Austregésilo Carrano faleceu em São paulo, em 27/05/2008, aos 51 anos de idade. |
Hoje vamos publicar trecho do livro, CANTO DOS MALDITOS, cujo autor chama-se Austregésilo Carrano Bueno, que inspirou o filme Bicho de Sete Cabeças.
O texto que publicamos é longo e incompleto. Para quem não tem muito tempo para leitura de textos longos, sugerimos a impressão do texto, que retrata como funciona - de verdade - os manicômios, estes lugares surreais, absurdos, muitas vezes inimagináveis por familiares. Lembro que quando estava numa "clínica" prisional chegou um novato, muito lúcido, como outros tantos que se achavam encarcerados e submetidos a um regime louco, que nossos familiares acham que são locais aptos a "tratar" a dependência química... Pois bem, perguntei ao jovem paranaense qual a droga que o trouxe a tal lugar e ele me respondeu que o pai achou um baseado na gaveta do armário dele e isso resultou em escândalo que resultou em mais um novo absurdo. Ele estava internado naquela espelunca, de fachada, porque era mero iniciante no uso de maconha.
O texto transcrito me conduz a pensar e alguns companheiros que entraram sãos, nestes lugares, e saíram pirados. Em "Clínicas", cuja internação é compulsória, podemos observar muita podridão denunciada em Canto dos Malditos. Também lembro, adictos, muitas vezes, não sabem se defender, nem se organizar, nem reagir com inteligência, protestando e denunciando internações malditas.
O texto transcrito me conduz a pensar e alguns companheiros que entraram sãos, nestes lugares, e saíram pirados. Em "Clínicas", cuja internação é compulsória, podemos observar muita podridão denunciada em Canto dos Malditos. Também lembro, adictos, muitas vezes, não sabem se defender, nem se organizar, nem reagir com inteligência, protestando e denunciando internações malditas.
Eis o texto, que segmentarei, Se tiver tempo de sobra tentarei reformatá-lo, sem prejuízo à obra e ao que o autor quis transmitir :
"J a m a i s SONHARIA aonde os caminhos da minha adolescência me levariam. Algo que supus acontecer apenas em filmes americanos de terror aconteceu. Em meados de outubro de 1974, chegando em casa, fui convidado por meu pai a acompanhá-lo em visita a u m amigo seu, hospitalizado. Estranhei aquele convite, pois não tínhamos o hábito de sair juntos, mas fui.
Chegando ao hospital, antes mesmo de entrarmos nas instalações de imediato dois enfermeiros vieram ao nosso encontro.
Com sorrisos, postaram-se um de cada lado. Desconfiei daquela posição. Pegaram em meus braços.
— Ei! pera aí... o que está acontecendo? perguntei assustado e olhando para meu pai.
— Calma, filho, é para o seu bem! respondeu meu pai.
— Seu pai o trouxe aqui pra você fazer uns exames, apenas isso...
— falou um enfermeiro negro.
— Mas que exame, pai? eu não estou doente...
— perguntei, forçando para soltarem os meus braços.
— perguntei, forçando para soltarem os meus braços.
— Calma, filho! é para o seu bem...
— Que calma? eles estão me puxando... qual é, velho?
— Nós sabemos que você não está doente. Ele só quer que você faça uns exames e mais nada...
— disse, tentando me acalmar, o enfermeiro negro. Puxaram-me para dentro de um pavilhão.
— Ei!... espere aí, meu pai não vai entrar? — falei e vi a porta atrás de mim fechar-se.
— Venha comigo! — disse o negro.
Largaram os meus braços. Caminhamos por um corredor. Do lado direito ficavam quartos, do lado esquerdo, uma sala não muito grande com mesas e cadeiras. Entramos num quarto logo ao lado da sala. Era um quarto que usavam como enfermaria. Sentaram-me numa cama alta. Havia um pequeno armário com vidro e um suporte para braço. O enfermeiro negro sentou-se ao meu lado na cama, o outro sentou-se a uma mesinha de enfermagem.
Largaram os meus braços. Caminhamos por um corredor. Do lado direito ficavam quartos, do lado esquerdo, uma sala não muito grande com mesas e cadeiras. Entramos num quarto logo ao lado da sala. Era um quarto que usavam como enfermaria. Sentaram-me numa cama alta. Havia um pequeno armário com vidro e um suporte para braço. O enfermeiro negro sentou-se ao meu lado na cama, o outro sentou-se a uma mesinha de enfermagem.
— Com o é o seu nome? — perguntou o enfermeiro negro.
— Austry.
- Bem, Austry, o que na realidade está acontecendo é o seguinte...
— Fez uma pausa.
— Seu pai encontrou maconha numa jaqueta sua. Ele acha que você é viciado e trouxe-o aqui para fazer tratamento.
— Fez uma pausa.
— Seu pai encontrou maconha numa jaqueta sua. Ele acha que você é viciado e trouxe-o aqui para fazer tratamento.
- Não acredito. Meu velho pensa que sou viciado? Ele nem conversou comigo e já me trouxe pra cá?!...
- E o fumo, você fuma maconha? - o negro.
— Dou meus peguinhas, mas isso não significa que seja viciado.
- Bom, só sei que seu pai o internou e a gente vai tratar de você.
- Tratar de mim? Isso é uma piada. Eu não sou um viciado, podem fazer o exame que quiserem. Não sou dependente de droga nenhuma. Vamos, façam os exames! Podem fazer qualquer tipo de exame, vocês verão que não tenho dependência nenhuma... Isso é, se vocês forem capazes de entender o que é ser um viciado! Cara! tô afirmando pra vocês: eu não sou nenhum dependente! Então, que tratamento vocês vão fazer?
- Todos os viciados que passam por aqui começaram com a maconha e as bolas. E agora estão nos picos.
— Problema deles. Pico não é o meu caso e nunca será. Podem olhar meus canos, não tenho uma marca. Se eu tomasse pico, tá certo, vocês podiam me classificar como viciado, dependente, caso eu não passasse sem uma picada. Mas maconha... a maconha faz menos mal que o cigarro comum.
Que medo! eu não acreditava, era um pesadelo... Só podia ser u m pesadelo — eu, internado para fazer tratamento por fumar maconha... Se eu tomasse pico, cocaína, tá certo. Mas eu não tomava, mal tinha cheirado uma ou duas vezes. Só porque fumava maconha?... As vezes eu passava semanas sem colocar um fininho na boca. Qual é? Maconha não vicia ninguém, e, quem disser o contrário, eu desafio a provar que maconha vicia. Preparada a injeção... uma cavala! Braço no suporte, palmadinhas para despertar a veia, e a picada.
- Cara, não tem nada a ver esse internamento... Eu não... vou... fi...
— E não vi mais nada. Acordei no dia seguinte, tentava raciocinar... tonto pelo efeito da injeção! Estava num quarto cinza-claro. Um pijama azul de bolinhas. Não era meu. Levantei, fui até a porta. Ao abri-la, dei de cara com um pessoal sentado às mesas, tomando café. Todos me olharam, uma nova atração. Queria ir ao banheiro, meu pênis estava duro, fato que chamou mais a atenção de todos. Encabulado, tentei esconder o meu estado. Perguntei onde era o banheiro, um cara com ar de gozação informou.
— E não vi mais nada. Acordei no dia seguinte, tentava raciocinar... tonto pelo efeito da injeção! Estava num quarto cinza-claro. Um pijama azul de bolinhas. Não era meu. Levantei, fui até a porta. Ao abri-la, dei de cara com um pessoal sentado às mesas, tomando café. Todos me olharam, uma nova atração. Queria ir ao banheiro, meu pênis estava duro, fato que chamou mais a atenção de todos. Encabulado, tentei esconder o meu estado. Perguntei onde era o banheiro, um cara com ar de gozação informou.
O pavilhão era grande como um barracão. Lá estava a sala com as mesas, em frente ao quarto em que eu dormira. Caminhando em direção ao fundo do pavilhão, havia um corredor com quartos dos dois lados e mais uma sala grande com mesas compridas, como as de festas de igreja. Passando essa segunda grande sala, havia um corredor com mais quartos de cada lado.
As portas dos quartos tinham uma pequena abertura em horizontal, que permitia ver o interior. O banheiro era do tamanho dos quartos, com vaso e chuveiro, uma pia de rosto e um pequeno espelho na parede.
Tomei café, sem importar-me com os outros que ali estavam. Estava querendo entender a fria em que me encontrava.
Matutava com meus botões. Sentia os olhares, querendo interrogar. Fui o último a levantar da mesa. Os outros tinham ido para o fundo do pavilhão. Após aquele café com cevada e pão, fui levado a outra sala, a das mesas grandes. O enfermeiro abriu uma porta e mandou-m e sair.
Saí para um pátio de uns 20 por 20 metros, cercado por um muro de uns 5 metros de altura. Vi outros internos, que não estavam às mesas, em frente ao meu quarto. Mais pareciam mendigos maltrapilhos. Ficavam isolados dos outros num canto próximo aos banheiros do pátio. Nesse canto havia um telhadinho, parecendo uma churrasqueira de parque. Aquele grupo estranho ali ficava. No meio do pátio havia um pouco de grama, onde alguns deitavam-se. Encostei num canto do muro branco, observando aquele cenário de filme de terror.
O que mais me chamava a atenção era aquele grupo, no canto coberto... tinha um sujeito enorme, forte, meio gordo ou inchado, com um corte de cabelo estilo militar. Não parava de balançar a mão direita e virava a cabeça de um lado para outro. Era uma figura assustadora. Outro sujeito corria de um canto para outro, soltando um tipo de grunhido. Havia alguns com as calças molhadas e sujas, devia ser urina e fezes. Um outro escorregava andando com o corpo e o rosto encostados na parede, parecendo querer entrar, fazer parte daquela parede, esconder-se de todo, misturar-se com o concreto.
Era uma visão triste: aquelas pessoas reduzidas àquilo. Eram pessoas sim, seres humanos, mas pareciam feras torturadas, agoniadas, com alguma coisa mordendo seus corpos e rasgando-lhes também a alma.
Os que haviam tomado café comigo pareciam normais e não estavam em farrapos, como aqueles lá do canto. Havia ouIros malvestidos ou sujos, esparramados na pouca grama. Mas os daquele canto eram diferentes, pareciam a degradação de uma raça sobrevivente de uma guerra nuclear. O desespero em seus olhares, o medo em seus atos... a individualidade em suas fantasias, apenas quebradas p o r algum ato de violência de um para com o outro.
Aquele canto era qualquer coisa diabólica. Como se o demônio tivesse o comando de suas mentes, nelas derramando sua ira e divertindo-se em atormentá-los. Aquilo era satânico: pessoas urinadas, defecadas, revirando os olhos, cabeças, querendo entrar dentro do concreto.
Todo aquele tormento só podia ser comparado ao inferno. Se ele realmente existe, sem dúvida eu estava vendo um pedacinho dele, ali naquele canto, o canto dos malditos...
Todo aquele tormento só podia ser comparado ao inferno. Se ele realmente existe, sem dúvida eu estava vendo um pedacinho dele, ali naquele canto, o canto dos malditos...
O conceito geral daquele pátio é uma grande jaula, onde as feras ficavam, umas deitadas, outras sentadas em diversos lugares, os olhares perdidos horas e horas, olhando não se sabia para onde. Todos mantidos escondidos, como animais contaminados e que deviam ser trancados em algum lugar. E o lugar era aquele pátio. Não sabia o que fazer... tudo ao meu redor, não! não estava acontecendo, era um pesadelo, meu Deus! Aquelas pessoas não eram reais... eu tinha que acordar!... A angústia começou a tomar conta de mim... eu não estava ali, eu não queria ficar ali!... meu Deus, que lugar era este?!
— Ei! você é o enfermeiro?
— Sou - respondeu, com um livro na mão, roupas comuns e sentado numa cadeira, perto da porta que dava acesso ao interior do pavilhão.
— Olha, eu não estou entendendo nada. Ontem eu falei com um outro enfermeiro, não falei com médico nenhum, não sei o que estou fazendo aqui dentro. Quero ir embora!
— gritei desesperado.
— gritei desesperado.
— Você vai falar com o médico. Daqui a pouco ele vai chegar, fale com ele
— disse sem dar a mínima.
— disse sem dar a mínima.
Agoniado, fiquei rodando pelo pátio. Não ousava chegar perto daquele canto. Remoía-me: quando ele chegar, eu explico.
— não sou viciado, não tenho necessidade de drogas. O senhor pode fazer os exames que quiser! Foi um equívoco de meu pai. Eu não preciso ficar aqui dentro, rodeado por pessoas horríveis.
— não sou viciado, não tenho necessidade de drogas. O senhor pode fazer os exames que quiser! Foi um equívoco de meu pai. Eu não preciso ficar aqui dentro, rodeado por pessoas horríveis.
Quando o médico chegou, meu coração disparou. Dependia dele continuar naquele lugar pavoroso... dependia exclusivamente de mim mostrar a ele que eu era uma pessoa normal. Ao entrar no pátio foi imediatamente cercado pelos internos que haviam tomado café em frente ao quarto onde eu dormira. Os do canto nem tomaram conhecimento do ilustre personagem.
Aproximei-me. O enfermeiro do pátio falou alguma coisa ao seu ouvido e ele me olhou. Estendi-lhe a mão em cumprimento. Tocou apenas nas pontas dos meus dedos como se eu fosse contaminá-lo. Disse-lhe que queria falar-lhe. Abanou a cabeça positivamente, entreteve-se em seguida com o grupo ao seu redor e, rapidamente, saiu do pátio.
— Enfermeiro, eu quero falar com o médico.
— Se precisar, ele chama!
— Com o assim? Eu quero falar com ele. Não é se ele precisar! Eu quero falar com ele. Ele não pode simplesmente me deixar preso aqui dentro. Eu exijo falar com ele.
— Aqui dentro, você não exige nada! E se precisar, ele manda buscá-lo respondeu, já.
— Então, eu quero falar com meu pai!
— A sua família você só verá daqui a quinze dias.
— Quê, quinze dias? Eu não vou ficar aqui dentro todo esse tempo, não, de jeito nenhum.
— Olha, coloca na sua cabeça que você está internado, esse é o fato. Você está em tratamento.
— Tratamento de quê? Vocês simplesmente me prenderam aqui dentro. Ninguém veio me examinar pra ver se sou ou não um viciado. O médico chega aqui, dá uma olhada geral em todo mundo e sai. Qual é, que lance é esse?!
- Cara, eu não tenho que lhe dar explicação nenhuma. E é melhor você ficar calmo para o seu próprio bem.
— continuou nervoso com minha insistência.
— continuou nervoso com minha insistência.
Não adiantava. O cara era radical. Perguntei a ele se poderia falar com o médico de tarde. Só amanhã ele estará de volta!, respondeu seco. Que merda ficar aqui, eu não quero. Os pensamentos começavam a se atropelar em minha mente. Não conseguia coordená-los: ontem , meus estudos, vestibular, minhas aulas... é um pesadelo, meu Deus, isto não está acontecendo, não pode ser real... Estou preso ao canto dos loucos cagados, que merda! tenho dezessete anos e estou num hospício. Não é real, meu Deus! Pai... por que você fez isso comigo? Achar maconha... não sou viciado! não prova nada, ignorância sua, pai. Eu, dentro de um lugar desses... e meus estudos? Se tivéssemos conversado, pai, eu lhe provaria que não sou viciado... não sou, pai! Não precisava me trazer para cá. Por que não conversamos, pai? Por que não conversamos, porra?! O médico nem sequer me olhou direito, vão me tratar do quê? Eu não quero ficar aqui. Eu vou fugir. O muro é alto demais, somos mais de vinte, seria fácil dominar aquele bundão, mais uns três e seria... Aquele c:>ra com um gibi parece normal, talvez ele tope...
- E aí, tudo bem? — perguntei imaginando qual seria sua reação, pois todos que estão internados eram loucos!
- Tudo bem, senta aí! — falou com o gibi levantado para tapar o sol.
- Tá aqui há muito tempo?
- Dessa vez, faz cinco meses.
- Cinco meses, aqui dentro? Com o é que você aguenta? - Isso me pareceu uma eternidade.
- Só penso em ir embora desse inferno! Já não dá mais pra aguentar esses internamentos.
- Quantas vezes você já foi internado?
- Já perdi até as contas — abaixando a cabeça.
- M eu nome é Austry, e o seu?
— Rogério.
— Você tá sacudo de ficar aqui dentro, eu tô só há um dia e pouco e já não aguento. Só tem um vigia aqui no pátio, com mais uns dois a gente podia dominar o cara e pinotear daqui, em dois toques...
— Nós só chegaríamos à parte interna do pavilhão!
— Por quê?
— Ele só tem a chave daquela porta. As outras chaves ficam com os outros enfermeiros. Isso aqui ficaria em pouco tempo cheio desses gorilas... é bobeira!
