quarta-feira, 23 de abril de 2014

CANTO DOS MALDITOS, de Austregésilo Carrano Bueno

Austregésilo Carrano faleceu em São paulo, em 27/05/2008, aos 51 anos de idade. 
Hoje vamos publicar trecho do livro, CANTO DOS MALDITOS, cujo autor chama-se Austregésilo  Carrano  Bueno, que inspirou o filme Bicho de Sete Cabeças.

O texto que publicamos é longo e incompleto. Para quem não tem muito tempo para leitura de textos longos, sugerimos a impressão do texto, que retrata como funciona - de verdade - os manicômios, estes lugares surreais, absurdos, muitas vezes inimagináveis por familiares. Lembro que quando estava numa "clínica" prisional chegou um novato, muito lúcido, como outros tantos que se achavam encarcerados e submetidos a um regime louco, que nossos familiares acham que são locais aptos a "tratar" a dependência química... Pois bem, perguntei ao jovem paranaense qual a droga que o trouxe a tal lugar e ele me respondeu que o pai achou um baseado na gaveta do armário dele e isso resultou em escândalo que resultou em mais um novo absurdo. Ele estava internado naquela espelunca, de fachada, porque era mero iniciante no uso de maconha.

O texto transcrito me conduz a pensar e alguns companheiros que entraram sãos, nestes lugares,  e saíram pirados. Em "Clínicas", cuja internação é compulsória, podemos observar muita podridão denunciada em Canto dos Malditos. Também lembro, adictos, muitas vezes, não sabem se defender, nem se organizar, nem reagir com inteligência, protestando e denunciando internações malditas.

Eis o texto, que segmentarei, Se tiver tempo de sobra tentarei reformatá-lo, sem prejuízo à obra e ao que o autor quis transmitir :

"J a m a i s  SONHARIA  aonde   os   caminhos  da  minha adolescência  me  levariam.  Algo  que  supus  acontecer apenas  em filmes  americanos  de  terror  aconteceu.  Em  meados  de  outubro de  1974,  chegando em casa,  fui convidado por meu pai a acompanhá-lo  em  visita  a  u m  amigo  seu,  hospitalizado.  Estranhei aquele convite, pois não tínhamos o hábito de sair juntos, mas fui.

Chegando ao hospital, antes mesmo de entrarmos nas instalações  de  imediato  dois  enfermeiros vieram ao  nosso  encontro. 

Com sorrisos, postaram-se um de cada lado.  Desconfiei daquela posição.  Pegaram em meus braços.
— Ei! pera aí...  o que está acontecendo?  perguntei assustado  e olhando para meu pai.
— Calma,  filho,  é para o  seu bem! respondeu meu pai.
— Seu pai  o  trouxe  aqui  pra você  fazer uns  exames,  apenas isso...
 — falou um enfermeiro negro.
— Mas  que  exame,  pai?  eu não  estou  doente...
— perguntei, forçando para soltarem os meus braços.
— Calma,  filho!  é para o seu bem...
— Que calma?  eles  estão me puxando...  qual é, velho?
— Nós sabemos que você não está doente. Ele só quer que você faça uns exames e mais nada... 
— disse, tentando me acalmar,  o enfermeiro negro. Puxaram-me para dentro de um pavilhão.
— Ei!...  espere  aí,  meu pai não vai entrar? — falei e vi  a por­ta atrás de mim fechar-se.
— Venha comigo! — disse o negro.

Largaram os meus braços. Caminhamos  por  um  corredor.  Do  lado  direito  ficavam quartos,  do lado  esquerdo,  uma  sala  não  muito  grande  com mesas e cadeiras. Entramos num quarto logo ao lado da sala. Era um  quarto  que  usavam  como  enfermaria.  Sentaram-me  numa cama alta.  Havia um pequeno armário com vidro e um suporte para  braço.  O  enfermeiro  negro  sentou-se  ao  meu  lado  na cama,  o  outro sentou-se  a uma mesinha de  enfermagem.

— Com o  é  o seu nome? — perguntou  o  enfermeiro negro.
— Austry.
-  Bem,  Austry,  o  que  na  realidade  está  acontecendo  é  o seguinte...
 —  Fez  uma  pausa.
 —  Seu  pai  encontrou  maconha numa jaqueta sua.  Ele  acha  que  você  é viciado  e  trouxe-o  aqui para fazer tratamento.
- Não acredito.  Meu velho pensa que sou viciado? Ele nem conversou  comigo  e já me trouxe pra cá?!...
- E  o fumo,  você fuma maconha? - o  negro.
—  Dou  meus  peguinhas,  mas  isso  não  significa  que  seja viciado.
- Bom,  só  sei  que seu pai o internou  e  a gente vai tratar de você.
- Tratar de mim?  Isso é uma piada. Eu não sou um viciado, podem  fazer  o  exame  que  quiserem.  Não  sou  dependente  de droga  nenhuma.  Vamos,  façam  os  exames!  Podem  fazer  qual­quer  tipo  de  exame,  vocês  verão  que  não  tenho  dependência nenhuma...  Isso  é,  se  vocês forem capazes  de  entender o  que  é ser  um  viciado!  Cara!  tô  afirmando  pra  vocês:  eu  não  sou nenhum dependente!  Então,  que tratamento vocês vão fazer?
- Todos os viciados que passam por aqui começaram com a maconha e as bolas.  E agora  estão nos picos.
—  Problema  deles.  Pico  não  é  o  meu  caso  e  nunca  será. Podem olhar meus canos,  não tenho uma marca.  Se eu tomasse pico,  tá  certo,  vocês  podiam  me  classificar  como  viciado,  dependente, caso eu não passasse sem uma picada. Mas maconha... a maconha faz menos mal que  o  cigarro  comum.
- É  o que você  diz.  Os  estudos médicos dizem outra coisa. Agora vou lhe aplicar uma injeção  e você  vai  dormir um pouco.  Não precisa ficar com medo!  Meu nome  é Marcelo.
— disse o enfermeiro negro.


