sexta-feira, 18 de abril de 2014

" O QUARTO PASSO É SE OLHAR NO ESPELHO "

Por Dr. Eduardo Mascarenhas, psicanalista 

(Rio de Janeiro, 6 de julho de 1942 – Rio de Janeiro, 29 de abril de 1997)


Os três primeiros passos são os necessários para se reconhecer carente de ajuda, para procurar a ajuda e levar fé na ajuda que se está recebendo. São os Passos iniciais, os passos dos iniciantes. Se bem que muitos iniciados tenham que retornar a eles. Muita gente sóbria já recaiu só porque se esqueceu desses "inícios".

O Quarto Passo é o primeiro que coloca a pessoa em contato com ela mesma. 

Os grupos anônimos recomendam que seus membros sentem-se diante de um papel e comecem a fazer uma espécie de inventário de suas qualidades e defeitos.

Ora, se dirá: "Já começou o moralismo, que pensa certas coisas como qualidades e outras como defeitos: qualidades e defeitos para quem? O que é qualidade para mim é defeito para os outros. Não tem essa de qualidades e defeitos! aliás, não foi dito que os grupos anônimos não se metem na vida de ninguém, nem têm idéias pré-concebidas sobre nenhum assunto controverso? E existirá assunto mais controverso do que definir qualidades e defeitos?"

Sem dúvida, são boas questões.

Não são, porém, os grupos anônimos que definirão o que sejam qualidades e defeitos e sim a própria pessoa. A proposta é simples: que ela, talvez pela primeira vez na vida, olhe de frente para si mesma para pensar sobre quem é. Não com um olhar narcisista e complacente que vê tudo que é seu como máximo. Nem com um olhar policialesco que condena tudo. E sim com um olhar sóbrio ou, pelo menos, que se esforce para ser sóbrio. Afinal, não é para mostrar a ninguém, para ser avaliado ou julgado por ninguém. Depois de escrito, o papel pode perfeitamente ser rasgado e jogado fora.

A escrita é recomendada porque possui características diferentes da palavra falada. Em primeiro lugar, ela não tem testemunhas que possam inibir ou mudar o rumo da conversa. Em segundo, traz um tipo de concentração que somente ela é capaz de proporcionar. Ao tentar se colocar no papel, a pessoa concentra-se em si própria como jamais o fez. E com um grau de organização inédito. Idéias que nunca teve aparecem aos borbotões. Alcança níveis superiores de raciocínio. Não é em vão que as obras supremas do ser humano foram escritas sobre um papel. Em terceiro lugar, porque o que foi escrito a pessoa pode, tempos depois, reler, e isso pode despertar novas idéias.

Alguns membros de grupos anônimos descrevem quase como um milagre essa experiência de ampliação do fluxo das idéias sobre si mesmos. Não há milagre nenhum; tão-somente resultado do trabalho humano. Toda vez que alguém senta para escrever sobre um tema, sua cabeça se liga nesse tema, e fica 24 horas por dia com ele circulando; até nos sonhos ele comparece. Tudo que se olha, tudo que se lê, tudo que se conversa tem como referência secreta o tema. Nesse estado, naturalmente, a criatividade dispara e surgem idéias aos borbotões.

A psicanálise, num certo sentido, faz o mesmo com seu paciente. Só que por meio da fala. A sucessão de sessões em que ele deve falar de si concentra sua mente nele próprio, exponencia sua atenção sobre tudo que ocorre nela, sensibiliza o seu pensamento para que ele pense melhor sobre ela. Daí a amplificação do rendimento. Nenhum milagre. Só trabalho.

Aliás, a chamada "psicanálise inaugural", aquela feita por Freud quando não existiam ainda psicanalistas, já que ele foi o primeiro, envolveu farto trabalho de escrita.

Freud - é óbvio - não tinha com quem trocar idéias dada a originalidade do saber que estava produzindo. Era um saber que simplesmente botava de cabeça de cabeça para baixo todos os saberes do homem sobre o homem. Inspirava, assim, as maiores resistências.

Não estou nem falando das idéias de Freud sobre a sexualidade, estou falando apenas das suas idéias sobre o inconsciente. As idéias sexuais não só mobilizam as resistências naturais a idéias novas como ainda despertaram resistências morais.

Freud estava com 40 anos e não tinha com quem conversar, com quem se abrir. Encontrou então um médico alemão chamado Wilhelm Fliess, que despertou nele aquela afinidade por ele desejada. Com Fliess, trocou volumosa correspondência, na qual relatava suas descobertas e sua auto-análise. Tudo, por escrito.

Além disso, escrevia livros nos quais expunha seus próprios sonhos e as associações e interpretações que fazia deles; além dos sonhos, pensava nos seus impulsos e sintomas. Verificou, então, que a partir de certo ponto seus livros não progrediam; sua mente ficava confusa e dando voltas em círculo. Foi nesse momento que Freud descobriu como era impossível a auto-análise: a própria mente ergue resistências contra ela.

O que fazia então para contornar essas resistências?

Deixava um pouco de lado a sua auto-análise e escrevia cartas para Fliess ou tentava entender os problemas de seus pacientes. As cartas aliviavam tensões em sua mente, que, dias depois, ficava mais clara. Entender seus pacientes auxiliava-o a entender a si próprio. Olhando para eles, podia depois voltar a olhar para si, aplicando as mesmas idéias que tivera com eles. Por esse caminho indireto, sua "auto-análise" progrediu.

Num certo sentido, Fliess operou como um "padrinho" dos grupos anônimos. Trocou com Freud energias psíquicas "positivas". O simples fato de Fliess ler as cartas já fertilizava Freud, desanuviava estranhas resistências.

A análise que Freud fazia de pacientes equivaleria ao auxílio que um membro do grupo presta a outros. Ao pensar no outro, ao tentar entendê-lo, se pensa e se entende melhor.

A escrita dos sonhos, sentimentos e sintomas que Freud realizava nos livros para produzir teorias equivaleria, nos grupos anônimos, à leitura da literatura sobre compulsões e a este Quarto Passo.


* Dr. Eduardo Mascarenhas   (  Psicanalista  )

Fonte AABR

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