— Bobeira é ficar aqui dentro! Eu não estou aguentando...
— Cara, se acalme!... senão você vai pra Tortulina.
— Tortulina, o que que é isso?
— E uma injeção de Haloperidol que lhe aplicam no músculo. Você fica igual àquele cara grandão, lá no canto: babando e revirando a cabeça. A porra dessa injeção repuxa todos os nervos. E como íngua dando em vários nervos ao mesmo tempo, cara... O efeito dessa injeção retorce todo o corpo. Dói pra diabo essa droga do capeta! Eles aplicam nos pacientes que estão exaltados, é uma forma de controlá-los, pois ficam completamente sem ação física. Por isso, se acalme de vez... senão, te levam pra enfermaria e te aplicam a droga.
— Então!... p o r isso o enfermeiro falou daquele jeito... Esses caras aqui dentro não querem ser incomodados. Quem os incomoda, logo eles dão um jeito do cara entrar numa por bem ou por drogas.
— Deu pra perceber, não tem meio-termo...
— Tem o que eles querem. Você chegou ontem, nunca esteve internado antes?
— Nunca e até agora não aceitei que estou aqui.
— Cara, isto aqui é pior que uma prisão de verdade. E, em muitos sentidos, tão ou mais perigoso. Essas drogas que somos obrigados a tomar são um veneno que nos mata em poucos
anos.
— Até agora só tomei uma injeção do tamanho de uma cavala e dormi até hoje.
— Você tomou a “três p o r u m ”, como nós chamamos. Por que te internaram?
— Meu velho pensa que sou viciado.
— E você é?
— Pelo que entendo, viciado é aquele que, quando o organismo está sem droga, parece sentir uma sede danada. Isso é ser viciado. O meu caso era apenas uns peguinhas na maconha e
umas bolas, mas não tenho dependência nenhuma. Podem fazer os exames que quiserem.
— Cara, teu velho é um mal informado. Se ele queria evitar que você tomasse realmente drogas, ele te trouxe ao lugar mais errado do mundo, pois aqui dentro nós somos drogados diariamente. A sedação aqui é feita em massa. Tomamos mais de vinte comprimidos diários.
— Até agora não tomei nenhum comprimido.
— Mas não fique impaciente, aqui você come comprimidos. Nós acordamos tomando essas drogas e dormimos tomando essas drogas.
— Esse médico... quem é?
— Esse médico é um verdadeiro psicopata. Chama-se Dr. Alaor Guimont, catedrático em Psiquiatria, professor em universidades, um dos diretores deste “laboratório ” chamado Sanatório Bom Recanto. Tem setenta e dois anos e se você cair na mão dele, xará, ele com certeza irá te queimar todos os chifres... E o maior sádico que tive o desprazer de conhecer.
— Cara, você é fã dessa figura... O que é queimar os chifres?
— Eletrochoque. Choque, meu irmão!
- J á ouvi falar nesse troço, mas isso é pra louco...
— E o que você acha que somos? Esse filho de uma cadela pesteada vive com a maquininha de eletrochoque na mão. Acho que ele até dorme com ela.
— Mas eu não sou louco.
- Tá aqui dentro! Pra todo mundo lá fora você não passa de um louco... Isto aqui é um hospício, cara! E começa com esses interesseiros que dizem tratar da gente.
- Por que você diz isso? E você tá aqui por quê?
- Cara, estou aqui porque sou dependente. Tomo e vou continuar tomando cocaína. Esses caras aqui não curam nem bêbado. Nunca viram nem uma quina de maconha, não entendem nada sobre vício, tanto é que você está aqui dentro ... Agora, no meu caso, tá certo. Eu preciso de um verdadeiro tratamento, não o que eles fazem aqui dentro. Enchem-me de barbitúricos e queimam os meus chifres com eletrochoque. Cara, que tratamento é esse?
- Eletrochoque em viciado?
- Por isso eu tenho certeza, se o Dr. Alaor pegar a tua ficha, você vai entrar nessa na certa.
- Como, se ele nem falou comigo ainda?
- O que você está esperando? Q u e ele vá conversar contigo? Você realmente tá louco!
- Não tô entendendo... como assim?
- Cara, você tem visto muita televisão. Essa de divã pra você deitar e falar, só em filmes ou em clínica particular, que são uma verdadeira suíte de hotel cinco estrelas. Aqui você não passa de uma ficha, e sua entrevista, a consulta com o psiquiatra, você já fez. Foi quando ele visitou o pátio. Aquela foi a sua consulta. O tratamento vem através da tua ficha.
- Mas que tratamento é esse?
- E o que o teu dinheiro pode comprar. Se você tivesse grana, você estaria numa clínica particular.
- Mas como um médico psiquiatra pode medicar sem, ao menos, conversar com o paciente?
- Caiu aqui dentro, você não é mais dono de si. Fazem o que quiserem contigo, tua ficha já tá cheia de informações que teu pai preencheu. Está como viciado. Só vão examinar o teu coração e derreter os teus chifres. E foda!
— Aí, cara, vou rodar um pouco.
Rogério não estava sendo nada agradável com esse papo. Ao contrário, estava me deixando cabreiro. Ele já podia ser considerado um freguês de hospício. Saía e voltava. Mas era uma fonte de informações. Verídicas? O tempo diria...
— Cara, e os exames? Eles não vão fazer pra saber se sou dependente?
— Exame! pra ver se você é dependente de maconha? Isso é papo furado. Não existe tal exame. E o cara que disser que é viciado em maconha, eu mando ele ir caçar marido, e dar até o zóio cego ficar rosinha. Maconha não vicia ninguém, xará. A única coisa que ela faz é deixar você fissurado pra querer entrar na onda que ela causa. Agora, se não pintar, tu toma uns conhaques e faz a cabeça do mesmo jeito . E diferente de quem é viciado em coca, não tem outra coisa que te faça a cabeça. Tem que ser somente o pó-de-anjo. Só ele acaba com a violenta fissura. E muito diferente. E as porras desses caretas não enxergam essa tremenda diferença. Pra eles tudo é viciado.
— Com o é que você tem tanta certeza?
— Cara, teve época em que eu tinha pacotera de maconha. Fumava direto. U m baseado a cada meia hora. Cheguei a empapuçar de tanto fumar essa droga. Fiquei com uma aversão ao cheiro da maconha, que hoje me faz vomitar. Não suporto nem mais o cheiro da maldita.
— Então a maconha não te fazia mais a cabeça, e você partiu pra drogas mais fortes, foi isso?
— Cara, ninguém toma cocaína porque a maconha deixou ou não deixou de fazer a cabeça. Esse é outro papo furado, outro tabu da ignorância das pessoas que não entendem nada sobre maconha ou cocaína. Esse papo de que se começa com a maconha e depois tem que se recorrer a drogas mais fortes é pura fantasia. O lance de querer uma droga mais forte é uma questão de cabeça e conhecimento do assunto...
— Então, por que você começou com o pico?
- Comecei com dezesseis anos a tomar pico. Não porque alguém me obrigasse ou tenha viciado. E sim porque essa é a fase mais carente, p o r insegurança, p o r fuga, p o r angústia da adolescência. E também por ingenuidade e falta de real conhecimento do que é a coca e dos seus efeitos. Esses são os verdadeiros motivos que nos levam ao vício. Tudo o mais é papo
furado.
- Você falou ingenuidade. Eu comecei a fumar com quinze anos, tive oportunidade de tomar pico e não tomei!
- Cara, eu tô com vinte e dois anos. Há seis anos as coisas eram diferentes. Hoje, 1974, ainda não existe em todo o Brasil um hospital especializado em tratamento de viciado. E se você quer saber, vão mais trinta anos. A ignorância sobre as drogas irá continuar, porque este país é atrasado e manipulado. O governo é o maior cúmplice do vício. D e repente, o pessoal do
governo não quer que o vício acabe. Não existe a liberdade de se falar abertamente sobre as drogas.
- Mas o combate às drogas é violento. Trafica pega uma cana federal.
- Cara, você não está entendendo o que eu estou dizendo!
Quanto mais mistérios fizerem sobre as drogas mais o baseado se torna uma coisa misteriosa e sedutora. E o pico de cocaína, o êxtase dos êxtases. E as grandes manchetes sobre apreensão de drogas mais admiradores atraem, e mais trafica na área criam.
- Então, como e o que fazer?
- Conscientizar os jovens. E aquele lance. Vou falar sobre cocaína, que é o que realmente vicia. Q u em tá dentro quer sair e quem tá fora, p o r curiosidade e falta de conhecimento dos efeitos da cocaína, quer entrar. Por acaso você sabia que a maioria dos bolivianos que transam com cocaína não tomam pico? Porque eles conhecem o efeito da droga. Cheiram de vez em quando, mas nunca colocam nas veias. Eles conhecem os efeitos da droga. O que não acontece com a nossa juventude, que se empolga simplesmente pelo barato que ela causa. O fabricante boliviano ensina até às crianças os efeitos da cocaína, mostra os efeitos. É isso que se tem que fazer...
- Concordo com você. Eu só não tomei umas picadas por que tive medo. Conheci uma mochileira da Bahia. A gata só tinha as duas presas na boca: a coca já tinha feito cair todos os
dentes dela. Só sobraram as duas presas. Ela só tinha dezoito anos. E os braços eram uma ferida só.
- E por aí... Tire uma foto da boca dela, faça uns outdoors e espalhe pela cidade com letreiros assim: “TOME COCAÍNA, ENCOMENDE SUA DENTADURA.” Esse seria o verdadeiro combate às drogas. Talvez alguém tenha essa ideia, também mostrando os braços.
Rimos. Mas o Rogério tinha razão. Para muitos da minha idade a empolgação diminuiria com certeza. Eu, se fosse presidente, faria isso: liberaria a maconha e faria os outdoors.
- Concordo com você. Liberar a maconha e fazer os outdoors.
- Pensando só em você! Maconha é o mesmo que o fumo de cigarro comum, os efeitos são os mesmos, ao longo do tempo ou até maiores para quem fuma cigarros comuns. Essas pessoas têm mais facilidades de ficar com certas doenças do que os que não fumam.
- Isso deveria aparecer na televisão. Co m pessoas que transam essas drogas, nós, os usuários. Muito se poderia esclarecer. Mas deixam tudo às escondidas.
- Isso, meu chapa, só daqui a cem anos! Essa de colocarem nas ruas o assunto, vai ser difícil. Preferem nos jogar dentro de hospícios ou em prisões. Eu já estou cansado disso, qualquer dia acabo com esse martírio, de entrar e sair desses hospícios. Tomo uma over e fim. Aqui dentro, só judiam, graças à ignorância. E melhor uma over e ponto final. Aquelas palavras doeram lá no meu íntimo. Rogério estava cansado, vinte e dois anos que pareciam trinta. O que ele já linha sofrido, só ele sabia. Abaixou a cabeça, já com sinais de calvície, rosto redondo, moreno claro, bigode preto ralo, e entreteve-se em seu ser sofrido. Nada falei, calei olhando aquele
canto. Fomos interrompidos por um grito.
— Cambada! O os remédios! — gritou o enfermeiro bundão.
Trazia uma caixa com divisórias, colocou-a em cima da cadeira. Alguns internos o rodearam, enquanto ele ia tirando copinhos plásticos com os comprimidos. Chamava o nome e os virava na palma da mão do sujeito. Alguns, já com canecas de alumínio amassadas e com água, tomavam e passavam a caneca ao seguinte. Esvaziadas as canecas, iam buscar mais água naquele canto. Num relâmpago, enchiam as canecas. Os indiferentes daquele canto se perturbavam com as presenças, mas logo se entregavam às suas fantasias. Surpresa foi a hora em que o enfermeiro, gaguejando, chamou pelo meu nome. Uma zero para o Rogério... sem ao menos um olá do famoso psiquiatra, eu já estava sendo medicado. Talvez esses psiquiatras sejam também algum tipo de bruxo e tenham uma bola de cristal...Peguei os comprimidos: ao todo eram cinco e uma cápsula vermelha. N o resto de água eu os engoli. Após o grupo dissolver-se o enfermeiro tentou dar para alguns daquele canto os comprimidos. Uns os apanhavam sem problemas, a outros nem foram oferecidos e alguns recusavam. Os comprimidos que sobraram foram pisados pelo enfermeiro. Achei u m absurdo aquele desperdício, mas talvez mudasse de ideia! Pouco depois dos comprimidos, a porta que dava acesso ao interior do pavilhão foi aberta. Deviam ser umas onze horas. Chamada para o almoço.Entraram, atropelando-se pela porta. Fui um dos últimos.
Dentro, nas mesas compridas, pratos de alumínio, na maioria amassados, envelhecidos, sem a tinta do fundo, e colheres. Os maltrapilhos, mal-encarados, já estavam sentados. Os do canto, em pé, correndo pelo corredor dos fundos, escondiam-se no escuro, gritando. Além da confusão que faziam, o mau cheiro completava o cenário. Alguns urinados, outros cagados, que cheiro. Assim eles comem.
Chocado, procurei sair daquela sala, rápido. Percorri o corredor. Em outra sala vi mesas para quatro, com toalhas xadrez, pratos brancos de louça, colheres também. Tudo limpo, até os
pacientes. Fui direto para meu quarto, sem apetite. Tudo ali era novo e assustador... nó na garganta... de bruços, cara no lençol, o nó vira vontade de chorar. Rogério veio me buscar. Sentamos à mesma mesa. Pela porta da liberdade, entram panelões: arroz, macarrão, feijão e
carne. Os dois enfermeiros serviam a todos, faziam os pratos, iodos cheios acima da boca. Apetite não faltava, comiam como gulosos. Todos servidos, levavam as panelas para a outra sala. Mal toquei o prato, não tinha fome, encostei o prato. Comentei com Rogério:
- Os lá de trás... como eles conseguem comer com os outros cagados ao seu lado?
- Cara, é melhor você não esquentar com o que vê aqui dentro.
- Os pratos deles são de alumínio.
- Se fossem de louça poderiam se machucar. Estão a toda hora se agredindo.
- Vocês... parecem que não comem há dias?!
- São os remédios para abrir o apetite.
Não tinha fome. Meu prato não ficou sem assistência, logo foi pedido. Após o almoço, todos aos seus quartos. Deitar para fazer a digestão. Essa de irmos deitar após o almoço pareceu ser uma ordem aos da sala em frente ao meu quarto. Os lá de trás ficaram perambulando pelo corredor, em correrias e grunhidos. Deitado em minha cama, a porta do quarto semi-aberta, vi o enfermeiro negro surgir.
- Tudo bem, Austry?
- Nem tudo.
- Por quê?
Entrando, sentou-se na cama, ao lado dos meus pés.
— Porque não consegui falar com o médico! Não sei o que estou fazendo aqui. Meu pai não tem dinheiro para pagar esse tratamento bobo. Não sei de nada...
— Você não falou com o médico porque seu pai já falou com
ele...
— explicou calmo.
— explicou calmo.
— O que meu pai acha é uma coisa. O médico devia conversar comigo. M e examinar, fazer qualquer tipo de exame pra ver se tem necessidade de eu fazer esse chamado tratamento. Eu estou pra fazer vestibular, como é que ficam meus estudos?
— O Dr. Alaor Guimont é um dos melhores psiquiatras do Paraná. Só em vê-lo ele já o analisou. Ele é o seu médico, é bastante experiente.
— Ele é também adivinho... olhou-m e p o r uns segundos e já soube que sou viciado... Qual é, Marcelo? é esse o seu nome? E outra, já estou tomando comprimidos. O homem , além de adivinho, deve ter uma bola de cristal, só pode ser isso.
- Riu da maneira como falei.
- Riu da maneira como falei.
— Você está aqui pra sair do vício. Q u em m andou se encher de porcaria por aí e quebrar tudo em casa?
— Com o é que é?... quebrar tudo em casa?! Isso é mentira... Lembrei-me que quando eu queria sair e às vezes os velhos se opunham, fazia um escarcéu dentro do meu quarto, chutando meu guarda-roupa. Jogava algumas coisas ao chão e saía assim mesmo. Encontrando m aconha na m inha jaqueta, eles somaram: dois mais dois igual a cinco... são as drogas que fazem ele agir dessa maneira! Não tiveram a consciência de analisar a rebeldia da adolescência. A desinformação sobre as drogas, sobre o que Rogério e eu conversamos. E as manchetes: “Drogado maconheiro mata a mãe para comprar maconha...” “Maconheiro coloca maconha dentro de balas para viciar crianças...” Absurdos dessa natureza dominam a ignorância popular sobre as drogas. Meus pais fazem parte dessa grande massa popular manipulada por informações absurdas que acreditam ser possível
colocar fumo de maconha misturado com açúcar em forma de balas a serem dadas para criancinhas chupar e se viciar. E o cúmulo do absurdo, mas a grande maioria acredita. E graças a essas fantasiosas manchetes, a obscuridade sobre o assunto das drogas na sociedade persiste...