Que  medo!  eu  não  acreditava,  era  um pesadelo...  Só  podia ser  u m  pesadelo  —  eu,  internado para  fazer  tratamento  por fumar maconha...  Se eu tomasse pico, cocaína, tá certo. Mas eu não tomava,  mal  tinha cheirado  uma  ou  duas vezes.  Só porque fumava  maconha?...  As  vezes  eu passava  semanas  sem  colocar um  fininho  na  boca.  Qual  é?  Maconha  não  vicia  ninguém,  e, quem disser o contrário,  eu desafio a provar que maconha vicia. Preparada a injeção...  uma cavala! Braço no suporte, palmadinhas para despertar a veia,  e a picada.

-  Cara,  não  tem  nada  a  ver  esse  internamento...  Eu  não... vou...  fi...

— E não vi mais nada. Acordei no dia seguinte, tenta­va raciocinar...  tonto pelo  efeito  da injeção!  Estava num quarto cinza-claro.  Um pijama azul de bolinhas.  Não  era meu.  Levantei, fui até a porta.  Ao  abri-la,  dei de cara com um pessoal sentado  às  mesas,  tomando  café.  Todos  me  olharam,  uma  nova atração.  Queria ir ao banheiro,  meu pênis estava duro,  fato  que chamou mais a atenção de todos. Encabulado,  tentei esconder o meu estado.  Perguntei onde era o banheiro,  um cara com ar de gozação informou.

O  pavilhão  era  grande  como  um barracão.  Lá  estava  a  sala com as mesas,  em frente  ao  quarto  em que  eu  dormira.  Caminhando  em  direção  ao  fundo  do  pavilhão,  havia  um  corredor com quartos  dos  dois lados  e  mais  uma  sala grande  com mesas compridas,  como  as  de  festas  de  igreja.  Passando  essa  segunda grande sala,  havia um corredor com mais  quartos  de  cada lado. 
As  portas  dos  quartos  tinham  uma  pequena  abertura  em hori­zontal,  que permitia ver o interior.  O banheiro era do tamanho dos  quartos,  com  vaso  e  chuveiro,  uma  pia  de  rosto  e  um pequeno espelho na parede.

Tomei  café,  sem  importar-me  com  os  outros  que  ali  estavam.  Estava  querendo  entender  a  fria  em  que  me  encontrava.

Matutava  com meus botões.  Sentia  os  olhares,  querendo interrogar.  Fui  o  último  a  levantar  da  mesa.  Os  outros  tinham  ido para  o  fundo  do pavilhão.  Após  aquele  café  com  cevada  e  pão, fui levado  a outra sala, a das mesas grandes.  O enfermeiro abriu uma porta e mandou-m e sair.

Saí para um pátio de uns 20 por 20 metros, cercado por um muro de uns 5 metros de altura. Vi outros internos,  que não estavam às mesas,  em frente  ao meu quarto.  Mais pareciam mendigos maltrapilhos.  Ficavam isolados dos outros num canto próximo  aos banheiros do pátio.  Nesse canto havia um telhadinho, parecendo  uma  churrasqueira  de  parque.  Aquele  grupo  estra­nho  ali  ficava.  No  meio  do  pátio  havia  um  pouco  de  grama, onde alguns deitavam-se.  Encostei num canto do muro branco, observando aquele cenário  de filme de terror.

O  que  mais  me  chamava  a  atenção  era  aquele  grupo,  no canto coberto...  tinha um sujeito enorme, forte, meio gordo ou inchado,  com um  corte  de  cabelo  estilo  militar.  Não parava  de balançar a mão  direita e virava a  cabeça  de um lado para  outro. Era  uma  figura  assustadora.  Outro  sujeito  corria  de  um  canto para outro, soltando um tipo de  grunhido.  Havia alguns com as calças molhadas e sujas, devia ser urina e fezes. Um outro escorregava  andando  com  o  corpo  e  o  rosto  encostados  na  parede, parecendo  querer entrar,  fazer parte daquela parede,  esconder-se de todo,  misturar-se com o  concreto.

Era uma visão triste:  aquelas pessoas reduzidas àquilo.  Eram pessoas sim,  seres humanos,  mas pareciam feras torturadas,  agoniadas,  com  alguma  coisa  mordendo  seus  corpos  e  rasgando-lhes também a alma.

