imaturidade, mas é assim que funciona quando a família adoecida toma decisões equivocadas.

Sempre evitei conflitos. E os conflitos entre internos são um problema que agrava o estado psíquico dos envolvidos e de todos.

Confortava companheiros, mas não os iludia. O que todo mundo que chega quer saber é quanto tempo vai ficar em tal lugar. E o minimo são seis meses de mentira e enrolação!

Em outros momentos difíceis, para ficar livre dos pensamentos ruins, que só maltratam a cabeça, brincava com os novatos e outros internos alimentavam a brincadeira.

Quando entra um novato chega ele aparenta desamparo, desconsolo e mostra-se confuso. Fica perdidão e nós começávamos a indagar coisas do tipo: - Qual foi o crime que você cometeu lá fora? Pode se abrir e confessar, porque aqui ninguém é santo, nem otário. Geralmente o cara dizia que nada fez, ou contava abobrinha. 

Quando o cara era alcoólico nós, residentes, falávamos que o cara estava ali porque ofendeu a honra do juiz, tirou a roupa, em público, e estava cumprindo sentença obrigatória. O sujeito negava e dizíamos que vimos tudo pois estava escrito na ficha dele e, caso ele não estivesse lembrado, era por conta do elevado grau de embriagues do mesmo. O cara ficava na dúvida: será? Tinham aqueles que iam além da conta e abordavam as relações sentimentais dos novatos. Havia um descendente de árabe que era quase um comediante. Depois de fazer tantas perguntas a um novato, casado, sobre como a esposa se comportava com ele, concluía sua avaliação dizendo em voz alta, à turma de quarto: - temos um novo corno no pedaço!

Risos à parte os novatos são seres humanos indefesos, deslocados, desambientados e chegam baqueados pelo trauma do resgate e, por isso, não reagiam. Sofriam calado. Depois mostrávamos ao sujeito que tudo aquilo era uma forma de distrair e descontrair.  

Nas reuniões do "Só por Hoje",  as partilhas eram agressivas, outras desonestas, haviam as mais centradas e outras tantas endereçadas ao lugar, ou ao fato de vivermos confinados, como detentos.

Quem passasse dos limites tinha que ser levado para a contenção, antes apanhava, depois aplicavam no mesmo uma mistura louca de medicamentos, não prescrito por médico, para o residente que extrapolou tomar, apagar por completo.

A contenção era um cubículo, com um respiradouro pequeno, com cheiro de mijo e de mofo. Passei três dias numa delas, com forte esquema de isolamento. No amanhecer do primeiro dia escutei muita gente cantando canções evangélicas... Era a galera querendo me ver, exigindo que abrissem a porta da contenção, para me abraçarem, enquanto cantavam belas canções de cunho religioso. Conseguiram. A manifestação foi muito bonita, algo inesquecível para mim. Os caras se arriscavam para me jogar cigarro através de frestas, correndo risco de ser apanhado e ser jogado no mesmo buraco medieval.

Uma ocasião verifiquei um operário serrando vergalhões de ferro e os cortes durava cerca de 30 segundos, quando a serra era nova. Um dia aproveitei o descuido de um desses operários e peguei a serra. Guardei debaixo da cama. Tracei meu plano. Era tão bonito e seria uma fuga de mestre. Sairia pelo portão principal. Um colega de quarto, contudo, assumiu a tarefa de serrar os locais que indiquei, mas o mesmo mudou os locais e o que seria perfeito, culminou em um desastre. Mas, depois do ocorrido, parei para refletir e vi o dedo de Deus naquilo tudo. Não tinha dinheiro, lenço nem documento, então como iria empreender tal fuga,  com sucesso? Seria uma fuga, mas logo seria capturado e, tanto eu, quanto o companheiro de fuga não éramos marginais. Queríamos a nossa liberdade de volta.

Em outro lugar, que estive, consegui fugir duas vezes; foram fugas cinematográficas e arriscadas demais. A mais perigosa de todas foi a segunda e nela poderia, por um vacilo qualquer, encontrar a morte. Escalei a casa com uma "teresa", que um companheiro sustentava  no braço. Quando estava a um metro do chão, ele soltou a teresa e eu cai de costas no gramado da casa vizinha. A pancada não foi maior que a vontade de ganhar a liberdade.

Soube que o dono mandou me caçar e empreenderam, por três dias, uma imensa busca, 24 horas por dia. Quando soube, no local em que me encontrava, que as buscas já se iniciavam naquele lugar, fui ver meus pais. Vi e depois refleti: - agora que ninguém me pegou, posso voltar de forma voluntária e com a decisão de cessar o uso, de ficar limpo, Levei um bom tempo limpo, sem usar. Lá dentro me ofereciam drogas e eu recusava usar. Depois de ter saído daquele local, muitos meses depois sofri uma recaída. Algo absurdo me aconteceu, acabei sendo assaltado, depois, em um dado município furtaram minha bagagem  e, desolado, cai com força no uso. Sei lá, parecia viver um stress pós traumático. Veio o arrependimento e o regresso da sanidade. Recomecei tudo outra vez e, vencido um mês, nova recaída.

Agora, novamente limpo, vivo em outro plano de vida e pretendo me desligar de muita gente. Tudo converge para que eu conclua, que a minha escolha em busca da minha recuperação está em viver apenas com quem me compreende, com quem me estende a mão de amigo e me ajuda.

Não estou certo, mas, parafraseando frase duma composição de Roberto Carlos, parece que a "felicidade começa num adeus". Posso estar com o pensamento desfocado, sei que estou assoberbado de problemas, mas tenho fé em solucionar tudo. Sei que nos primeiro tempos tudo vai ser duro demais, mas tenho que enfrentar esta nova realidade. Posso até pensar melhor depois de concluir este post de partilha. 

Hoje, aqui e agora, penso dessa maneira. Isto pode ser decorrência das coisas que me sucedem e intranquilizam. Também não quero ser um embaraço pra quem quer que seja. Quero ser livre e voar mundo afora, com responsabilidade e ciente de que não posso e não devo mais usar droga alguma. Meu sentimento não é dos melhores, por isso busco partilhar. Só por hoje!       

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