— Bem, isso é o que seu pai colocou na ficha... que você inda muito nervoso, desobediente e agressivo com todos. Eu não devia nem lhe contar isso!
— Mas isso não prova que eu sou viciado.
— Com o não? Se você não escuta ninguém, quer fazer o que lhe vem à cabeça... algum problema você tem!
— Posso ter algum problema, menos ser viciado. Sou meio revoltado com... nem eu sei o quê. Agora, com drogas, não tem nada a ver. Façam exame de sangue, sei lá o quê, mas vejam que
não preciso de tratamento nenhum!
— Não sei a sua história, só sei que você vai ser tratado pelas drogas que tom ou lá fora.
— Vão me tratar me dando mais drogas aqui dentro.
— Mas aqui são todas bem administradas.
— N um a ficha. Pois ninguém me tira da cabeça que vocês, pra começarem a me dar medicamentos, deveriam no mínimo fazer alguns exames. E também o psiquiatra devia ter ao menos
conversado comigo.
— Você parece ser mais velho, Austry.
— Talvez a rua envelheça a gente mais cedo. Você disse que o Dr. Alaor Guimont vai ser o meu médico. E esse papo que eu ouvi de eletrochoque em viciado?
— Mas você não é viciado... ou é?
— E justamente por isso que eu quero que vocês façam os exames que quiserem, antes de me queimarem os chifres. Pô, Marcelo! me dê essa força, fale com o médico, explique a ele que foi um mal-entendido do meu pai. Explique pra ele!
— Austry, eu não posso fazer isso, ele é o médico. Mas você não precisa ficar com medo de nada, aqui ninguém vai lhe fazer mal. Agora descanse do almoço.Saiu, fiquei com meus botões. O que iriam fazer comigo?
Essa porra de eletrochoque. Rogério tem verdadeiro pavor. E se esse médico do peru resolve me aplicar essa droga de choque, como será que é? A possibilidade do choque começou a p er-
turbar-me. O pavor que o Rogério tinha. Marcelo saiu e não tocou no assunto. Eletrochoque. Ai, meu Deus! livrai-me dessa.
Agoniado, o nó na garganta... (que merda! quero chorar, mas não consigo). Reviro-me na cama-colchão de palha... que ro pensar em outra coisa. Este quarto, olho os detalhes: o vitrô, não são barras, são armações de ferro... as paredes cor gelo, as portas cinza-claras. Vira tudo cinza quando acordo de manhã. A porta também tem uma pequena abertura, em sentido horizontal. Levantei o colchão, examinei a armação do estrado... todo aramado, e o criado-m udo de latão, ou sei lá, verde-abacate, com uma pequena gaveta e uma abertura maior embaixo, para as roupas.
Algumas roupas minhas estavam ali naquela abertura do criado-mudo. Estava ainda com aquele pijama azul de bolinhas brancas. O teto... uma agonia faz correr o m eu sangue, escuto as batidas do meu coração. Será que minha turma virá me visitar?
Algumas roupas minhas estavam ali naquela abertura do criado-mudo. Estava ainda com aquele pijama azul de bolinhas brancas. O teto... uma agonia faz correr o m eu sangue, escuto as batidas do meu coração. Será que minha turma virá me visitar?
Que sacanagem! uma simples consulta com um psicólogo evitaria esse martírio todo. Era um martírio ficar num lugar desses um dia, que dirá, como o Rogério... cinco meses! Visitas só
daqui a quinze dias, por quê? Deve ser para a gente se acostumar a ficar aqui. Nem com anos e anos eu vou me acostumar num lugar nojento como este. U m barulho despertou-me dos meus pensamentos.
A porta estava fechada, não trancada. Vi olhos na abertura de uns cinco centímetros, depois a figura assoprou no buraco. Saiu. Não dei bola. Novamente, o assoprão. Levantei e fiquei do lado da porta. O utro assoprão. Abri a porta rápido. U m cara, cabeça chata, paraíba, soltou um sorriso estridente e saiu pelo corredor rindo. Ele tinha o rosto fino, bocudo, pele escura, não negro e nem mulato, cor de nortista do Brasil, também calvo, parecia o Amigo da Onça. Não lhe dei atenção, voltei para a cama, com meus botões... voltei a martirizar-me, estava com dó de mim mesmo. A revolta começou a vir à tona, aqueles assoprões recomeçaram na abertura, opinei brincalhão já estava me irritando. Tentei acalmar-me, mas aqueles assoprões não deixa vam, levantei e tentei pegar a hiena no cio.
— Vem cá, seu puto! - Tentei pegar em seu braço. Ele foi
mais rápido e fugiu pelo corredor, rindo.
— Ei, ei, calma rapaz! — disse-me o enfermeiro.
— Esse cara de hiena não pára de assoprar na minha porta!
— É o Pernambuco, não ligue, não!... Ele faz isso com todo mundo. Ele só quer chamar a atenção.
— Tudo bem, mas tava enchendo o saco.
— Ele é um dos mais velhos aqui dentro. Faz nove anos que ele está internado.
— O quê! nove anos? Você está brincando...
— E tem cara aqui dentro há mais tempo.
— E os parentes?
— Parentes? Esses caras já foram abandonados há muitos anos. Eles não têm ninguém p o r eles. O mundo deles é aqui dentro. Lá fora, eles não saberiam n em pegar um ônibus. Podíamos deixar as portas abertas e tocar fogo no pavilhão que eles não sairiam.
— E quando morre um deles?
— O sanatório faz o enterro. Este hospital é filiado à Federação Espírita do Paraná e, como caridade, eles seguram esses coitados aqui dentro. Lá fora eles virariam mendigos e morreriam.
Aos sábados, vocês recebem passes com o seu Abib, que é um médium muito bom. — Enfermeiro falador, devia ser novato, era jovem.
— E você trabalha há muito tempo aqui?
— Há seis meses, mais ou menos.
— E por que a maioria aqui é louco? Tenho visto neguinho aqui dentro só fodido... por que estão aí, cagando em si mesmos?
O falador não respondeu, só deu uma piscadinha e virou-se em direção à porta da liberdade. Voltei para o meu quarto. Já não queria saber de mais nada. Q uanto mais conversava, mais aquele lugar me parecia desprezível. Tudo tinha um gosto amargo, as surpresas eram desagradáveis, cada pessoa tinha uma história feia, eram enredos tristes, uns piores que os outros. Chamada para o pátio. Repetia-se o quadro visto pela manhã. Cada um ocupava o mesmo espaço, aquele canto, alguns esparramados pela pouca grama. Tinha sim, uma mudança, o guardião era outro. O jeito era eu também conquistar um espaço e ficar coçando o saco, naquela grande-pequena jaula.
— Rogério, quem é aquele enfermeiro falador?
— E um estagiário.
— E esse cão de guarda?
— E o Luiz, enfermeiro da tarde. Gente boa. E malucão.
— Com o assim?
— U é, fuma unzinho também...
— Será que ele tem um baseadinho aí pra gente?
— Você acha que ele é trouxa? Ele já vem com a cabeça feita. Ele não vai arriscar o emprego dando fumo pra paciente. Ele é esperto, é bom malandro.
— Porra, todo dia a transa é essa: pátio, remédio e comer. Não muda nunca?
— Muda sim, nos dias de visitas e nos dias de choque.
— Vem você outra vez com esse papo de choque.
— Tá legal, quem vai ser o teu médico?
— O Marcelo disse que é o Alaor. Mas tem outro?
— O adm inistrador, dizem que tam bém é médico, mas quem mexe na cuca do pessoal acho que é só o Dr. Alaor. Esse sádico!Eu já estava p ertu rb ad o , mas q u eria saber mais e, num
masoquismo incontrolável, continuava a perguntar:
— Desde que cheguei, ninguém falou nada de bom deste lugar. Não deve ser tão ruim como vocês estão dizendo.
— Cara, isto aqui não é um clube de férias e nem uma clínica de repouso de filme americano. Isto aqui é u m hospício brasileiro e nós somos segurados do INPS. Você não irá ver nada de bom.
— Só quero sair o mais rápido possível daqui!
— Austry, não estou querendo assustá-lo. Mas encare a real. Você foi internado por insistência do seu pai, ele deve ter esperado um bom tempo, aqui as vagas são difíceis. Se você pensa que quando receber visitas eles irão tirá-lo daqui, é fantasia sua.
— Qual é, cara!? Ele vai ter que me tirar daqui! Se os exames não derem nada, não tem por que eu ficar aqui.
— Porra! você tá parecendo u m desses Zé-Bobões. Não vão fazer porra nenhum a de exames em você! E sabe o que vai acontecer quando vierem te visitar? - falou irritado.
— Não sabia que você também é adivinho!
— Não é ser adivinho. Você notou o apetite do pessoal hoje, na hora do almoço? Eles, nesses dias em que você não pode receber visitas, irão te engordar como se engorda porco em chiqueiro... você vai ter u m apetite de comer tudo o que pintar com esses remédios pra abrir o apetite! Em quinze dias, cara, você vai estar gordinho...
— E aí?... não tô entendendo...
— E aí... quando os seus familiares vierem para visita, eles irão achar você mais gordo, mais forte, corado, de aparência melhor e mais calmo — efeitos dos medicamentos tranqüilizantes. Irão lhe dizer que foi ótimo trazerem você pra cá... Q u e o tratamento tá sendo bom. E nada, meu chapa, nada do que você disser eles irão escutar! Cara, esse pessoal é inteligente, são mafiosos.
— Conheço meus velhos, assim que falar o que é isso aqui, tenho certeza de que irão me tirar...
— Vou torcer por você. Mas não sonhe muito com isso. A cada visita minha, eu também penso que os meus velhos irão me tirar, mas não tiram...
- Mas o teu caso é outro, você é realmente viciado...
- Você tá sonhando. O m eu caso pra eles é o mesmo que o seu, somos os dois viciados! Caiu aqui dentro, o tratamento é generalizado. N inguém escuta você, você é um viciado e está enlouquecendo por falta das drogas. Isso é o que representa sua figura para eles e a sua família. Você está doente, ficando louco e... a louco, n inguém dá ouvidos! N ós não temos nem esse
direito. Se você se matar pra que o ouçam, irão dizer que você se matou porque estava louco...
- Olhe, cara, não dá pra ficar trocando idéia contigo. Você tá me deixando muito confuso. Vou mijar.
Qual é a desse cara, quer me deixar maluco? Esse cara só pode estar revoltado. Pudera, cinco meses não são cinco dias!
Estava tão irritado com o papo que, nem percebi, e estava no meio dos malditos. Em frente, um cara que não parava de bater ovos. Dois metros de altura, por um e meio de largura. Enca-
rava-me, tremi nas bases. Olhando para cima, com minha cabe ça um pouco acima da altura do seu umbigo, via-o mexer aquela mão, virando a cabeça e os olhos. Parecia um urso branco, pele branca. Com uma patada daquele animal eu ficaria sem a cabeça. Atrapalhado na porta do banheiro, olhei em volta. Os outros crônicos tam bém estavam parados e m e olhando. De imediato, fiz a volta para sair daquele meio... antes, porém, uma mão levou o cigarro que eu tinha entre os meus dedos. Não reclamei, dei graças a Deus, saí daquele canto.
Naquele canto, em poucos segundos, eu, o intruso, percebi que havia invadido um espaço só deles. Com o não fora convidado para aquele espaço, eu os ameaçava. Pareceu -me que naquele momento, no ostracismo em que viviam, todos romperam suas cascas em defesa de seus espaços. Espaço mínimo, mas só deles. Incrível o entendimento, o respeito que tinham um pelo outro, em seu espaço e fantasia. Brigavam entre si, pelas marcas visíveis de agressões: rosto, braços, pescoços arranhados e até mordidos. Formavam um grupo de psicopatas irrecuperáveis, loucos-loucos, no sentido da palavra, uma pequena comunidade, cada um aceitando as loucuras e fantasias individuais, sem impor-se uns sobre os outros. Havia um entendimento naquele grupo, coisa impossível de se imaginar, mas de alguma maneira eles se entendiam, protegiam-se e, o mais interessante, respeitavam-se. Algo para os paranormais explicarem. Até carinho, eles faziam, às vezes. Com o era possível, pessoas que não tinham mais nem o controle de suas funções orgânicas, que rasgavam dinheiro e comiam merda, serem unidos daquela maneira?
Fui pedir o auxílio do enfermeiro guardião do pátio. Ele me levou até os crônicos - os goiabas ou goiabões, como eram chamados.
— Tá calminho hoje, tá? E assim que eu gosto... - falou para o urso polar batedor de ovos.
- Tô bonzinho sim, tô sim. Quem é esse aí? - o urso polar falava revirando os olhos e as mãos que nunca paravam de mexer.
- E um amigo de vocês, ele vai ficar um tempo aqui com a gente. Eu estava receoso, todos os outros estavam me examinando.
— Mas que não se meta comigo. “Eu, me meter contigo, Zé Grandão? nem em sonho...”, pensava eu.
Ele não parava com aquela mão. Revirava os olhos e às vezes a cabeça. Sua voz de retardado era assustadora. Urinei naquele cubículo sem janela, o mais rápido possível. Ao sair do
banheiro o enfermeiro estava andando de cavalinho nas costas do Zé Grandão, o urso branco. Sua passividade era ilusória, ele era altamente agressivo, um psicopata perigoso. Para acalmá-lo
usavam a Tortulina, o Haloperidol. Mas fiquei sabendo mais :arde que no Zé Grandão costumavam aplicar o Triperidol, cujo efeito é maior que o Haloperidol.
Sentei em outro canto, os papos do Rogério estavam me cansando. Fiquei fumando com os olhos fechados, naquele sol de fim de inverno. Q u an d o o cigarro chegou à xepa, eu o joguei fora. Dois dos crônicos, que já estavam me observando há algum tempo, pularam na xepa. Em meio a mordidas e arranhões, um deles conseguiu apanhá-la e saiu fumando. Tirei a carteira e dei um cigarro ao que havia perdido a disputa. Seus dedos estavam m arrom -escuro de tanto fumar xepa. Vieram outros querendo também cigarros. Dei mais alguns e procurei outro lugar.
Deveriam ser umas três horas da tarde: chamada dos remédios. Recebi três comprimidos desta vez. Em seguida, vieram bules, dois; saco de pães, um. Canecas enfileiradas, de alumínio. Tudo veio em cima de uma mesinha com rodas. Os pães somem, a fila pela cevada com leite é rápida. Todos queriam comer. Alguns do canto tam bém vieram buscar o seu quinhão, não todos. O enfermeiro ia até eles entregando uma caneca e um pão para os indiferentes. Comiam devorando o pão na primeira bocada (não os do canto). Os pães que sobravam no saco eram esperados pelos gulosos impacientes. Comiam e comiam, parecendo uma porcada na engorda. Mais um ponto para você, Rogério.
Após o café-cevada, acendi o utro cigarro. D e imediato, alguns crônicos começaram a me observar. Quando terminei, joguei no chão — a cena anterior se repetiu. Eram três agora, numa disputa rápida e agressiva. A distância, ficavam à espera, como urubus, esperando a guimba. No chão, o mais esperto pegava. Ao conseguir colocá-la na boca, não era mais incomodado pelos outros competidores. A necessidade que esses crônicos esquecidos têm de cigarro é algo tam bém aterrador. Mordem-se, arranham-se por uma xepa... homens, numa disputa dessas! Seres humanos ou feras?
Em grunhidos lutam pelo grande prêmio: a guimba. Q u e os falsos moralistas e insensíveis engulam suas falsidades, mas a grande realidade é que seria um ato de caridade trazer cigarros para esses homens. Não trazer bolachinhas e doces. Eles necessitam de cigarros. Muitos podem achar absurdo. Mas vê-los agindo como cães agredindo-se por u m osso na certa mudaria seu parecer.
Esses tipos de instituições poderiam ter convênios com fábricas de cigarros e os refugos de cigarros dessas fábricas poderiam ir para esses esquecidos. Mas a falsa moralidade de uma sociedade também falsa nunca iria perm itir um convênio desse tipo. Preferem deixá-los como estão, escondidos, rasgando suas carnes por umas xepas de cigarros. Estaria mais de acordo com as regras da nossa moralidade: cigarro provoca câncer.
Esses tipos de instituições poderiam ter convênios com fábricas de cigarros e os refugos de cigarros dessas fábricas poderiam ir para esses esquecidos. Mas a falsa moralidade de uma sociedade também falsa nunca iria perm itir um convênio desse tipo. Preferem deixá-los como estão, escondidos, rasgando suas carnes por umas xepas de cigarros. Estaria mais de acordo com as regras da nossa moralidade: cigarro provoca câncer.