Os  que  haviam  tomado  café  comigo  pareciam  normais  e não  estavam em farrapos,  como  aqueles lá  do  canto.  Havia  ouIros malvestidos ou sujos,  esparramados na pouca grama. Mas os daquele  canto  eram  diferentes,  pareciam  a  degradação  de  uma raça sobrevivente  de  uma  guerra nuclear.  O  desespero  em seus olhares, o medo em seus atos...  a individualidade em suas fanta­sias,  apenas  quebradas  p o r  algum  ato  de  violência  de  um  para com o  outro.

Aquele  canto  era  qualquer  coisa  diabólica.  Como  se  o demônio  tivesse  o  comando  de  suas  mentes,  nelas  derramando sua  ira  e  divertindo-se  em  atormentá-los.  Aquilo  era  satânico: pessoas  urinadas,  defecadas,  revirando  os  olhos,  cabeças, que­rendo  entrar  dentro  do  concreto.

Todo  aquele  tormento  só podia  ser  comparado  ao  inferno.  Se  ele  realmente  existe,  sem dúvida eu estava vendo um pedacinho dele, ali naquele canto,  o canto dos malditos...

O conceito geral daquele pátio  é uma grande jaula,  onde as feras ficavam, umas deitadas, outras sentadas em diversos lugares, os olhares perdidos horas e horas, olhando não se sabia para on­de. Todos mantidos  escondidos,  como  animais  contaminados  e que deviam ser trancados  em algum lugar.  E  o lugar era aquele pátio. Não sabia o que fazer... tudo ao meu redor, não! não esta­va acontecendo,  era  um  pesadelo,  meu  Deus!  Aquelas  pessoas não eram reais...  eu tinha que acordar!...  A angústia começou a tomar  conta  de  mim...  eu  não  estava  ali,  eu  não  queria  ficar ali!...  meu Deus,  que lugar era este?!

— Ei!  você  é o enfermeiro?
— Sou - respondeu, com um livro na mão,  roupas comuns e sentado  numa  cadeira,  perto  da  porta  que  dava  acesso  ao  inte­rior do pavilhão.
—  Olha,  eu  não  estou  entendendo  nada.  Ontem  eu  falei com um outro enfermeiro, não falei com médico nenhum, não sei o  que  estou fazendo  aqui  dentro.  Quero  ir embora!
 — gritei desesperado.
— Você vai falar com o  médico.  Daqui a pouco  ele vai chegar, fale com ele
— disse sem dar a mínima.

Agoniado, fiquei rodando pelo pátio. Não ousava chegar per­to  daquele  canto.  Remoía-me:  quando  ele  chegar,  eu  explico.

— não sou viciado, não tenho necessidade de drogas.  O senhor pode fazer os exames que quiser! Foi um equívoco de meu pai. Eu não preciso ficar aqui dentro, rodeado por pessoas horríveis.
Quando  o médico  chegou,  meu coração  disparou.  Dependia dele continuar naquele lugar pavoroso... dependia exclusiva­mente de mim mostrar a ele que eu era uma pessoa normal. Ao entrar  no  pátio  foi  imediatamente  cercado  pelos  internos  que haviam tomado  café  em frente  ao  quarto  onde  eu  dormira.  Os do  canto  nem  tomaram  conhecimento  do  ilustre  personagem.

Aproximei-me.  O  enfermeiro  do  pátio  falou  alguma  coisa  ao seu ouvido  e ele me olhou. Estendi-lhe a mão  em cumprimento.  Tocou  apenas  nas  pontas  dos  meus  dedos  como  se  eu  fosse contaminá-lo.  Disse-lhe  que  queria falar-lhe.  Abanou  a  cabeça positivamente,  entreteve-se  em  seguida  com  o  grupo  ao  seu redor e,  rapidamente,  saiu do pátio.

— Enfermeiro,  eu quero falar com o médico.
— Se precisar,  ele  chama!
— Com o  assim? Eu quero falar com ele.  Não  é  se ele precisar! Eu quero falar com ele. Ele não pode simplesmente me deixar preso aqui  dentro. Eu  exijo falar com ele.
— Aqui dentro, você não  exige nada! E se precisar,  ele manda buscá-lo respondeu, já.
— Então,  eu quero falar com meu pai!
— A sua família você só verá daqui a quinze  dias.
— Quê,  quinze dias? Eu não vou ficar aqui dentro todo  esse tempo,  não,  de jeito nenhum.
—  Olha,  coloca  na  sua  cabeça  que  você  está internado,  esse é o fato.  Você  está em tratamento.

—  Tratamento  de  quê?  Vocês  simplesmente  me  prenderam aqui  dentro.  Ninguém veio me  examinar pra ver se sou  ou não um  viciado.  O  médico  chega  aqui,  dá  uma  olhada  geral  em todo  mundo  e sai.  Qual é,  que lance  é esse?!

- Cara,  eu não  tenho  que lhe  dar explicação nenhuma. E  é melhor você  ficar  calmo  para  o  seu  próprio  bem.
—  continuou nervoso  com minha insistência.

Não  adiantava.  O  cara  era  radical.  Perguntei  a  ele  se poderia falar com o médico  de tarde.  Só amanhã ele  estará de volta!, respondeu seco.  Que merda ficar aqui,  eu não quero.  Os pensamentos começavam a  se  atropelar  em minha mente.  Não  con­seguia  coordená-los:  ontem ,  meus  estudos, vestibular,  minhas aulas...  é  um  pesadelo,  meu  Deus,  isto  não  está  acontecendo, não  pode  ser real...  Estou  preso  ao  canto  dos  loucos  cagados, que  merda!  tenho  dezessete  anos  e  estou num hospício.  Não  é real, meu Deus!  Pai... por que você fez isso comigo? Achar ma­conha...  não sou  viciado!  não  prova  nada,  ignorância  sua,  pai. Eu,  dentro  de um lugar desses...  e meus estudos?  Se  tivéssemos conversado, pai,  eu lhe provaria que não sou viciado...  não  sou, pai!  Não precisava me trazer para cá.  Por que não conversamos, pai?  Por  que  não  conversamos,  porra?!  O  médico  nem  sequer me  olhou  direito,  vão  me  tratar  do  quê?  Eu  não  quero  ficar aqui. Eu vou fugir.  O muro  é alto demais, somos mais de vinte, seria fácil dominar aquele bundão, mais uns três e seria... Aquele c:>ra com um gibi parece normal,  talvez ele tope...

-  E  aí,  tudo  bem?  —  perguntei  imaginando  qual  seria  sua reação, pois todos  que  estão internados eram loucos!
-  Tudo  bem,  senta  aí!  —  falou  com  o  gibi  levantado  para tapar o sol.
- Tá aqui há muito  tempo?
- Dessa vez,  faz cinco  meses.
- Cinco  meses,  aqui  dentro?  Com o  é  que você  aguenta? - Isso me pareceu uma eternidade.
- Só  penso  em ir  embora desse inferno! Já não  dá mais pra aguentar esses internamentos.
- Quantas vezes você já foi internado?
- Já perdi até as  contas — abaixando a cabeça.
- M eu nome  é Austry,  e  o  seu?
— Rogério.
— Você  tá sacudo  de ficar aqui dentro,  eu tô  só  há um dia  e pouco  e já  não  aguento.  Só  tem  um  vigia  aqui  no  pátio,  com mais uns dois a gente podia dominar o cara e pinotear daqui, em dois toques...
— Nós só  chegaríamos à parte interna do pavilhão!
— Por quê?
— Ele  só  tem a chave  daquela porta.  As  outras  chaves  ficam com  os  outros  enfermeiros.  Isso  aqui  ficaria  em  pouco  tempo cheio desses gorilas...  é bobeira!
— Bobeira é ficar aqui  dentro! Eu não  estou aguentando...
— Cara,  se acalme!...  senão você vai pra Tortulina.

— Tortulina,  o que que  é isso?

— E  uma  injeção  de  Haloperidol  que  lhe  aplicam  no  músculo.  Você fica igual àquele cara grandão,  lá no  canto:  babando e revirando a cabeça. A porra dessa injeção repuxa todos os nervos.  E  como  íngua  dando  em vários  nervos  ao  mesmo  tempo, cara...  O efeito dessa injeção retorce todo o corpo.  Dói pra dia­bo  essa  droga  do  capeta!  Eles  aplicam  nos  pacientes  que  estão exaltados,  é  uma  forma  de  controlá-los,  pois  ficam  completamente sem ação física.  Por isso,  se acalme de vez...  senão,  te levam pra enfermaria e te aplicam a droga.

— Então!...  p o r isso o  enfermeiro falou daquele jeito...  Esses  caras  aqui  dentro  não  querem  ser  incomodados. Quem os incomoda, logo eles dão um jeito do cara entrar numa por bem ou por drogas.

— Deu pra perceber,  não  tem meio-termo...
— Tem o que eles querem. Você chegou ontem, nunca este­ve internado antes?
— Nunca e até agora não  aceitei que  estou aqui.
—  Cara,  isto  aqui  é  pior que  uma prisão  de  verdade.  E,  em muitos  sentidos,  tão  ou  mais  perigoso.  Essas  drogas  que  somos obrigados  a  tomar  são  um  veneno  que  nos  mata  em  poucos 
anos.
— Até agora só tomei uma injeção do tamanho de uma cava­la e dormi até hoje.
— Você  tomou  a  “três  p o r u m ”,  como  nós  chamamos.  Por que  te internaram?
— Meu velho pensa que sou viciado.
— E você é?
— Pelo  que  entendo,  viciado  é  aquele  que,  quando  o  organismo  está sem droga, parece sentir uma sede danada.  Isso  é ser viciado.  O  meu  caso  era  apenas  uns  peguinhas  na  maconha  e 
umas bolas, mas não tenho dependência nenhuma. Podem fazer os exames que quiserem.
— Cara,  teu velho é um mal informado.  Se  ele queria evitar que você tomasse  realmente  drogas, ele te  trouxe  ao lugar mais errado  do mundo,  pois aqui  dentro nós somos drogados  diaria­mente. A sedação aqui é feita em massa.  Tomamos mais de vinte comprimidos diários.
— Até agora não tomei nenhum comprimido.
— Mas não fique impaciente,  aqui você come comprimidos. Nós  acordamos  tomando  essas  drogas  e  dormimos  tomando essas drogas.
— Esse médico...  quem é?
—  Esse  médico  é  um  verdadeiro  psicopata.  Chama-se  Dr. Alaor  Guimont,  catedrático  em  Psiquiatria,  professor  em  uni­versidades,  um  dos  diretores  deste  “laboratório ”  chamado Sanatório Bom Recanto.  Tem setenta e dois anos e se você cair na mão  dele,  xará,  ele  com certeza irá te  queimar todos os  chifres... E  o maior sádico  que  tive  o  desprazer de  conhecer.
— Cara, você  é fã dessa figura...  O  que é queimar os chifres?
— Eletrochoque.  Choque,  meu irmão!
- J á ouvi falar nesse troço,  mas isso  é pra louco...
— E  o  que  você  acha  que  somos?  Esse  filho  de  uma  cadela pesteada vive com a maquininha de eletrochoque na mão. Acho que  ele até dorme  com ela.
— Mas  eu não  sou louco.
- Tá aqui dentro! Pra todo mundo lá fora você não passa de um louco...  Isto  aqui  é  um hospício,  cara!  E  começa  com  esses interesseiros  que dizem tratar da gente.