Fim de tarde... bom apenas para coçar, curtindo o peso do nosso m artírio de não fazer nada. A ociosidade era tediosa. Alguns jogavam baralho, g ru p o fechado, até o enfermeiro - maconheiro participou. Eram alcoólatras, grupo fechado, elite do hospício. Elite — pinguços conceituados, até um médico e um executivo da família Fontana, estavam ali conosco. Esse médico era clínico, um alcoólatra, gente finíssima. E o Fontana, como o chamávamos, também o era. Mais tarde tive o prazer de conhecê-los. O Fontana, seu nom e real de família, era um cara de uns trinta e seis anos mais ou menos. Tinha os cabelos pretos bem cortados e um pouco ondulados. Magro, alto, era um homem muito bonito, parecia um galã de cinema. Era também muito fino e viajado. As vezes eu o perturbava para que me contasse suas viagens ao exterior. Passava pouquíssimo tempo naquele pavilhão dos infelizes e era logo transferido para os apartamentos. Freguês já da casa, os enfermeiros puxavam o seu saco. Tinha grana ou a família dele tinha.
O médico clínico, não me recordo de seu nome, estava ali devido ao alcoolismo e a alguma mutreta ligada à sua profissão. Nunca ficamos sabendo ao certo. Novamente a chamada para os remédios. Deveriam ser quase seis da tarde. Recebi, dessa vez, cinco comprimidos e a cápsula vermelha. Eram treze a quinze comprimidos, só nesse dia.
Fui apanhar água, lá naquele canto. Rogério me seguiu. Os malditos e indiferentes não se importaram com minha presença relâmpago naquele canto.
- Austry, você já percebeu quantos comprimidos lhe deram hoje?
- J á passou de dez, eu acho.
- Eles vão impregná-lo de remédio. Mas comigo não, ó...
-cuspiu-os na palma da mão e os guardou no bolso.
-cuspiu-os na palma da mão e os guardou no bolso.
- Depois eu os jogo fora.
- Rogério! você joga os comprimidos fora? E por isso que
você não sara.
- Cara, essas porcarias não curam ninguém. Só servem pra deixá-lo impregnado, só isso!
- Impregnado, o que é isso?
- Impregnado, xará, é ficar como aqueles ali. O sujeito fica vinte e quatro horas por dia viajando, sem vontade própria, lento, não consegue nem ao menos desabotoar uma camisa sozinho. Tomei-os assim mesmo, não sei por quê.
- Cara, já vi que não adianta lhe dar toques. Você é novato, daqui a uns dias você vai ver as conseqüências dessas drogas.
- Cara, até agora você só me deixou cabreiro. Você já falou em choque, em enganação dos médicos, em sei lá o quê. Tudo que você falou, até agora, foi coisa ruim. Olhe, sinceramente, dá um tempo!
- Austry, eu só estou querendo te ajudar... te preparar para o que eles irão fazer contigo aqui dentro, e você poder se defender deles... E só isso!
- Eu agradeço, cara, mas você me deixa mais confuso.
- Este pavilhão onde estamos, nós internos e os enfermeiros o chamamos de San Quentin. O nome verdadeiro é de um doutorzinho, tem a plaquinha lá fora. Mas todos aqui o conhecem pelo apelido de San Quentin, o mesmo nom e de uma p risão fodida que tem ou tinha nos Estados Unidos.
- E o que isso tem a ver?
— Este pavilhão, o San Q uentin, é uma triagem. Todo m un
do que é internado no Sanatório Bom Recanto é obrigado p ri
meiro a passar por. este pavilhão. Aqui dentro, eles fazem a
desintoxicação, aplicam o famigerado eletrochoque... fazem o
diabo. Depois você é transferido para outros pavilhões. O cara
que puder pagar os apartamentos vai pra lá.
— Q u er dizer que este pavilhão, San Quentin, é a lavagem
da roupa suja?
— Mais ou menos isso. Este hospital funciona bem na desin
toxicação dos alcoólatras. Fazem uma lavagem no sujeito, soro e
sei lá o quê. Funciona. Mas em tratamento de viciados em dro
gas é um crime o que eles fazem com a gente, e...
— Calma Rogério, eu não tô mais a fim desse papo.
Não dava para continuar esse papo cavernoso com o R o
gério. A porta se abriu, todos entraram, alguns se atropelando.
Nas mesas grandes os pratos de alumínio amassados, talvez pela
pancadaria que, com certeza, pintava. Tudo se repetia: o que
virá na hora do almoço?
Jantei, não comi até o fim. O televisor, que ficava numa
prateleira na parede, na nossa sala, após o jantar era ligado. Não
me interessei, fui para o quarto. Em to rn o das vinte e uma
horas, outra chamada para os com prim idos. Desta vez, três
comprimidos. E todo m u n d o para a caminha. O quarto foi
trancado pelo enfermeiro n oturno. Antes, avisou-me que se
quisesse ir ao banheiro era só bater na porta. Comecei a repas
sar tudo, o papo do Rogério, os que ficavam naquele canto, tan
tos comprimidos, minha família... meus estudos, minha turma.
Virava de um lado para o outro, mais que charuto na boca de
bêbado. Co m custo consegui dormir.
Pela manhã, quartos abertos, fomos acordados aos gritos.
— O, o café, pessoal! Todos tomar café. Vamos, vamos logo,
todo mundo de pé - o enfermeiro n o tu rn o fazia uma zorra,
depois sumia.
Levantei a fim de tomar um banho. N o chuveiro, já para
entrar, um outro paciente da nossa sala de jantar disse:
- Vai tomar banho? Vai perder o café.
- Não tô a fim de perder o café. Estou com uma fome! — Só
lavei o rosto e os dentes.
- H oje tem visitas! - era o comentário.
Quinta-feira, dia de visitas. Será que meu pai vem? Mesmo
se vier, será difícil me deixarem vê-lo.
Q uinta-feira: visitas, não para todos, apenas para alguns.
N inguém para ver os esquecidos. Esses esquecidos e malditos
continuavam encostados pelo INPS, não p o r caridade espírita.
Infelizes, foram usados e mexidos. Agora, vegetam como plan
tas secas esperando a hora de caírem de seus caules. De carida
de, só recebem um ou outro cigarro de algum interno novato.
O u alguém que lhes dá um par de meias furadas. Essa é a cari
dade que recebem, mas que trocariam sem pestanejar: o trapo
pelo cigarro. Mantidos em alas proibidas aos olhos de visitantes,
constituem-se em verdadeira vergonha para uma sociedade de
“normais” . N u m martírio lento, eles esperam que as drogas os
matem, explorados pela instituição que agora recebe os elogios
da sociedade, p o r mantê-los sem condições mínimas de higiene
e valorização humana. Já serviram às experiências para o uso de
novas drogas, novas teses, novos tipos de tratamento. Fizeram
sua parte como cobaias. Agora são lixos humanos. Empilhados
como inúteis, esperam lentamente que os efeitos de anos de
medicamentos os matem. Q u e caridade é essa? Mais caridoso
seria eliminá-los de uma vez, limpando assim a vergonha de
uma sociedade hipócrita. Sociedade esta constituída por cida
dãos que sabem o que ocorre dentro dessas instituições e, por
comodismo e desumanidade, se fazem de desentendidos do
assunto, leigos... e isso é problema para os especialistas da área.
E mais cômodo fazer vista grossa.
P o r um a bandeira vil, que essa sociedade de hipócritas
insensíveis denominou de “caridade”, eles são mantidos vege-
tando e apodrecendo com suas fezes. A essa sociedade de falsos
caridosos eu dou de graça uma sugestão: colocar todos esses
inúteis dentro de um barracão de madeira podre e inútil tam
bém; e, com duas pedras, raspando uma na outra, até conseguir
a chama, atear fogo ao barracão. Os que conseguirem sair vivos
do barracão, sugiro matá-los a pedradas! É mais caridoso que
deixá-los em cantos malditos, apodrecendo com suas fezes.
Ao sair do banheiro resolvi fazer uma peregrinação ao fun
do escuro daquele pavilhão. Ao entrar naquele corredor, que
iniciava logo após as mesas grandes, não consegui chegar nem à
metade. O cheiro de fezes era insuportável. Consegui ver o
interior de um dos quartos. Uma estopa amarela, já aparentan
do algo podre, de uma cor amarronzada. U m cobertor velho,
como os que distribuem nas cadeias, devia estar duro de sujeira.
As paredes daquilo que eu estava vendo, n em quarto e nem
cova, tinham marcas de mãos e dedos escorridos. Eram fezes,
merda podre. R ealm en te não conseguiria ir até o fundo do
pavilhão. O cheiro era insuportável e a ânsia de vom itar se
manifestou. Voltei ao banheiro, lavei o rosto e, olhando-me no
espelho, consegui chorar um pouco.
H oje é quinta-feira, o hospício está mais alegre. Dia de visi
tas. Após o café, fila no banheiro. Muitos riem esperançosos.
Tomam banho e colocam a roupa de domingo. Alguns enfer
meiros estão dando banho naquele crônico incapacitado que
passa os dias lá dentro, urinado e cagado. Mas hoje ele tem visi
ta, é dia de banho. Até o cabelinho do goiaba, o enfermeiro faz
questão de ajeitar com a ponta do pente sujo, de dividi-lo bem
ao meio, bem certinho. H oje ele tem visita. Tudo bonitinho... a
preparação começa logo após o café da manhã, antes das sete. O
grande espetáculo está marcado para as três horas da tarde, mas
são muitos preparando-se. A direção do espetáculo exige que
seja do agrado de todos os ilustres visitantes: os familiares. Estava
bem m elhor que o ntem . U m agito. Se aquela ociosidade se
repetisse hoje, não daria para agüentar.
- Mas que agito, hein, Rogério!
— Visitas, é bom ver a família.
- Eles entram aqui no pavilhão?
- Aqui dentro é expressamente proibida a entrada dos fami
liares e pessoas estranhas.
— N ão querem mostrar como vivemos. Escondem a realida
de do terror que é isso.
- Você já está começando a entender este lugar.
- Também, ontem você não me deu folga. Não consegui
dormir.
— N em com o sonífero que lhe deram?
— Não, eu dormi. Mas tudo o que vi... não foi fácil.
- E gostou?
— E o lugar ideal pra curtir uma férias — rimos —, onde esse
pessoal recebe as visitas?
— N o pátio, lá fora.
— Lá fora não tem muro, é só dar no pinote.
— Já fiz isso, meus velhos mandaram um camburão me tra
zer de volta. Foi pior.
- Cara, será que se meu pai vier, eles me deixam falar com
ele?
— Tire o cavalo da chuva! Seu pai, só daqui a quinze dias.
Ele sabe disso, duvido que ele venha.
- Treze dias, então. Se eu tivesse uma chance de falar com
meu pai, não ficaria mais u m dia aqui.
- Não adiantaria nada.
- Tá legal, Dr. Sabe-tudo. Não vai tomar banhinho tam
bém e pentear o cabelinho, pra entrar em cena?
— Mais tarde um dos melhores figurantes irá se produzir.
Tudo realmente era uma grande produção. O espetáculo
parecia uma estréia de teatro. Os mínimos detalhes eram lem
brados. O grande cenário era lá fora. O interior do pavilhão era
proibido à visita de estranhos, poderiam prejudicar o andamen
to do valioso tratamento!
A grande peça acontecia ao ar livre, no imenso jardim flori
do do Sanatório Bom Recanto. Até o nom e é bonito: Bom
Recanto — soa a paz! O jardim arborizado, os pássaros cantando
freneticamente, paz e sossego no ar... Banquinhos de madeira,
todos pintadinhos de branco, um recanto de namorados dos
tempos da vovó, só faltando a bandinha tocando e o lago com
os cisnes nadando. U m a paz celestial, às vezes quebrada por
algum grito de um crônico dentro do pavilhão que quase ins
tantaneamente é sufocado pela mão do enfermeiro em sua gar
ganta. O espetáculo acontecia para o agrado de todos, ou
melhor, dos ilustres visitantes, que a direção do sanatório fazia
questão de impressionar. Ao in tern o , não sobravam muitas
chances de ser ouvido. U m lugar de tanta beleza e tranqüilida
de impressionava tanto que a família toda queria ficar internada.
Eram sensibilizados com a dedicação, calma e gentileza dos
enfermeiros que trocavam o autoritarismo e os gritos por falas
mansas, na frente das visitas. Alguns eram até bonificados com
dinheiro e presentes dos familiares. Discretamente, aceitavam
essas bonificações.
A chance de nós, internos, sermos ouvidos era inexistente
perante tamanha superprodução, digna de H ollyw ood. N ão
teríamos a mínima credibilidade, mesmo que rasgássemos o cor
po para provar que o que ocorria lá dentro era o inverso do
mostrado aqui fora.
O hospício parecia em festa. Era quinta-feira, dia de visitas.
O alm oço tam bém era especial, com m aionese, frango ao
molho, macarrão, arroz, feijão e outros bichos. Comi como há
muito tempo não comia, estava com um b o m apetite. O pátio
ficou aberto na hora das visitas. Nós, que não tínhamos visitan
tes, ficamos lá.
Estavam todos os que tinham visitas bem limpinhos. Alguns
até tomaram um segundo banho de perfume. Esperavam ansio
sos chegar a hora. Até o médico clínico estava rindo, na espe
rança de que seus problemas lá fora tivessem tomado o rumo
que ele esperava. Com o ele, outros estavam com seus anseios
renovados, esperançosos até de irem embora. Eram esperanças
ousadas e eles estavam alegres com elas, a ponto de distribuírem
cigarros aos esquecidos, mesmo sem eles terem pedido.
Pouco antes das três horas, todos aguardavam ansiosos que o
enfermeiro, que fechou a porta de acesso ao interior do pavi
lhão, colocasse a cabeça e os chamasse.
Os crônicos pareciam saber que todo o hospício estava em
alto astral e aproveitavam as gentilezas dos esperançosos. C o
meçaram as chamadas, saíam do pátio com sorrisos até as ore
lhas. Até eu fiquei com uma certa esperança que meu pai tives
se vindo e que eles me deixariam vê-lo. Era remota, mas não
impossível.
Durante os minutos preciosos de espera ficavam impacien
tes. Fumavam mais que o normal. Ao ouvir o seu nom e chama
do, a angústia dava lugar a um largo sorriso. Saíam do pátio e
levavam seus desejos ardentes, o objetivo maior: ir para casa. Sa
biam que teriam de representar também. Não podiam demons
trar toda a sua ansiedade em sair daquele lugar. Precisavam se
controlar e mostrar aos seus que estavam calmos, conscientes e
receptivos. Controlar-se ao máximo para mostrar que não era
mais necessário ficar ali dentro. N ão podiam e nem deviam
explodir se os familiares fossem contra a sua saída. Se o fizessem,
as esperanças iriam se perder. Tinham que representar também,
dentro daquela peça que envolvia muitos personagens, sendo o
deles o papel mais difícil.
Os parentes do Rogério também vieram. Iria pedir para o
tirarem dali ou, pelo menos, transferi-lo de pavilhão. Pois nos
outros pavilhões se tinha a liberdade de pelo menos andar pelo
jardim do Sanatório, à hora que se quisesse. E nós, ali do pavilhão
San Quentin, éramos controlados em nossas horas de pátio. U m
pátio de delegacia, pequeno. Rogério saiu também, esperançoso.
Ficamos nós: eu, os esquecidos e um ou outro que se preparou e
a visita não veio. O horário de visitas terminava às dezessete
horas. Aquela tarde foi diferente da anterior. Desejava que o
Rogério conseguisse o seu objetivo. Meu velho não veio mesmo.
As visitas terminaram. Os internos vieram derrubando fru
tas, doces, cigarros, biscoitos e balas. Derrubavam esperanças.
Risos antecipados tornaram-se olhares frustrados. Já não riam.
Angústias nas mãos, jogam -nas no quarto, esparramam pelo
chão. De que adiantam aquelas guloseimas?
Os visitantes se foram, convencidos pelo belo espetáculo
hollywoodiano. Os que tinham ensaiado a manhã toda para
falar, falaram alguns. Os ouvidos, ouviram? Pouco provável que
ouvissem o que realm ente era fundam ental para o in tern o .
Tudo foi encarado por seus familiares como meras reclamações,
por estarem ali presos. As reclamações pelos maus-tratos, pelo
isolamento, pelos choques, pelos remédios, pelos crônicos caga
dos ao seu redor. Q u an d o iriam tirá-los dali? Tudo que era
reclamado deixava de ter importância. O que realmente impor
tava era que o tratamento estava sendo feito.
Tratamento diagnosticado p o r uma bola de cristal ou por
adivinhação. Seria melhor levar-nos a tratamento com pai-de-
santo.
A empolgação, que começou pela manhã, deu lugar a um ar
fúnebre. Talvez por isso os psiquiatras digam que as visitas atra
palham o andamento do tratamento.
Q u e tratamento? Engolir comprimidos e ficar preso, isola
do, isso é tratamento?
O silêncio era quebrado apenas pelos crônicos indiferentes.
Estes se lambuzam com doces, chocolates e outras baboseiras.