- Por que você diz isso? E você tá aqui por quê?

-  Cara,  estou  aqui  porque  sou  dependente.  Tomo  e  vou continuar  tomando  cocaína.  Esses caras  aqui  não  curam  nem bêbado.  Nunca viram nem uma quina de maconha,  não enten­dem  nada  sobre  vício,  tanto  é  que  você  está  aqui  dentro ... Agora,  no meu caso,  tá certo. Eu preciso de um verdadeiro tratamento, não o que eles fazem aqui dentro. Enchem-me de barbitúricos  e  queimam  os  meus  chifres  com  eletrochoque.  Cara, que tratamento  é esse?

- Eletrochoque em viciado?
- Por isso eu tenho certeza, se o Dr. Alaor pegar a tua ficha, você vai entrar nessa na certa.
- Como,  se  ele nem falou comigo ainda?
- O  que  você  está  esperando?  Q u e  ele vá conversar conti­go? Você realmente tá louco!
- Não  tô  entendendo...  como assim?

- Cara, você tem visto muita televisão. Essa de divã pra você deitar e falar, só em filmes ou em clínica particular, que são uma verdadeira suíte  de  hotel cinco  estrelas.  Aqui você não passa de uma ficha, e sua entrevista,  a consulta com o psiquiatra, você já fez.  Foi quando ele visitou o pátio. Aquela foi a sua consulta.  O tratamento vem através da tua ficha.

- Mas que tratamento  é  esse?

- E o que o teu dinheiro pode comprar. Se você tivesse gra­na,  você estaria numa clínica particular.
-  Mas  como  um  médico  psiquiatra  pode  medicar  sem,  ao menos,  conversar com o paciente?
-  Caiu  aqui  dentro,  você  não  é  mais  dono  de  si.  Fazem  o que  quiserem contigo,  tua ficha já tá  cheia de informações  que teu  pai  preencheu.  Está  como  viciado.  Só  vão  examinar  o  teu coração  e derreter os teus chifres. E foda!
— Aí,  cara,  vou rodar um pouco.

Rogério  não  estava  sendo  nada  agradável  com  esse  papo. Ao contrário, estava me deixando cabreiro. Ele já podia ser con­siderado  um  freguês  de  hospício.  Saía  e  voltava.  Mas  era  uma fonte  de informações.  Verídicas?  O  tempo  diria...

—  Cara,  e  os  exames?  Eles  não  vão  fazer  pra  saber  se  sou dependente?
— Exame!  pra ver se você  é dependente  de maconha?  Isso  é papo  furado.  Não  existe  tal  exame.  E  o  cara  que  disser  que  é viciado em maconha,  eu mando  ele ir caçar marido,  e dar até o zóio  cego  ficar  rosinha.  Maconha  não  vicia  ninguém,  xará.  A única coisa que ela faz é deixar você fissurado pra querer entrar na onda que ela causa. Agora, se não pintar, tu toma uns conha­ques  e  faz  a  cabeça  do  mesmo jeito .  E  diferente  de  quem  é viciado em coca, não tem outra coisa que te faça a cabeça.  Tem que ser somente  o pó-de-anjo.  Só  ele acaba com a violenta fis­sura. E muito diferente. E as porras desses caretas não enxergam essa tremenda diferença.  Pra eles tudo  é viciado.

— Com o  é  que você tem tanta certeza?  
—  Cara,  teve  época  em  que  eu  tinha pacotera  de  maconha. Fumava direto. U m baseado a cada meia hora.  Cheguei a empapuçar  de  tanto  fumar  essa  droga.  Fiquei  com  uma  aversão  ao cheiro da maconha, que hoje me faz vomitar.  Não suporto nem mais o  cheiro  da maldita.
— Então a maconha não te fazia mais a cabeça,  e você partiu pra drogas mais fortes,  foi isso?
—  Cara,  ninguém  toma  cocaína  porque  a  maconha  deixou ou  não  deixou  de  fazer  a  cabeça.  Esse  é  outro  papo  furado, outro  tabu  da  ignorância  das  pessoas  que  não  entendem  nada sobre maconha ou cocaína.  Esse papo  de  que se  começa com a maconha  e  depois  tem  que  se  recorrer  a  drogas  mais  fortes  é pura  fantasia.  O  lance  de  querer  uma  droga  mais  forte  é  uma questão  de  cabeça e conhecimento do assunto...
— Então,  por que você  começou com o pico?
-  Comecei  com  dezesseis  anos  a  tomar  pico.  Não  porque alguém  me  obrigasse  ou  tenha  viciado.  E  sim  porque  essa  é  a fase  mais  carente,  p o r  insegurança,  p o r  fuga,  p o r  angústia  da adolescência.  E  também por ingenuidade  e falta de  real  conhe­cimento  do  que  é  a coca  e  dos  seus  efeitos.  Esses  são  os verdadeiros  motivos  que  nos  levam  ao  vício.  Tudo  o  mais  é  papo 
furado.
- Você falou ingenuidade. Eu comecei a fumar com quinze anos,  tive oportunidade de tomar pico  e não  tomei!
-  Cara,  eu  tô  com vinte  e  dois  anos.  Há seis  anos  as  coisas eram diferentes.  Hoje,  1974,  ainda não  existe  em todo o Brasil um hospital especializado  em tratamento  de viciado.  E  se você quer saber,  vão  mais  trinta  anos.  A  ignorância  sobre  as  drogas irá continuar,  porque  este país  é atrasado  e manipulado.  O  governo  é  o  maior  cúmplice  do  vício.  D e  repente,  o  pessoal  do 
governo  não quer que  o vício acabe.  Não  existe a liberdade  de se falar abertamente sobre  as drogas.
-  Mas  o  combate  às  drogas  é  violento.  Trafica  pega  uma cana federal.
- Cara,  você  não  está entendendo  o  que  eu  estou  dizendo! 
Quanto mais mistérios fizerem sobre as drogas mais o baseado se torna  uma  coisa  misteriosa  e sedutora.  E  o  pico  de  cocaína,  o êxtase  dos  êxtases.  E  as  grandes  manchetes  sobre  apreensão de drogas mais admiradores atraem,  e mais trafica na área criam.
- Então,  como  e o que fazer?
-  Conscientizar  os jovens.  E  aquele  lance.  Vou  falar  sobre cocaína,  que  é o  que realmente vicia.  Q u em tá dentro quer sair e  quem  tá  fora,  p o r  curiosidade  e  falta  de  conhecimento  dos efeitos da cocaína,  quer entrar. Por acaso você sabia que a maio­ria  dos  bolivianos  que  transam  com  cocaína  não  tomam pico? Porque  eles  conhecem  o  efeito  da  droga.  Cheiram  de  vez  em quando, mas nunca colocam nas veias. Eles conhecem os efeitos da  droga.  O  que  não  acontece  com  a  nossa juventude,  que  se empolga simplesmente pelo  barato  que  ela  causa.  O  fabricante boliviano  ensina até às  crianças os  efeitos  da  cocaína,  mostra  os efeitos.  É isso que se tem que fazer...
- Concordo  com você.  Eu só não tomei umas picadas por­ que  tive  medo.  Conheci  uma  mochileira  da  Bahia.  A  gata  só tinha  as  duas  presas  na  boca:  a  coca já  tinha  feito  cair todos  os 
dentes  dela.  Só  sobraram  as  duas  presas.  Ela  só  tinha  dezoito anos.  E  os braços eram uma ferida só.
- E por aí...  Tire uma foto  da boca dela,  faça uns  outdoors e espalhe  pela  cidade  com  letreiros  assim:  “TOME  COCAÍNA, ENCOMENDE  SUA  DENTADURA.”  Esse  seria  o  verdadeiro combate  às  drogas.  Talvez  alguém  tenha  essa  ideia,  também mostrando os braços.

Rimos.  Mas  o  Rogério  tinha  razão.  Para  muitos  da  minha idade  a empolgação  diminuiria com certeza.  Eu,  se fosse presi­dente,  faria isso: liberaria a maconha e faria os  outdoors.

-  Concordo  com  você.  Liberar  a  maconha  e  fazer  os  outdoors.
- Pensando  só  em você!  Maconha  é  o  mesmo  que  o fumo de  cigarro  comum,  os efeitos  são  os mesmos, ao longo  do  tem­po  ou até maiores para quem fuma cigarros  comuns.  Essas pessoas têm mais facilidades  de ficar com certas doenças  do  que  os que não fumam.
- Isso  deveria aparecer na televisão.  Co m pessoas que transam  essas  drogas,  nós,  os  usuários.  Muito  se poderia  esclarecer. Mas deixam tudo  às  escondidas.
- Isso,  meu  chapa,  só  daqui  a cem anos!  Essa de  colocarem nas  ruas  o  assunto,  vai  ser  difícil.  Preferem nos jogar dentro  de hospícios ou em prisões.  Eu já estou cansado disso, qualquer dia acabo com esse martírio,  de entrar e sair desses hospícios.  Tomo uma  over e  fim.  Aqui  dentro,  só judiam,  graças  à ignorância.  E melhor uma  over e ponto final. Aquelas palavras  doeram lá no meu  íntimo.  Rogério  estava cansado,  vinte  e  dois  anos  que  pareciam  trinta.  O  que  ele já linha  sofrido,  só  ele  sabia.  Abaixou  a  cabeça, já  com  sinais  de calvície,  rosto  redondo,  moreno  claro,  bigode preto  ralo,  e  entreteve-se  em  seu  ser  sofrido.  Nada  falei,  calei  olhando  aquele 
canto.  Fomos  interrompidos por um grito.