U m grupo de crônicos circunda aquele outro que recebeu visi
ta e tem cigarros. Ficam numa roda, fumando um cigarro após
o outro, até fumarem to d o o maço - depois dispersam. Os
outros internos analisam em suas camas, cabisbaixos, onde erra
ram ao falar com seus familiares. A outros, a esperança parece
que irá se concretizar. Logo estarão fora dali.
A chamada para os remédios da hora do jantar. Muitos não
comeram o de costume, estavam empapuçados pelo que lhes
trouxeram os familiares. Televisão até as nove da noite, outra
chamada para os remédios. Tomei a mesma dosagem de com
primidos do dia anterior. Todos no quarto, o n o tu rn o tranca as
portas.
— Boa-noite, Austry.
— Boa-noite.
Escuto o barulho da chave na fechadura, tudo escurece, apenas a claridade da abertura da porta. Pensativo, adormeço.
Nota nossa: aqui interrompemos a transcrição do texto de autoria de Austregésilo Carrano Bueno, publicado em livro com o título CANTO DOS MALDITOS
U m a história verídica que inspirou o filme Bicho de sete cabeças. J a m a i s SONHARIA a o n d e o s caminhos da m inha
adolescência me levariam. Algo que supus acontecer apenas em
filmes americanos de terror aconteceu. Em meados de outubro
de 1974, chegando em casa, fui convidado por meu pai a acom-
panhá-lo em visita a u m amigo seu, hospitalizado. Estranhei
aquele convite, pois não tínhamos o hábito de sair juntos, mas fui.
Chegando ao hospital, antes mesmo de entrarmos nas insta
lações de imediato dois enfermeiros vieram ao nosso encontro.
Com sorrisos, postaram-se um de cada lado. Desconfiei daque
la posição. Pegaram em meus braços.
— Ei! pera aí... o que está acontecendo? - perguntei assusta
do e olhando para meu pai.
— Calma, filho, é para o seu bem! - respondeu meu pai.
— Seu pai o trouxe aqui pra você fazer uns exames, apenas
isso... — falou um enfermeiro negro.
— Mas que exame, pai? eu não estou doente... — perguntei,
forçando para soltarem os meus braços.
— Calma, filho! é para o seu bem...
— Q u e calma? eles estão me puxando... qual é, velho?
— Nós sabemos que você não está doente. Ele só quer que vo
cê faça uns exames e mais nada... — disse, tentando me acalmar, o
enfermeiro negro. Puxaram-me para dentro de um pavilhão.
— Ei!... espere aí, meu pai não vai entrar? — falei e vi a por
ta atrás de mim fechar-se.
— Venha comigo! — disse o negro. Largaram os meus braços.
Cam inham os p o r um corredor. D o lado direito ficavam
quartos, do lado esquerdo, uma sala não m u ito grande com
mesas e cadeiras. Entramos num quarto logo ao lado da sala. Era
um quarto que usavam como enfermaria. Sentaram-me numa
cama alta. Havia um pequeno armário com vidro e um suporte
para braço. O enferm eiro n egro sentou-se ao m eu lado na
cama, o outro sentou-se a uma mesinha de enfermagem.
— Com o é o seu nome? — perguntou o enfermeiro negro.
— Austry.
- Bem, Austry, o que na realidade está acontecendo é o
seguinte... — Fez uma pausa. — Seu pai en co n tro u m aconha
numa jaqueta sua. Ele acha que você é viciado e trouxe-o aqui
para fazer tratamento.
- Não acredito. Meu velho pensa que sou viciado? Ele nem
conversou comigo e já me trouxe pra cá?!...
- E o fumo, você fuma maconha? - o negro.
— D o u meus peguinhas, mas isso não significa que seja
viciado.
- Bom, só sei que seu pai o internou e a gente vai tratar de
você.
- Tratar de mim? Isso é uma piada. Eu não sou um viciado,
podem fazer o exame que quiserem. Não sou dependente de
droga nenhuma. Vamos, façam os exames! Podem fazer qual
quer tipo de exame, vocês verão que não tenho dependência
nenhuma... Isso é, se vocês forem capazes de entender o que é
ser u m viciado! Cara! tô afirm ando pra vocês: eu não sou
nenhum dependente! Então, que tratamento vocês vão fazer?
- Todos os viciados que passam por aqui começaram com a
maconha e as bolas. E agora estão nos picos.
— Problema deles. Pico não é o m eu caso e nunca será.
Podem olhar meus canos, não tenho uma marca. Se eu tomasse
pico, tá certo, vocês podiam me classificar como viciado, de
pendente, caso eu não passasse sem uma picada. Mas maconha...
a maconha faz menos mal que o cigarro comum.
- É o que você diz. Os estudos médicos dizem outra coisa.
Agora vou lhe aplicar uma injeção e você vai dorm ir um pou
co. N ão precisa ficar com medo! M eu nome é Marcelo — disse
o enfermeiro negro.
Q u e medo! eu não acreditava, era um pesadelo... Só podia
ser u m pesadelo — eu, in tern ad o para fazer tratam en to p o r
fumar m aconha... Se eu tomasse pico, cocaína, tá certo. Mas eu
não tomava, mal tinha cheirado uma ou duas vezes. Só porque
fumava maconha?... As vezes eu passava semanas sem colocar
um fininho na boca. Q ual é? Maconha não vicia ninguém, e,
quem disser o contrário, eu desafio a provar que maconha vicia.
Preparada a injeção... uma cavala! Braço no suporte, palma-
dinhas para despertar a veia, e a picada.
- Cara, não tem nada a ver esse internamento... Eu não...
vou... fi... — E não vi mais nada. Acordei no dia seguinte, tenta
va raciocinar... tonto pelo efeito da injeção! Estava num quarto
cinza-claro. U m pijama azul de bolinhas. Não era meu. Levan
tei, fui até a porta. Ao abri-la, dei de cara com um pessoal sen
tado às mesas, tom ando café. Todos me olharam, uma nova
atração. Queria ir ao banheiro, meu pênis estava duro, fato que
chamou mais a atenção de todos. Encabulado, tentei esconder o
meu estado. Perguntei onde era o banheiro, um cara com ar de
gozação informou.
O pavilhão era grande como um barracão. Lá estava a sala
com as mesas, em frente ao quarto em que eu dormira. Cami
nhando em direção ao fundo do pavilhão, havia um corredor
com quartos dos dois lados e mais uma sala grande com mesas
compridas, como as de festas de igreja. Passando essa segunda
grande sala, havia um corredor com mais quartos de cada lado.
As portas dos quartos tinham uma pequena abertura em hori
zontal, que permitia ver o interior. O banheiro era do tamanho
dos qu arto s, co m vaso e chuveiro, uma pia de rosto e u m
pequeno espelho na parede.
Tomei café, sem importar-me com os outros que ali esta-
vam. Estava querendo entender a fria em que me encontrava.
Matutava com meus botões. Sentia os olhares, querendo inter
rogar. Fui o último a levantar da mesa. Os outros tinham ido
para o fundo do pavilhão. Após aquele café com cevada e pão,
fui levado a outra sala, a das mesas grandes. O enfermeiro abriu
uma porta e m andou-m e sair.
Saí para um pátio de uns 20 por 20 metros, cercado p o r um
muro de uns 5 metros de altura. Vi outros internos, que não es-
tavam às mesas, em frente ao meu quarto. Mais pareciam m en
digos maltrapilhos. Ficavam isolados dos outros num canto p ró
ximo aos banheiros do pátio. Nesse canto havia um telhadinho,
parecendo uma churrasqueira de parque. Aquele grupo estra
n ho ali ficava. N o meio do pátio havia um pouco de grama,
onde alguns deitavam-se. Encostei num canto do muro branco,
observando aquele cenário de filme de terror.
O que mais me chamava a atenção era aquele grupo, no
canto coberto... tinha um sujeito enorme, forte, meio gordo ou
inchado, com um corte de cabelo estilo militar. N ão parava de
balançar a mão direita e virava a cabeça de um lado para outro.
Era uma figura assustadora. O utro sujeito corria de um canto
para outro, soltando um tipo de grunhido. Havia alguns com as
calças molhadas e sujas, devia ser urina e fezes. U m outro escor
regava andando com o corpo e o rosto encostados na parede,
parecendo querer entrar, fazer parte daquela parede, esconder-se
de todo, misturar-se com o concreto.
Era uma visão triste: aquelas pessoas reduzidas àquilo. Eram
pessoas sim, seres humanos, mas pareciam feras torturadas, ago
niadas, com alguma coisa mordendo seus corpos e rasgando-
lhes também a alma.
Os que haviam tomado café comigo pareciam normais e
não estavam em farrapos, como aqueles lá do canto. Havia o u -
Iros malvestidos ou sujos, esparramados na pouca grama. Mas os
daquele canto eram diferentes, pareciam a degradação de uma
raça sobrevivente de uma guerra nuclear. O desespero em seus
olhares, o medo em seus atos... a individualidade em suas fanta
sias, apenas quebradas p o r algum ato de violência de um para
com o outro.
Aquele canto era q u alq u er coisa diabólica. C o m o se o
demônio tivesse o comando de suas mentes, nelas derramando
sua ira e divertindo-se em atormentá-los. Aquilo era satânico:
pessoas urinadas, defecadas, revirando os olhos, cabeças, que
rendo entrar dentro do concreto. Todo aquele to rm en to só
podia ser comparado ao inferno. Se ele realmente existe, sem
dúvida eu estava vendo um pedacinho dele, ali naquele canto, o
canto dos malditos...
O conceito geral daquele pátio é uma grande jaula, onde as
feras ficavam, umas deitadas, outras sentadas em diversos lugares,
os olhares perdidos horas e horas, olhando não se sabia para on
de. Todos mantidos escondidos, como animais contaminados e
que deviam ser trancados em algum lugar. E o lugar era aquele
pátio. Não sabia o que fazer... tudo ao meu redor, não! não esta
va acontecendo, era um pesadelo, meu Deus! Aquelas pessoas
não eram reais... eu tinha que acordar!... A angústia começou a
tomar conta de mim... eu não estava ali, eu não queria ficar
ali!... meu Deus, que lugar era este?!
— Ei! você é o enfermeiro?
— Sou - respondeu, com um livro na mão, roupas comuns e
sentado numa cadeira, perto da porta que dava acesso ao inte
rior do pavilhão.
— Olha, eu não estou entendendo nada. O n tem eu falei
com u m outro enfermeiro, não falei com médico nenhum, não
sei o que estou fazendo aqui dentro. Quero ir embora! — gritei
desesperado.
— Você vai falar com o médico. Daqui a pouco ele vai che
gar, fale com ele — disse sem dar a mínima.
Agoniado, fiquei rodando pelo pátio. Não ousava chegar per
to daquele canto. Remoía-me: quando ele chegar, eu explico —
não sou viciado, não tenho necessidade de drogas. O senhor pode
fazer os exames que quiser! Foi um equívoco de meu pai. Eu não
preciso ficar aqui dentro, rodeado por pessoas horríveis.
Q uando o médico chegou, m eu coração disparou. D ep en
dia dele continuar naquele lugar pavoroso... dependia exclusiva
mente de mim mostrar a ele que eu era uma pessoa normal. Ao
entrar no pátio foi imediatamente cercado pelos internos que
haviam tomado café em frente ao quarto onde eu dormira. Os
do canto nem tomaram conhecimento do ilustre personagem.
Aproximei-me. O enfermeiro do pátio falou alguma coisa ao
seu ouvido e ele me olhou. Estendi-lhe a mão em cum prim en
to. Tocou apenas nas pontas dos meus dedos como se eu fosse
contaminá-lo. Disse-lhe que queria falar-lhe. Abanou a cabeça
positivamente, entreteve-se em seguida com o g ru p o ao seu
redor e, rapidamente, saiu do pátio.
— Enfermeiro, eu quero falar com o médico.
— Se precisar, ele chama!
— Com o assim? Eu quero falar com ele. Não é se ele preci
sar! Eu quero falar com ele. Ele não pode simplesmente me dei
xar preso aqui dentro. Eu exijo falar com ele.
— Aqui dentro, você não exige nada! E se precisar, ele man
da buscá-lo - respondeu, já.
— Então, eu quero falar com meu pai!
— A sua família você só verá daqui a quinze dias.
— Q uê, quinze dias? Eu não vou ficar aqui dentro todo esse
tempo, não, de jeito nenhum.
— Olha, coloca na sua cabeça que você está internado, esse
é o fato. Você está em tratamento.
— Tratamento de quê? Vocês simplesmente me prenderam
aqui dentro. N inguém veio me examinar pra ver se sou ou não
um viciado. O médico chega aqui, dá uma olhada geral em
todo mundo e sai. Qual é, que lance é esse?!
- Cara, eu não tenho que lhe dar explicação nenhuma. E é
melhor você ficar calmo para o seu próprio bem — continuou
nervoso com minha insistência.
N ão adiantava. O cara era radical. Perguntei a ele se pode
ria falar com o médico de tarde. Só amanhã ele estará de volta!,
respondeu seco. Q ue merda ficar aqui, eu não quero. Os pensa
mentos começavam a se atropelar em minha mente. Não con
seguia coordená-los: ontem , meus estudos, vestibular, minhas
aulas... é um pesadelo, m eu Deus, isto não está acontecendo,
não pode ser real... Estou preso ao canto dos loucos cagados,
que merda! tenho dezessete anos e estou num hospício. Não é
real, meu Deus! Pai... por que você fez isso comigo? Achar ma
conha... não sou viciado! não prova nada, ignorância sua, pai.
Eu, dentro de um lugar desses... e meus estudos? Se tivéssemos
conversado, pai, eu lhe provaria que não sou viciado... não sou,
pai! N ão precisava me trazer para cá. Por que não conversamos,
pai? Por que não conversamos, porra?! O médico nem sequer
me olhou direito, vão me tratar do quê? Eu não quero ficar
aqui. Eu vou fugir. O muro é alto demais, somos mais de vinte,
seria fácil dominar aquele bundão, mais uns três e seria... Aquele
c:>ra com um gibi parece normal, talvez ele tope...
- E aí, tudo bem? — perguntei imaginando qual seria sua
reação, pois todos que estão internados eram loucos!
- Tudo bem, senta aí! — falou com o gibi levantado para
tapar o sol.
- Tá aqui há muito tempo?
- Dessa vez, faz cinco meses.
- Cinco meses, aqui dentro? Com o é que você agüenta? -
Isso me pareceu uma eternidade.
- Só penso em ir embora desse inferno! Já não dá mais pra
.igüentar esses internamentos.
- Quantas vezes você já foi internado?
- Já perdi até as contas — abaixando a cabeça.
- M eu nome é Austry, e o seu?
— Rogério.
— Você tá sacudo de ficar aqui dentro, eu tô só há um dia e
pouco e já não agüento. Só tem um vigia aqui no pátio, com
mais uns dois a gente podia dominar o cara e pinotear daqui, em
dois toques...
— Nós só chegaríamos à parte interna do pavilhão!
— Por quê?
— Ele só tem a chave daquela porta. As outras chaves ficam
com os outros enfermeiros. Isso aqui ficaria em pouco tempo
cheio desses gorilas... é bobeira!
— Bobeira é ficar aqui dentro! Eu não estou agüentando...
— Cara, se acalme!... senão você vai pra Tortulina.
— Tortulina, o que que é isso?
— E uma injeção de Haloperidol que lhe aplicam no mús
culo. Você fica igual àquele cara grandão, lá no canto: babando
e revirando a cabeça. A porra dessa injeção repuxa todos os ner
vos. E como íngua dando em vários nervos ao mesmo tempo,
cara... O efeito dessa injeção retorce todo o corpo. Dói pra dia
bo essa droga do capeta! Eles aplicam nos pacientes que estão
exaltados, é uma forma de controlá-los, pois ficam completa
mente sem ação física. Por isso, se acalme de vez... senão, te le
vam pra enfermaria e te aplicam a droga.
— Então!... p o r isso o enfermeiro falou daquele jeito...
— Esses caras aqui dentro não querem ser incom odados.
Q u em os incomoda, logo eles dão um jeito do cara entrar numa
por bem ou por drogas.
— D eu pra perceber, não tem m eio-termo...
— Tem o que eles querem. Você chegou ontem, nunca este
ve internado antes?
— N unca e até agora não aceitei que estou aqui.
— Cara, isto aqui é pior que uma prisão de verdade. E, em
muitos sentidos, tão ou mais perigoso. Essas drogas que somos
obrigados a tom ar são u m veneno que nos mata em poucos
anos.
— Até agora só tomei uma injeção do tamanho de uma cava
la e dormi até hoje.
— Você tomou a “três p o r u m ”, como nós chamamos. Por
que te internaram?
— Meu velho pensa que sou viciado.
— E você é?