— Cambada!  O  os remédios! — gritou  o  enfermeiro bundão.

Trazia  uma  caixa  com  divisórias,  colocou-a  em  cima  da cadeira. Alguns  internos  o  rodearam,  enquanto  ele  ia  tirando  copi­nhos  plásticos  com  os  comprimidos.  Chamava  o  nome  e  os virava  na  palma  da  mão  do  sujeito.  Alguns, já  com  canecas  de alumínio  amassadas  e  com  água,  tomavam  e passavam  a  caneca ao  seguinte.  Esvaziadas as canecas,  iam buscar mais água naquele  canto.  Num  relâmpago,  enchiam  as  canecas.  Os  indiferentes daquele  canto  se  perturbavam  com  as  presenças,  mas  logo  se entregavam às suas fantasias. Surpresa foi a hora em que o enfermeiro,  gaguejando,  chamou pelo meu nome.  Uma zero para o Rogério...  sem  ao  menos  um  olá  do  famoso  psiquiatra,  eu já estava  sendo  medicado.  Talvez  esses  psiquiatras  sejam  também algum tipo  de bruxo  e tenham uma bola de  cristal...Peguei  os  comprimidos:  ao  todo  eram cinco  e uma cápsula vermelha.  N o resto de  água eu os engoli.  Após o  grupo  dissolver-se  o  enfermeiro  tentou  dar  para  alguns  daquele  canto  os comprimidos.  Uns os apanhavam sem problemas,  a outros nem foram  oferecidos  e  alguns  recusavam.  Os  comprimidos  que sobraram  foram  pisados  pelo  enfermeiro.  Achei  u m  absurdo aquele desperdício,  mas talvez mudasse  de ideia! Pouco  depois dos  comprimidos,  a porta que  dava acesso  ao interior  do  pavilhão  foi  aberta.  Deviam  ser  umas  onze  horas. Chamada para o almoço.Entraram,  atropelando-se  pela  porta.  Fui  um  dos  últimos.

Dentro,  nas  mesas  compridas,  pratos  de  alumínio,  na  maioria amassados,  envelhecidos,  sem  a  tinta  do  fundo,  e  colheres.  Os maltrapilhos,  mal-encarados, já  estavam  sentados.  Os  do  canto, em  pé,  correndo  pelo  corredor  dos  fundos,  escondiam-se  no escuro,  gritando.  Além  da  confusão  que  faziam,  o  mau  cheiro completava  o  cenário.  Alguns  urinados,  outros  cagados,  que cheiro.  Assim eles comem.

Chocado, procurei sair daquela sala, rápido. Percorri o  corredor.  Em  outra  sala  vi  mesas  para  quatro,  com  toalhas  xadrez, pratos  brancos  de  louça,  colheres  também.  Tudo  limpo,  até  os 
pacientes.  Fui direto para meu quarto,  sem apetite.  Tudo  ali era novo  e assustador...  nó na garganta...  de bruços,  cara no lençol, o  nó vira vontade de  chorar. Rogério  veio  me  buscar.  Sentamos  à  mesma  mesa.  Pela porta  da  liberdade,  entram  panelões:  arroz,  macarrão,  feijão  e 
carne.  Os  dois  enfermeiros  serviam  a  todos,  faziam  os  pratos, iodos cheios acima da boca.  Apetite não faltava,  comiam como gulosos.  Todos  servidos,  levavam  as  panelas  para  a  outra  sala. Mal toquei o prato, não tinha fome, encostei o prato.  Comentei com Rogério:

- Os lá  de  trás...  como  eles  conseguem  comer com os  outros cagados ao seu lado?
-  Cara,  é  melhor  você  não  esquentar  com  o  que  vê  aqui dentro.
- Os pratos deles são  de alumínio.
-  Se  fossem  de  louça  poderiam  se  machucar.  Estão  a  toda hora se agredindo.
- Vocês...  parecem que não  comem há dias?!
-  São os remédios para abrir o  apetite.

Não tinha fome.  Meu prato não  ficou sem assistência,  logo foi pedido.  Após  o  almoço,  todos  aos  seus  quartos.  Deitar para fazer a digestão.  Essa de irmos deitar após o  almoço pareceu ser uma  ordem  aos  da  sala  em frente  ao  meu  quarto.  Os lá  de  trás ficaram perambulando pelo corredor,  em correrias e grunhidos. Deitado  em  minha  cama,  a  porta  do  quarto  semi-aberta,  vi  o enfermeiro negro  surgir.

- Tudo bem, Austry?
- Nem tudo.
- Por quê?

Entrando,  sentou-se na cama,  ao lado dos meus pés.

— Porque não  consegui falar  com  o médico!  Não  sei o  que estou  fazendo  aqui.  Meu  pai  não  tem  dinheiro  para pagar  esse tratamento bobo.  Não sei de nada...

— Você não falou com o médico porque seu pai já falou com 
ele...
— explicou calmo.