— Pelo que entendo, viciado é aquele que, quando o orga
nismo está sem droga, parece sentir uma sede danada. Isso é ser
viciado. O meu caso era apenas uns peguinhas na maconha e
umas bolas, mas não tenho dependência nenhuma. Podem fazer
os exames que quiserem.
— Cara, teu velho é um mal informado. Se ele queria evitar
que você tomasse realmente drogas, ele te trouxe ao lugar mais
errado do mundo, pois aqui dentro nós somos drogados diaria
mente. A sedação aqui é feita em massa. Tomamos mais de vin
te comprimidos diários.
— Até agora não tomei nenhum comprimido.
— Mas não fique impaciente, aqui você come comprimidos.
Nós acordamos tom ando essas drogas e dorm im os tom ando
essas drogas.
— Esse médico... quem é?
— Esse médico é u m verdadeiro psicopata. Chama-se Dr.
Alaor Guimont, catedrático em Psiquiatria, professor em uni
versidades, um dos diretores deste “lab o ra tó rio ” chamado
Sanatório Bom Recanto. Tem setenta e dois anos e se você cair
na mão dele, xará, ele com certeza irá te queimar todos os chi
fres... E o maior sádico que tive o desprazer de conhecer.
— Cara, você é fã dessa figura... O que é queimar os chifres?
— Eletrochoque. Choque, meu irmão!
- J á ouvi falar nesse troço, mas isso é pra louco...
— E o que você acha que somos? Esse filho de uma cadela
pesteada vive com a maquininha de eletrochoque na mão. Acho
que ele até dorme com ela.
— Mas eu não sou louco.
- Tá aqui dentro! Pra todo mundo lá fora você não passa de
um louco... Isto aqui é um hospício, cara! E começa com esses
interesseiros que dizem tratar da gente.
- Por que você diz isso? E você tá aqui por quê?
- Cara, estou aqui porque sou dependente. Tomo e vou
continuar tom ando cocaína. Esses caras aqui não curam nem
bêbado. N unca viram nem uma quina de maconha, não enten
dem nada sobre vício, tan to é que você está aqui d en tro ...
Agora, no meu caso, tá certo. Eu preciso de um verdadeiro tra
tamento, não o que eles fazem aqui dentro. Enchem -m e de bar-
bitúricos e queimam os meus chifres com eletrochoque. Cara,
que tratamento é esse?
- Eletrochoque em viciado?
- Por isso eu tenho certeza, se o Dr. Alaor pegar a tua ficha,
você vai entrar nessa na certa.
- Como, se ele nem falou comigo ainda?
- O que você está esperando? Q u e ele vá conversar conti
go? Você realmente tá louco!
- Não tô entendendo... como assim?
- Cara, você tem visto muita televisão. Essa de divã pra você
deitar e falar, só em filmes ou em clínica particular, que são uma
verdadeira suíte de hotel cinco estrelas. Aqui você não passa de
uma ficha, e sua entrevista, a consulta com o psiquiatra, você já
fez. Foi quando ele visitou o pátio. Aquela foi a sua consulta. O
tratamento vem através da tua ficha.
- Mas que tratamento é esse?
- E o que o teu dinheiro pode comprar. Se você tivesse gra
na, você estaria numa clínica particular.
- Mas como um médico psiquiatra pode medicar sem, ao
menos, conversar com o paciente?
- Caiu aqui dentro, você não é mais dono de si. Fazem o
que quiserem contigo, tua ficha já tá cheia de informações que
teu pai preencheu. Está como viciado. Só vão examinar o teu
coração e derreter os teus chifres. E foda!
— Aí, cara, vou rodar um pouco.
Ro g ério não estava sendo nada agradável com esse papo.
Ao contrário, estava me deixando cabreiro. Ele já podia ser con
siderado um freguês de hospício. Saía e voltava. Mas era uma
fonte de informações. Verídicas? O tempo diria...
— Cara, e os exames? Eles não vão fazer pra saber se sou
dependente?
— Exame! pra ver se você é dependente de maconha? Isso é
papo furado. Não existe tal exame. E o cara que disser que é
viciado em maconha, eu mando ele ir caçar marido, e dar até o
zóio cego ficar rosinha. Maconha não vicia ninguém, xará. A
única coisa que ela faz é deixar você fissurado pra querer entrar
na onda que ela causa. Agora, se não pintar, tu toma uns conha
ques e faz a cabeça do mesmo jeito . E diferente de quem é
viciado em coca, não tem outra coisa que te faça a cabeça. Tem
que ser somente o pó-de-anjo. Só ele acaba com a violenta fis
sura. E muito diferente. E as porras desses caretas não enxergam
essa tremenda diferença. Pra eles tudo é viciado.
— Com o é que você tem tanta certeza? ■
— Cara, teve época em que eu tinha pacotera de maconha.
Fumava direto. U m baseado a cada meia hora. Cheguei a empa-
puçar de tanto fumar essa droga. Fiquei com uma aversão ao
cheiro da maconha, que hoje me faz vomitar. Não suporto nem
mais o cheiro da maldita.
— Então a maconha não te fazia mais a cabeça, e você partiu
pra drogas mais fortes, foi isso?
— Cara, ninguém toma cocaína porque a maconha deixou
ou não deixou de fazer a cabeça. Esse é o utro papo furado,
outro tabu da ignorância das pessoas que não entendem nada
sobre maconha ou cocaína. Esse papo de que se começa com a
maconha e depois tem que se recorrer a drogas mais fortes é
pura fantasia. O lance de querer uma droga mais forte é uma
questão de cabeça e conhecimento do assunto...
— Então, por que você começou com o pico?
- Comecei com dezesseis anos a tomar pico. Não porque
alguém me obrigasse ou tenha viciado. E sim porque essa é a
fase mais carente, p o r insegurança, p o r fuga, p o r angústia da
adolescência. E também por ingenuidade e falta de real conhe
cimento do que é a coca e dos seus efeitos. Esses são os verda
deiros motivos que nos levam ao vício. Tudo o mais é papo
furado.
- Você falou ingenuidade. Eu comecei a fumar com quinze
anos, tive oportunidade de tomar pico e não tomei!
- Cara, eu tô com vinte e dois anos. H á seis anos as coisas
eram diferentes. Hoje, 1974, ainda não existe em todo o Brasil
um hospital especializado em tratamento de viciado. E se você
quer saber, vão mais trinta anos. A ignorância sobre as drogas
irá continuar, porque este país é atrasado e manipulado. O go
verno é o maior cúmplice do vício. D e repente, o pessoal do
governo não quer que o vício acabe. Não existe a liberdade de
se falar abertamente sobre as drogas.
- Mas o combate às drogas é violento. Trafica pega uma
cana federal.
- Cara, você não está entendendo o que eu estou dizendo!
Q uanto mais mistérios fizerem sobre as drogas mais o baseado se
torna uma coisa misteriosa e sedutora. E o pico de cocaína, o
êxtase dos êxtases. E as grandes manchetes sobre apreensão de
drogas mais admiradores atraem, e mais trafica na área criam.
- Então, como e o que fazer?
- Conscientizar os jovens. E aquele lance. Vou falar sobre
cocaína, que é o que realmente vicia. Q u em tá dentro quer sair
e quem tá fora, p o r curiosidade e falta de conhecimento dos
efeitos da cocaína, quer entrar. Por acaso você sabia que a maio
ria dos bolivianos que transam com cocaína não tomam pico?
Porque eles conhecem o efeito da droga. Cheiram de vez em
quando, mas nunca colocam nas veias. Eles conhecem os efeitos
da droga. O que não acontece com a nossa juventude, que se
empolga simplesmente pelo barato que ela causa. O fabricante
boliviano ensina até às crianças os efeitos da cocaína, mostra os
efeitos. É isso que se tem que fazer...
- Concordo com você. Eu só não tomei umas picadas por
que tive medo. Conheci uma mochileira da Bahia. A gata só
tinha as duas presas na boca: a coca já tinha feito cair todos os
dentes dela. Só sobraram as duas presas. Ela só tinha dezoito
anos. E os braços eram uma ferida só.
- E por aí... Tire uma foto da boca dela, faça uns outdoorse
espalhe pela cidade com letreiros assim: “TOME COCAÍNA,
ENCOMENDE SUA DENTADURA.” Esse seria o verdadeiro
combate às drogas. Talvez alguém tenha essa idéia, também
mostrando os braços.
Rimos. Mas o Ro g ério tinha razão. Para muitos da minha
idade a empolgação diminuiria com certeza. Eu, se fosse presi
dente, faria isso: liberaria a maconha e faria os outdoors.
- Concordo com você. Liberar a maconha e fazer os out
doors.
- Pensando só em você! Maconha é o mesmo que o fumo
de cigarro comum, os efeitos são os mesmos, ao longo do tem
po ou até maiores para quem fuma cigarros comuns. Essas pes
soas têm mais facilidades de ficar com certas doenças do que os
que não fumam.
- Isso deveria aparecer na televisão. Co m pessoas que tran
sam essas drogas, nós, os usuários. M uito se poderia esclarecer.
Mas deixam tudo às escondidas.
- Isso, meu chapa, só daqui a cem anos! Essa de colocarem
nas ruas o assunto, vai ser difícil. Preferem nos jogar dentro de
hospícios ou em prisões. Eu já estou cansado disso, qualquer dia
acabo com esse martírio, de entrar e sair desses hospícios. Tomo
iima overe fim. Aqui dentro, só judiam, graças à ignorância. E
melhor uma overe ponto final.
Aquelas palavras doeram lá no meu íntimo. Rogério estava
cansado, vinte e dois anos que pareciam trinta. O que ele já
linha sofrido, só ele sabia. Abaixou a cabeça, já com sinais de
calvície, rosto redondo, moreno claro, bigode preto ralo, e en-
treteve-se em seu ser sofrido. Nada falei, calei olhando aquele
canto. Fomos interrompidos por um grito.
— Cambada! O os remédios! — gritou o enfermeiro bundão.
Trazia uma caixa com divisórias, colocou-a em cima da
cadeira.
Alguns internos o rodearam, enquanto ele ia tirando copi
nhos plásticos com os comprimidos. Chamava o nom e e os
virava na palma da mão do sujeito. Alguns, já com canecas de
alumínio amassadas e com água, tomavam e passavam a caneca
ao seguinte. Esvaziadas as canecas, iam buscar mais água naque
le canto. N u m relâmpago, enchiam as canecas. Os indiferentes
daquele canto se perturbavam com as presenças, mas logo se
entregavam às suas fantasias. Surpresa foi a hora em que o enfer
meiro, gaguejando, chamou pelo meu nome. U m a zero para o
Rogério... sem ao menos um olá do famoso psiquiatra, eu já
estava sendo medicado. Talvez esses psiquiatras sejam também
algum tipo de bruxo e tenham uma bola de cristal...
Peguei os comprimidos: ao todo eram cinco e uma cápsula
vermelha. N o resto de água eu os engoli. Após o grupo dissol-
ver-se o enfermeiro ten to u dar para alguns daquele canto os
comprimidos. Uns os apanhavam sem problemas, a outros nem
foram oferecidos e alguns recusavam. Os com prim idos que
sobraram foram pisados pelo enfermeiro. Achei u m absurdo
aquele desperdício, mas talvez mudasse de idéia!
Pouco depois dos comprimidos, a porta que dava acesso ao
interior do pavilhão foi aberta. Deviam ser umas onze horas.
Chamada para o almoço.
Entraram, atropelando-se pela porta. Fui um dos últimos.
Dentro, nas mesas compridas, pratos de alumínio, na maioria
amassados, envelhecidos, sem a tinta do fundo, e colheres. Os
maltrapilhos, mal-encarados, já estavam sentados. Os do canto,
em pé, correndo pelo corredor dos fundos, escondiam-se no
escuro, gritando. Além da confusão que faziam, o mau cheiro
completava o cenário. Alguns urinados, outros cagados, que
cheiro. Assim eles comem.
Chocado, procurei sair daquela sala, rápido. Percorri o cor-
icdor. Em outra sala vi mesas para quatro, com toalhas xadrez,
pratos brancos de louça, colheres também. Tudo limpo, até os
pacientes. Fui direto para meu quarto, sem apetite. Tudo ali era
novo e assustador... nó na garganta... de bruços, cara no lençol,
o nó vira vontade de chorar.
R o g ério veio me buscar. Sentamos à mesma mesa. Pela
porta da liberdade, entram panelões: arroz, macarrão, feijão e
carne. Os dois enfermeiros serviam a todos, faziam os pratos,
iodos cheios acima da boca. Apetite não faltava, comiam como
gulosos. Todos servidos, levavam as panelas para a outra sala.
Mal toquei o prato, não tinha fome, encostei o prato. Comentei
com Rogério:
- Os lá de trás... como eles conseguem comer com os o u
tros cagados ao seu lado?
- Cara, é melhor você não esquentar com o que vê aqui
dentro.
- Os pratos deles são de alumínio.
- Se fossem de louça poderiam se machucar. Estão a toda
hora se agredindo.
- Vocês... parecem que não comem há dias?!
- São os remédios para abrir o apetite.
Não tinha fome. M eu prato não ficou sem assistência, logo
foi pedido. Após o almoço, todos aos seus quartos. Deitar para
fazer a digestão. Essa de irmos deitar após o almoço pareceu ser
uma ordem aos da sala em frente ao meu quarto. Os lá de trás
ficaram perambulando pelo corredor, em correrias e grunhidos.
Deitado em minha cama, a porta do quarto semi-aberta, vi o
enfermeiro negro surgir.
- Tudo bem, Austry?
- N em tudo.
- Por quê?
Entrando, sentou-se na cama, ao lado dos meus pés.
— Porque não consegui falar com o médico! Não sei o que
estou fazendo aqui. Meu pai não tem dinheiro para pagar esse
tratamento bobo. Não sei de nada...
— Você não falou com o médico porque seu pai já falou com
ele... — explicou calmo.
— O que meu pai acha é uma coisa. O médico devia con
versar comigo. M e examinar, fazer qualquer tipo de exame pra
ver se tem necessidade de eu fazer esse chamado tratamento. Eu
estou pra fazer vestibular, como é que ficam meus estudos?
— O Dr. Alaor G uim ont é um dos melhores psiquiatras do
Paraná. Só em vê-lo ele já o analisou. Ele é o seu médico, é bas
tante experiente.
— Ele é também adivinho... olhou-m e p o r uns segundos e já
soube que sou viciado... Qual é, Marcelo? é esse o seu nome? E
outra, já estou tomando comprimidos. O hom em , além de adi
vinho, deve ter uma bola de cristal, só pode ser isso. - R iu da
maneira como falei.
— Você está aqui pra sair do vício. Q u em m andou se encher
de porcaria por aí e quebrar tudo em casa?
— Com o é que é?... quebrar tudo em casa?! Isso é mentira...
Lembrei-me que quando eu queria sair e às vezes os velhos
se opunham, fazia um escarcéu dentro do meu quarto, chutan
do m eu guarda-roupa. Jogava algumas coisas ao chão e saía
assim mesmo. Encontrando m aconha na m inha jaqueta, eles
somaram: dois mais dois igual a cinco... são as drogas que fazem
ele agir dessa maneira! Não tiveram a consciência de analisar a
rebeldia da adolescência. A desinformação sobre as drogas, sobre
o que Rogério e eu conversamos. E as manchetes: “Drogado
maconheiro mata a mãe para comprar maconha...” “M aconhei
ro coloca maconha dentro de balas para viciar crianças...” Ab
surdos dessa natureza dominam a ignorância popular sobre as
drogas. Meus pais fazem parte dessa grande massa popular mani
pulada p o r informações absurdas que acreditam ser possível
colocar fumo de maconha misturado com açúcar em forma de
lvalas a serem dadas para criancinhas chupar e se viciar. E o
cúmulo do absurdo, mas a grande maioria acredita. E graças a
essas fantasiosas manchetes, a obscuridade sobre o assunto das
drogas na sociedade persiste...
— Bem, isso é o que seu pai colocou na ficha... que você
inda muito nervoso, desobediente e agressivo com todos. Eu
não devia nem lhe contar isso!
— Mas isso não prova que eu sou viciado.
— Com o não? Se você não escuta ninguém, quer fazer o que
lhe vem à cabeça... algum problema você tem!
— Posso ter algum problema, menos ser viciado. Sou meio
revoltado com... nem eu sei o quê. Agora, com drogas, não tem
nada a ver. Façam exame de sangue, sei lá o quê, mas vejam que
não preciso de tratamento nenhum!
— Não sei a sua história, só sei que você vai ser tratado pelas
drogas que tom ou lá fora.
— Vão me tratar me dando mais drogas aqui dentro.
— Mas aqui são todas bem administradas.
— N um a ficha. Pois ninguém me tira da cabeça que vocês,
pra começarem a me dar medicamentos, deveriam no mínimo
fazer alguns exames. E também o psiquiatra devia ter ao menos
conversado comigo.
— Você parece ser mais velho, Austry.
— Talvez a rua envelheça a gente mais cedo. Você disse que
o Dr. Alaor Guimont vai ser o meu médico. E esse papo que eu
ouvi de eletrochoque em viciado?
— Mas você não é viciado... ou é?
— E justamente por isso que eu quero que vocês façam os
exames que quiserem, antes de me queimarem os chifres. Pô,
Marcelo! me dê essa força, fale com o médico, explique a ele
que foi um mal-entendido do meu pai. Explique pra ele!
— Austry, eu não posso fazer isso, ele é o médico. Mas você
não precisa ficar com medo de nada, aqui ninguém vai lhe fazer
mal. Agora descanse do almoço.
Saiu, fiquei com meus botões. O que iriam fazer comigo?
Essa porra de eletrochoque. Rogério tem verdadeiro pavor. E se
esse médico do peru resolve me aplicar essa droga de choque,
como será que é? A possibilidade do choque começou a p er-
turbar-me. O pavor que o Rogério tinha. Marcelo saiu e não to
cou no assunto. Eletrochoque. Ai, meu Deus! livrai-me dessa.
Agoniado, o nó na garganta... (que merda! quero chorar,
mas não consigo). Reviro-m e na cama-colchão de palha... que
ro pensar em outra coisa. Este quarto, olho os detalhes: o vitrô,
não são barras, são armações de ferro... as paredes cor gelo, as
portas cinza-claras. Vira tudo cinza quando acordo de manhã. A
porta também tem uma pequena abertura, em sentido h orizon
tal. Levantei o colchão, examinei a armação do estrado... todo
aramado, e o criado-m udo de latão, ou sei lá, verde-abacate,
com uma pequena gaveta e uma abertura maior embaixo, para
as roupas. Algumas roupas minhas estavam ali naquela abertura
do criado-mudo. Estava ainda com aquele pijama azul de boli
nhas brancas.
O teto... uma agonia faz correr o m eu sangue, escuto as
batidas do meu coração. Será que minha turma virá me visitar?
Q u e sacanagem! uma simples consulta com um psicólogo evita
ria esse martírio todo. Era um martírio ficar num lugar desses
um dia, que dirá, como o Rogério... cinco meses! Visitas só
daqui a quinze dias, por quê? Deve ser para a gente se acostu
mar a ficar aqui. N em com anos e anos eu vou me acostumar
num lugar nojento como este. U m barulho despertou-me dos
meus pensamentos.
A porta estava fechada, não trancada. Vi olhos na abertura
de uns cinco centímetros, depois a figura assoprou no buraco.
Saiu. Não dei bola. Novamente, o assoprão. Levantei e fiquei
do lado da porta. O utro assoprão. Abri a porta rápido. U m cara,
cabeça chata, paraíba, soltou um sorriso estridente e saiu pelo
corredor rindo. Ele tinha o rosto fino, bocudo, pele escura, não
negro e nem mulato, cor de nortista do Brasil, também calvo,
parecia o Amigo da Onça. Não lhe dei atenção, voltei para a
cama, com meus botões... voltei a martirizar-me, estava com dó
de mim mesmo. A revolta começou a vir à tona, aqueles asso-
prões recomeçaram na abertura, o pinei brincalhão já estava me
irritando. Tentei acalmar-me, mas aqueles assoprões não deixa
vam, levantei e tentei pegar a hiena no cio.
— Vem cá, seu puto! - Tentei pegar em seu braço. Ele foi
mais rápido e fugiu pelo corredor, rindo.
— Ei, ei, calma rapaz! — disse-me o enfermeiro.
— Esse cara de hiena não pára de assoprar na minha porta!
— É o Pernambuco, não ligue, não!... Ele faz isso com todo
mundo. Ele só quer chamar a atenção.
— Tudo bem, mas tava enchendo o saco.
— Ele é um dos mais velhos aqui dentro. Faz nove anos que
ele está internado.
— O quê! nove anos? Você está brincando...
— E tem cara aqui dentro há mais tempo.
— E os parentes?
— Parentes? Esses caras já foram abandonados há muitos
anos. Eles não têm ninguém p o r eles. O mundo deles é aqui
dentro. Lá fora, eles não saberiam n em pegar um ônibus.
Podíamos deixar as portas abertas e tocar fogo no pavilhão que
eles não sairiam.
— E quando morre u m deles?
— O sanatório faz o enterro. Este hospital é filiado à Federa
ção Espírita do Paraná e, como caridade, eles seguram esses coi
tados aqui dentro. Lá fora eles virariam mendigos e morreriam.
Aos sábados, vocês recebem passes com o seu Abib, que é um
médium muito bom. — Enfermeiro falador, devia ser novato, era
jovem.
— E você trabalha há muito tempo aqui?
— Há seis meses, mais ou menos.
— E por que a maioria aqui é louco? Tenho visto neguinho
aqui dentro só fodido... por que estão aí, cagando em si mesmos?
O falador não respondeu, só deu uma piscadinha e virou-se
em direção à porta da liberdade. Voltei para o meu quarto. Já
não queria saber de mais nada. Q uanto mais conversava, mais
aquele lugar me parecia desprezível. Tudo tinha um gosto amar
go, as surpresas eram desagradáveis, cada pessoa tinha uma his
tória feia, eram enredos tristes, uns piores que os outros.
Chamada para o pátio. Repetia-se o quadro visto pela ma
nhã. Cada u m ocupava o mesmo espaço, aquele canto, alguns
esparramados pela pouca grama. Tinha sim, uma mudança, o
guardião era outro. O jeito era eu também conquistar um espa
ço e ficar coçando o saco, naquela grande-pequena jaula.
— Rogério, quem é aquele enfermeiro falador?
— E um estagiário.
— E esse cão de guarda?
— E o Luiz, enfermeiro da tarde. Gente boa. E malucão.
— Com o assim?
— U é, fuma unzinho também...
— Será que ele tem um baseadinho aí pra gente?
— Você acha que ele é trouxa? Ele já vem com a cabeça fei
ta. Ele não vai arriscar o emprego dando fumo pra paciente. Ele
é esperto, é bom malandro.
— Porra, todo dia a transa é essa: pátio, remédio e comer.
Não muda nunca?
— Muda sim, nos dias de visitas e nos dias de choque.
— Vem você outra vez com esse papo de choque.
— Tá legal, quem vai ser o teu médico?
— O Marcelo disse que é o Alaor. Mas tem outro?
— O adm inistrador, dizem que tam bém é m édico, mas
quem mexe na cuca do pessoal acho que é só o Dr. Alaor. Esse
sádico!
Eu já estava p ertu rb ad o , mas q u eria saber mais e, n u m
masoquismo incontrolável, continuava a perguntar:
— Desde que cheguei, ninguém falou nada de bom deste
lugar. Não deve ser tão ruim como vocês estão dizendo.
— Cara, isto aqui não é um clube de férias e nem uma clíni
ca de repouso de filme americano. Isto aqui é u m hospício bra
sileiro e nós somos segurados do INPS. Você não irá ver nada de
bom.
— Só quero sair o mais rápido possível daqui!
— Austry, não estou querendo assustá-lo. Mas encare a real.
Você foi internado por insistência do seu pai, ele deve ter espe
rado um bom tempo, aqui as vagas são difíceis. Se você pensa
que quando receber visitas eles irão tirá-lo daqui, é fantasia sua.
— Qual é, cara!? Ele vai ter que me tirar daqui! Se os exames
não derem nada, não tem por que eu ficar aqui.
— Porra! você tá parecendo u m desses Zé-Bobões. Não vão
fazer p o rra n enhum a de exames em você! E sabe o que vai
acontecer quando vierem te visitar? - falou irritado.
— Não sabia que você também é adivinho!
— Não é ser adivinho. Você notou o apetite do pessoal hoje,
na hora do almoço? Eles, nesses dias em que você não pode
receber visitas, irão te engordar como se engorda porco em chi
queiro... você vai ter u m apetite de comer tudo o que pintar
com esses remédios pra abrir o apetite! Em quinze dias, cara,
você vai estar gordinho...
— E aí?... não tô entendendo...
— E aí... quando os seus familiares vierem para visita, eles
irão achar você mais gordo, mais forte, corado, de aparência
melhor e mais calmo — efeitos dos medicamentos tranqüilizan
tes. Irão lhe dizer que foi ótimo trazerem você pra cá... Q u e o
tratamento tá sendo bom. E nada, meu chapa, nada do que você
disser eles irão escutar! Cara, esse pessoal é inteligente, são
mafiosos.
— Conheço meus velhos, assim que falar o que é isso aqui,
tenho certeza de que irão me tirar...
— Vou torcer por você. Mas não sonhe muito com isso. A
cada visita minha, eu também penso que os meus velhos irão
me tirar, mas não tiram...
- Mas o teu caso é outro, você é realmente viciado...
- Você tá sonhando. O m eu caso pra eles é o mesmo que o
seu, somos os dois viciados! Caiu aqui dentro, o tratamento é
generalizado. N inguém escuta você, você é um viciado e está
enlouquecendo por falta das drogas. Isso é o que representa sua
figura para eles e a sua família. Você está doente, ficando louco
e... a louco, n inguém dá ouvidos! N ós não temos nem esse
direito. Se você se matar pra que o ouçam, irão dizer que você
se matou porque estava louco...
- Olhe, cara, não dá pra ficar trocando idéia contigo. Você
tá me deixando muito confuso. Vou mijar.
Qual é a desse cara, quer me deixar maluco? Esse cara só
pode estar revoltado. Pudera, cinco meses não são cinco dias!
Estava tão irritado com o papo que, nem percebi, e estava no
meio dos malditos. Em frente, um cara que não parava de bater
ovos. Dois metros de altura, por um e meio de largura. Enca-
rava-me, tremi nas bases. Olhando para cima, com minha cabe
ça um pouco acima da altura do seu umbigo, via-o mexer aque
la mão, virando a cabeça e os olhos. Parecia um urso branco,
pele branca. C o m uma patada daquele animal eu ficaria sem a
cabeça. Atrapalhado na porta do banheiro, olhei em volta. Os
outros crônicos tam bém estavam parados e m e olhando. D e
imediato, fiz a volta para sair daquele meio... antes, porém, uma
mão levou o cigarro que eu tinha entre os meus dedos. N ão
reclamei, dei graças a Deus, saí daquele canto.
Naquele canto, em poucos segundos, eu, o intruso, percebi
que havia invadido um espaço só deles. Com o não fora convi
dado para aquele espaço, eu os ameaçava. Pareceu -m e que
naquele momento, no ostracismo em que viviam, todos rompe
ram suas cascas em defesa de seus espaços. Espaço mínimo, mas
só deles. Incrível o entendimento, o respeito que tinham um
pelo outro, em seu espaço e fantasia. Brigavam entre si, pelas
marcas visíveis de agressões: rosto, braços, pescoços arranhados
e até mordidos. Formavam um grupo de psicopatas irrecuperá
veis, loucos-loucos, no sentido da palavra, uma pequena comu
nidade, cada um aceitando as loucuras e fantasias individuais,
sem impor-se uns sobre os outros. Havia um entendimento na
quele grupo, coisa impossível de se imaginar, mas de alguma ma
neira eles se entendiam, protegiam-se e, o mais interessante,
respeitavam-se. Algo para os paranormais explicarem. Até cari
nho, eles faziam, às vezes. Com o era possível, pessoas que não ti
nham mais nem o controle de suas funções orgânicas, que rasga
vam dinheiro e comiam merda, serem unidos daquela maneira?
Fui pedir o auxílio do enfermeiro guardião do pátio. Ele me
levou até os crônicos - os goiabas ou goiabões, como eram cha
mados.
— Tá calminho hoje, tá? E assim que eu gosto... - falou para
o urso polar batedor de ovos.
- T ô bonzinho sim, tô sim. Q u em é esse aí? - o urso polar
falava revirando os olhos e as mãos que nunca paravam de
mexer.
- E um amigo de vocês, ele vai ficar um tempo aqui com a
gente.
Eu estava receoso, todos os outros estavam me examinando.
— Mas que não se meta comigo.
“Eu, me m eter contigo, Zé Grandão? nem em sonho...”,
pensava eu.
Ele não parava com aquela mão. Revirava os olhos e às
vezes a cabeça. Sua voz de retardado era assustadora. U rin ei
naquele cubículo sem janela, o mais rápido possível. Ao sair do
banheiro o enfermeiro estava andando de cavalinho nas costas
do Zé Grandão, o urso branco. Sua passividade era ilusória, ele
era altamente agressivo, um psicopata perigoso. Para acalmá-lo
usavam a Tortulina, o Haloperidol. Mas fiquei sabendo mais
:arde que no Zé Grandão costumavam aplicar o Triperidol,
:ujo efeito é maior que o Haloperidol.
Sentei em outro canto, os papos do R o g ério estavam me
cansando. Fiquei fumando com os olhos fechados, naquele sol
de fim de inverno. Q u an d o o cigarro ch eg o u à xepa, eu o
joguei fora. Dois dos crônicos, que já estavam me observando
há algum tempo, pularam na xepa. Em meio a mordidas e arra
nhões, um deles conseguiu apanhá-la e saiu fumando. Tirei a
carteira e dei um cigarro ao que havia perdido a disputa. Seus
dedos estavam m arrom -escuro de tanto fumar xepa. Vieram
outros querendo também cigarros. Dei mais alguns e procurei
outro lugar.
Deveriam ser umas três horas da tarde: chamada dos rem é
dios. Recebi três comprimidos desta vez. Em seguida, vieram
bules, dois; saco de pães, um. Canecas enfileiradas, de alumínio.
Tudo veio em cima de uma mesinha com rodas. Os pães somem,
a fila pela cevada com leite é rápida. Todos queriam comer.
Alguns do canto tam bém vieram buscar o seu quinhão, não
todos. O enfermeiro ia até eles entregando uma caneca e um pão
para os indiferentes. Comiam devorando o pão na primeira b o -
cada (não os do canto). Os pães que sobravam no saco eram es
perados pelos gulosos impacientes. Comiam e comiam, parecen
do uma porcada na engorda. Mais um ponto para você, Rogério.
Após o café-cevada, acendi o utro cigarro. D e imediato,
alguns crônicos começaram a me observar. Q uando terminei,
joguei no chão — a cena anterior se repetiu. Eram três agora,
numa disputa rápida e agressiva. A distância, ficavam à espera,
como urubus, esperando a guimba. N o chão, o mais esperto
pegava. Ao conseguir colocá-la na boca, não era mais incom o
dado pelos outros competidores.
A necessidade que esses crônicos esquecidos têm de cigarro
é algo tam bém aterrador. Mordem-se, arranham-se por uma
xepa... homens, numa disputa dessas! Seres humanos ou feras?
Em grunhidos lutam pelo grande prêmio: a guimba. Q u e os fal
sos moralistas e insensíveis engulam suas falsidades, mas a gran
de realidade é que seria um ato de caridade trazer cigarros para
esses homens. Não trazer bolachinhas e doces. Eles necessitam
de cigarros. Muitos podem achar absurdo. Mas vê-los agindo
como cães agredindo-se por u m osso na certa mudaria seu pare
cer. Esses tipos de instituições p oderiam ter convênios com
fábricas de cigarros e os refugos de cigarros dessas fábricas pode
riam ir para esses esquecidos. Mas a falsa moralidade de uma
sociedade também falsa nunca iria perm itir um convênio desse
tipo. Preferem deixá-los como estão, escondidos, rasgando suas
carnes por umas xepas de cigarros. Estaria mais de acordo com
as regras da nossa moralidade: cigarro provoca câncer.
Fim de tarde... bom apenas para coçar, curtindo o peso do
nosso m artírio de não fazer nada. A ociosidade era tediosa.
Alguns jogavam baralho, g ru p o fechado, até o en ferm eiro -
maconheiro participou. Eram alcoólatras, grupo fechado, elite
do hospício.
Elite — pinguços conceituados, até um médico e um execu
tivo da família Fontana, estavam ali conosco. Esse médico era
clínico, u m alcoólatra, gente finíssima. E o Fontana, como o
chamávamos, também o era. Mais tarde tive o prazer de co
nhecê-los. O Fontana, seu nom e real de família, era um cara de
uns trinta e seis anos mais ou menos. Tinha os cabelos pretos
bem cortados e um pouco ondulados. Magro, alto, era um h o
mem m uito bonito, parecia um galã de cinema. Era também
m uito fino e viajado. As vezes eu o perturbava para que me
contasse suas viagens ao exterior. Passava pouquíssimo tempo
naquele pavilhão dos infelizes e era logo transferido para os
apartamentos. Freguês já da casa, os enfermeiros puxavam o seu
saco. Tinha grana ou a família dele tinha.
O médico clínico, não me recordo de seu nome, estava ali
devido ao alcoolismo e a alguma mutreta ligada à sua profissão.
Nunca ficamos sabendo ao certo.
Novamente a chamada para os remédios. Deveriam ser qua
se seis da tarde. Recebi, dessa vez, cinco comprimidos e a cáp
sula vermelha. Eram treze a quinze comprimidos, só nesse dia.
Fui apanhar água, lá naquele canto. R o g ério me seguiu. Os
malditos e indiferentes não se importaram com m inha presença
relâmpago naquele canto.
- Austry, você já percebeu quantos comprimidos lhe deram
hoje?
- J á passou de dez, eu acho.
- Eles vão impregná-lo de remédio. Mas comigo não, ó... -
cuspiu-os na palma da mão e os guardou no bolso.
- Depois eu os jo g o fora.
- Rogério! você joga os comprimidos fora? E por isso que
você não sara.
- Cara, essas porcarias não curam ninguém. Só servem pra
deixá-lo impregnado, só isso!
- Impregnado, o que é isso?
- Impregnado, xará, é ficar como aqueles ali. O sujeito fica
vinte e quatro horas por dia viajando, sem vontade própria, len
to, não consegue nem ao menos desabotoar uma camisa sozinho.
Tomei-os assim mesmo, não sei por quê.
- Cara, já vi que não adianta lhe dar toques. Você é novato,
daqui a uns dias você vai ver as conseqüências dessas drogas.
- Cara, até agora você só me deixou cabreiro. Você já falou
em choque, em enganação dos médicos, em sei lá o quê. Tudo
que você falou, até agora, foi coisa ruim. Olhe, sinceramente,
dá um tempo!
- Austry, eu só estou querendo te ajudar... te preparar para
o que eles irão fazer contigo aqui dentro, e você poder se defen
der deles... E só isso!
- Eu agradeço, cara, mas você me deixa mais confuso.
- Este pavilhão onde estamos, nós internos e os enfermei
ros o chamamos de San Q uentin. O nome verdadeiro é de um
doutorzinho, tem a plaquinha lá fora. Mas todos aqui o conhe
cem pelo apelido de San Quentin, o mesmo nom e de uma p ri
são fodida que tem ou tinha nos Estados Unidos.
- E o que isso tem a ver?
— Este pavilhão, o San Q uentin, é uma triagem. Todo m un
do que é internado no Sanatório Bom Recanto é obrigado p ri
meiro a passar por. este pavilhão. Aqui dentro, eles fazem a
desintoxicação, aplicam o famigerado eletrochoque... fazem o
diabo. Depois você é transferido para outros pavilhões. O cara
que puder pagar os apartamentos vai pra lá.
— Q u er dizer que este pavilhão, San Quentin, é a lavagem
da roupa suja?
— Mais ou menos isso. Este hospital funciona bem na desin
toxicação dos alcoólatras. Fazem uma lavagem no sujeito, soro e
sei lá o quê. Funciona. Mas em tratamento de viciados em dro
gas é um crime o que eles fazem com a gente, e...
— Calma Rogério, eu não tô mais a fim desse papo.
Não dava para continuar esse papo cavernoso com o R o
gério. A porta se abriu, todos entraram, alguns se atropelando.
Nas mesas grandes os pratos de alumínio amassados, talvez pela
pancadaria que, com certeza, pintava. Tudo se repetia: o que
virá na hora do almoço?
Jantei, não comi até o fim. O televisor, que ficava numa
prateleira na parede, na nossa sala, após o jantar era ligado. Não
me interessei, fui para o quarto. Em to rn o das vinte e uma
horas, outra chamada para os com prim idos. Desta vez, três
comprimidos. E todo m u n d o para a caminha. O quarto foi
trancado pelo enfermeiro n oturno. Antes, avisou-me que se
quisesse ir ao banheiro era só bater na porta. Comecei a repas
sar tudo, o papo do Rogério, os que ficavam naquele canto, tan
tos comprimidos, minha família... meus estudos, minha turma.
Virava de um lado para o outro, mais que charuto na boca de
bêbado. Co m custo consegui dormir.
Pela manhã, quartos abertos, fomos acordados aos gritos.
— O, o café, pessoal! Todos tomar café. Vamos, vamos logo,
todo mundo de pé - o enfermeiro n o tu rn o fazia uma zorra,
depois sumia.
Levantei a fim de tomar um banho. N o chuveiro, já para
entrar, um outro paciente da nossa sala de jantar disse:
- Vai tomar banho? Vai perder o café.
- Não tô a fim de perder o café. Estou com uma fome! — Só
lavei o rosto e os dentes.
- H oje tem visitas! - era o comentário.
Quinta-feira, dia de visitas. Será que meu pai vem? Mesmo
se vier, será difícil me deixarem vê-lo.
Q uinta-feira: visitas, não para todos, apenas para alguns.
N inguém para ver os esquecidos. Esses esquecidos e malditos
continuavam encostados pelo INPS, não p o r caridade espírita.
Infelizes, foram usados e mexidos. Agora, vegetam como plan
tas secas esperando a hora de caírem de seus caules. De carida
de, só recebem um ou outro cigarro de algum interno novato.
O u alguém que lhes dá um par de meias furadas. Essa é a cari
dade que recebem, mas que trocariam sem pestanejar: o trapo
pelo cigarro. Mantidos em alas proibidas aos olhos de visitantes,
constituem-se em verdadeira vergonha para uma sociedade de
“normais” . N u m martírio lento, eles esperam que as drogas os
matem, explorados pela instituição que agora recebe os elogios
da sociedade, p o r mantê-los sem condições mínimas de higiene
e valorização humana. Já serviram às experiências para o uso de
novas drogas, novas teses, novos tipos de tratamento. Fizeram
sua parte como cobaias. Agora são lixos humanos. Empilhados
como inúteis, esperam lentamente que os efeitos de anos de
medicamentos os matem. Q u e caridade é essa? Mais caridoso
seria eliminá-los de uma vez, limpando assim a vergonha de
uma sociedade hipócrita. Sociedade esta constituída por cida
dãos que sabem o que ocorre dentro dessas instituições e, por
comodismo e desumanidade, se fazem de desentendidos do
assunto, leigos... e isso é problema para os especialistas da área.
E mais cômodo fazer vista grossa.
P o r um a bandeira vil, que essa sociedade de hipócritas
insensíveis denominou de “caridade”, eles são mantidos vege-
tando e apodrecendo com suas fezes. A essa sociedade de falsos
caridosos eu dou de graça uma sugestão: colocar todos esses
inúteis dentro de um barracão de madeira podre e inútil tam
bém; e, com duas pedras, raspando uma na outra, até conseguir
a chama, atear fogo ao barracão. Os que conseguirem sair vivos
do barracão, sugiro matá-los a pedradas! É mais caridoso que
deixá-los em cantos malditos, apodrecendo com suas fezes.
Ao sair do banheiro resolvi fazer uma peregrinação ao fun
do escuro daquele pavilhão. Ao entrar naquele corredor, que
iniciava logo após as mesas grandes, não consegui chegar nem à
metade. O cheiro de fezes era insuportável. Consegui ver o
interior de um dos quartos. Uma estopa amarela, já aparentan
do algo podre, de uma cor amarronzada. U m cobertor velho,
como os que distribuem nas cadeias, devia estar duro de sujeira.
As paredes daquilo que eu estava vendo, n em quarto e nem
cova, tinham marcas de mãos e dedos escorridos. Eram fezes,
merda podre. R ealm en te não conseguiria ir até o fundo do
pavilhão. O cheiro era insuportável e a ânsia de vom itar se
manifestou. Voltei ao banheiro, lavei o rosto e, olhando-me no
espelho, consegui chorar um pouco.
H oje é quinta-feira, o hospício está mais alegre. Dia de visi
tas. Após o café, fila no banheiro. Muitos riem esperançosos.
Tomam banho e colocam a roupa de domingo. Alguns enfer
meiros estão dando banho naquele crônico incapacitado que
passa os dias lá dentro, urinado e cagado. Mas hoje ele tem visi
ta, é dia de banho. Até o cabelinho do goiaba, o enfermeiro faz
questão de ajeitar com a ponta do pente sujo, de dividi-lo bem
ao meio, bem certinho. H oje ele tem visita. Tudo bonitinho... a
preparação começa logo após o café da manhã, antes das sete. O
grande espetáculo está marcado para as três horas da tarde, mas
são muitos preparando-se. A direção do espetáculo exige que
seja do agrado de todos os ilustres visitantes: os familiares. Estava
bem m elhor que o ntem . U m agito. Se aquela ociosidade se
repetisse hoje, não daria para agüentar.
- Mas que agito, hein, Rogério!
— Visitas, é bom ver a família.
- Eles entram aqui no pavilhão?
- Aqui dentro é expressamente proibida a entrada dos fami
liares e pessoas estranhas.
— N ão querem mostrar como vivemos. Escondem a realida
de do terror que é isso.
- Você já está começando a entender este lugar.
- Também, ontem você não me deu folga. Não consegui
dormir.
— N em com o sonífero que lhe deram?
— Não, eu dormi. Mas tudo o que vi... não foi fácil.
- E gostou?
— E o lugar ideal pra curtir uma férias — rimos —, onde esse
pessoal recebe as visitas?
— N o pátio, lá fora.
— Lá fora não tem muro, é só dar no pinote.
— Já fiz isso, meus velhos mandaram um camburão me tra
zer de volta. Foi pior.
- Cara, será que se meu pai vier, eles me deixam falar com
ele?
— Tire o cavalo da chuva! Seu pai, só daqui a quinze dias.
Ele sabe disso, duvido que ele venha.
- Treze dias, então. Se eu tivesse uma chance de falar com
meu pai, não ficaria mais u m dia aqui.
- Não adiantaria nada.
- Tá legal, Dr. Sabe-tudo. Não vai tomar banhinho tam
bém e pentear o cabelinho, pra entrar em cena?
— Mais tarde um dos melhores figurantes irá se produzir.
Tudo realmente era uma grande produção. O espetáculo
parecia uma estréia de teatro. Os mínimos detalhes eram lem
brados. O grande cenário era lá fora. O interior do pavilhão era
proibido à visita de estranhos, poderiam prejudicar o andamen
to do valioso tratamento!
A grande peça acontecia ao ar livre, no imenso jardim flori
do do Sanatório Bom Recanto. Até o nom e é bonito: Bom
Recanto — soa a paz! O jardim arborizado, os pássaros cantando
freneticamente, paz e sossego no ar... Banquinhos de madeira,
todos pintadinhos de branco, um recanto de namorados dos
tempos da vovó, só faltando a bandinha tocando e o lago com
os cisnes nadando. U m a paz celestial, às vezes quebrada por
algum grito de um crônico dentro do pavilhão que quase ins
tantaneamente é sufocado pela mão do enfermeiro em sua gar
ganta. O espetáculo acontecia para o agrado de todos, ou
melhor, dos ilustres visitantes, que a direção do sanatório fazia
questão de impressionar. Ao in tern o , não sobravam muitas
chances de ser ouvido. U m lugar de tanta beleza e tranqüilida
de impressionava tanto que a família toda queria ficar internada.
Eram sensibilizados com a dedicação, calma e gentileza dos
enfermeiros que trocavam o autoritarismo e os gritos por falas
mansas, na frente das visitas. Alguns eram até bonificados com
dinheiro e presentes dos familiares. Discretamente, aceitavam
essas bonificações.
A chance de nós, internos, sermos ouvidos era inexistente
perante tamanha superprodução, digna de H ollyw ood. N ão
teríamos a mínima credibilidade, mesmo que rasgássemos o cor
po para provar que o que ocorria lá dentro era o inverso do
mostrado aqui fora.
O hospício parecia em festa. Era quinta-feira, dia de visitas.
O alm oço tam bém era especial, com m aionese, frango ao
molho, macarrão, arroz, feijão e outros bichos. Comi como há
muito tempo não comia, estava com um b o m apetite. O pátio
ficou aberto na hora das visitas. Nós, que não tínhamos visitan
tes, ficamos lá.
Estavam todos os que tinham visitas bem limpinhos. Alguns
até tomaram um segundo banho de perfume. Esperavam ansio
sos chegar a hora. Até o médico clínico estava rindo, na espe
rança de que seus problemas lá fora tivessem tomado o rumo
que ele esperava. Com o ele, outros estavam com seus anseios
renovados, esperançosos até de irem embora. Eram esperanças
ousadas e eles estavam alegres com elas, a ponto de distribuírem
cigarros aos esquecidos, mesmo sem eles terem pedido.
Pouco antes das três horas, todos aguardavam ansiosos que o
enfermeiro, que fechou a porta de acesso ao interior do pavi
lhão, colocasse a cabeça e os chamasse.
Os crônicos pareciam saber que todo o hospício estava em
alto astral e aproveitavam as gentilezas dos esperançosos. C o
meçaram as chamadas, saíam do pátio com sorrisos até as ore
lhas. Até eu fiquei com uma certa esperança que meu pai tives
se vindo e que eles me deixariam vê-lo. Era remota, mas não
impossível.
Durante os minutos preciosos de espera ficavam impacien
tes. Fumavam mais que o normal. Ao ouvir o seu nom e chama
do, a angústia dava lugar a um largo sorriso. Saíam do pátio e
levavam seus desejos ardentes, o objetivo maior: ir para casa. Sa
biam que teriam de representar também. Não podiam demons
trar toda a sua ansiedade em sair daquele lugar. Precisavam se
controlar e mostrar aos seus que estavam calmos, conscientes e
receptivos. Controlar-se ao máximo para mostrar que não era
mais necessário ficar ali dentro. N ão podiam e nem deviam
explodir se os familiares fossem contra a sua saída. Se o fizessem,
as esperanças iriam se perder. Tinham que representar também,
dentro daquela peça que envolvia muitos personagens, sendo o
deles o papel mais difícil.
Os parentes do Rogério também vieram. Iria pedir para o
tirarem dali ou, pelo menos, transferi-lo de pavilhão. Pois nos
outros pavilhões se tinha a liberdade de pelo menos andar pelo
jardim do Sanatório, à hora que se quisesse. E nós, ali do pavilhão
San Quentin, éramos controlados em nossas horas de pátio. U m
pátio de delegacia, pequeno. Rogério saiu também, esperançoso.
Ficamos nós: eu, os esquecidos e um ou outro que se preparou e
a visita não veio. O horário de visitas terminava às dezessete
horas. Aquela tarde foi diferente da anterior. Desejava que o
Rogério conseguisse o seu objetivo. Meu velho não veio mesmo.
As visitas terminaram. Os internos vieram derrubando fru
tas, doces, cigarros, biscoitos e balas. Derrubavam esperanças.
Risos antecipados tornaram-se olhares frustrados. Já não riam.
Angústias nas mãos, jogam -nas no quarto, esparramam pelo
chão. De que adiantam aquelas guloseimas?
Os visitantes se foram, convencidos pelo belo espetáculo
hollywoodiano. Os que tinham ensaiado a manhã toda para
falar, falaram alguns. Os ouvidos, ouviram? Pouco provável que
ouvissem o que realm ente era fundam ental para o in tern o .
Tudo foi encarado por seus familiares como meras reclamações,
por estarem ali presos. As reclamações pelos maus-tratos, pelo
isolamento, pelos choques, pelos remédios, pelos crônicos caga
dos ao seu redor. Q u an d o iriam tirá-los dali? Tudo que era
reclamado deixava de ter importância. O que realmente impor
tava era que o tratamento estava sendo feito.
Tratamento diagnosticado p o r uma bola de cristal ou por
adivinhação. Seria melhor levar-nos a tratamento com pai-de-
santo.
A empolgação, que começou pela manhã, deu lugar a um ar
fúnebre. Talvez por isso os psiquiatras digam que as visitas atra
palham o andamento do tratamento.
Q u e tratamento? Engolir comprimidos e ficar preso, isola
do, isso é tratamento?
O silêncio era quebrado apenas pelos crônicos indiferentes.
Estes se lambuzam com doces, chocolates e outras baboseiras.
U m grupo de crônicos circunda aquele outro que recebeu visi
ta e tem cigarros. Ficam numa roda, fumando um cigarro após
o outro, até fumarem to d o o maço - depois dispersam. Os
outros internos analisam em suas camas, cabisbaixos, onde erra
ram ao falar com seus familiares. A outros, a esperança parece
que irá se concretizar. Logo estarão fora dali.
A chamada para os remédios da hora do jantar. Muitos não
comeram o de costume, estavam empapuçados pelo que lhes
trouxeram os familiares. Televisão até as nove da noite, outra
chamada para os remédios. Tomei a mesma dosagem de com
primidos do dia anterior. Todos no quarto, o n o tu rn o tranca as
portas.
— Boa-noite, Austry.
— Boa-noite.
Escuto o b arulho da chave na fechadura, tudo escurece,
apenas a claridade da abertura da porta. Pensativo, adormeço.
Nota nossa: aqui interrompemos a transcrição do texto de autoria de Austregésilo Carrano Bueno, publicado em livro com o título CANTO DOS MALDITOS
U m a história verídica que inspirou o filme Bicho de sete cabeças.
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