—  O  que  meu  pai  acha  é  uma  coisa.  O  médico  devia  con­versar comigo.  M e  examinar,  fazer qualquer tipo  de  exame pra ver se tem necessidade de eu fazer esse chamado tratamento. Eu estou pra fazer vestibular,  como é que ficam meus  estudos?

—  O  Dr.  Alaor  Guimont  é  um dos  melhores  psiquiatras  do Paraná. Só em vê-lo ele já o analisou. Ele é o seu médico, é bas­tante  experiente.

— Ele é também adivinho...  olhou-m e p o r uns segundos e já soube que sou viciado...  Qual é, Marcelo? é esse o seu nome? E outra, já estou tomando comprimidos.  O homem ,  além de adi­vinho,  deve  ter  uma  bola  de  cristal,  só  pode  ser isso.

- Riu  da maneira  como falei.

— Você está aqui pra sair do vício.  Q u em m andou se encher de porcaria por aí  e  quebrar tudo  em casa?
— Com o é que é?...  quebrar tudo em casa?!  Isso  é mentira... Lembrei-me  que quando  eu queria sair  e  às vezes os velhos se  opunham,  fazia um escarcéu  dentro  do meu  quarto,  chutan­do  meu  guarda-roupa.  Jogava  algumas  coisas  ao  chão  e  saía assim  mesmo.  Encontrando  m aconha  na  m inha jaqueta,  eles somaram:  dois mais dois igual a cinco...  são as drogas que fazem ele  agir  dessa  maneira!  Não  tiveram  a  consciência  de  analisar  a rebeldia da adolescência. A desinformação sobre as drogas, sobre o  que  Rogério  e  eu  conversamos.  E  as  manchetes:  “Drogado maconheiro mata a mãe para comprar maconha...”  “Maconhei­ro  coloca  maconha  dentro  de  balas  para  viciar  crianças...”  Ab­surdos  dessa  natureza  dominam  a  ignorância  popular  sobre  as drogas. Meus pais fazem parte dessa grande massa popular mani­pulada  por  informações  absurdas  que  acreditam  ser  possível

colocar fumo  de  maconha misturado  com açúcar em forma de balas  a  serem  dadas  para  criancinhas  chupar  e  se  viciar.  E  o cúmulo  do  absurdo,  mas  a  grande  maioria  acredita.  E  graças  a essas  fantasiosas  manchetes,  a  obscuridade  sobre  o  assunto  das drogas na sociedade persiste...

—  Bem,  isso  é  o  que  seu  pai  colocou  na  ficha...  que  você inda  muito  nervoso,  desobediente  e  agressivo  com  todos.  Eu não devia nem lhe contar isso!
— Mas isso não prova que  eu sou viciado.
— Com o não? Se você não escuta ninguém, quer fazer o que lhe vem à cabeça...  algum problema você tem!
—  Posso  ter  algum problema,  menos  ser viciado.  Sou  meio revoltado com... nem eu sei o quê. Agora, com drogas, não tem nada a ver.  Façam exame de sangue, sei lá o quê, mas vejam que 
não preciso de tratamento  nenhum!
— Não sei a sua história, só sei que você vai ser tratado pelas drogas que tom ou lá fora.
— Vão me  tratar me dando mais drogas aqui dentro.
— Mas aqui são todas bem administradas.
—  N um a ficha.  Pois  ninguém  me  tira  da  cabeça  que  vocês, pra  começarem a  me  dar medicamentos,  deveriam no  mínimo fazer alguns exames.  E também o psiquiatra devia ter ao menos 
conversado comigo.

— Você parece ser mais velho, Austry.
— Talvez a rua envelheça a gente  mais  cedo.  Você  disse  que o Dr. Alaor Guimont vai ser o meu médico. E esse papo que eu ouvi de eletrochoque em viciado?
— Mas você não é viciado...  ou  é?
—  E justamente  por  isso  que  eu  quero  que  vocês  façam  os exames  que  quiserem,  antes  de  me  queimarem  os  chifres.  Pô, Marcelo!  me  dê  essa  força,  fale  com  o  médico,  explique  a  ele que foi um mal-entendido  do meu pai.  Explique pra ele!

— Austry,  eu não posso fazer isso,  ele  é o médico.  Mas você não precisa ficar com medo de nada, aqui ninguém vai lhe fazer mal.  Agora descanse do  almoço.Saiu,  fiquei  com  meus  botões.  O  que  iriam  fazer  comigo?

Essa porra de eletrochoque.  Rogério tem verdadeiro pavor. E se esse  médico  do  peru  resolve  me  aplicar  essa  droga  de  choque, como  será  que  é?  A  possibilidade  do  choque  começou  a  p er- 
turbar-me.  O pavor que o Rogério tinha. Marcelo saiu e não tocou no assunto.  Eletrochoque. Ai, meu Deus! livrai-me dessa.

Agoniado,  o  nó  na  garganta...  (que  merda!  quero  chorar, mas não consigo). Reviro-me na cama-colchão de palha...  que­ ro pensar em outra coisa.  Este quarto,  olho  os detalhes:  o vitrô, não  são  barras,  são  armações  de  ferro...  as  paredes  cor  gelo,  as portas cinza-claras. Vira tudo cinza quando acordo de manhã. A porta também tem uma pequena abertura,  em sentido horizontal.  Levantei  o  colchão,  examinei  a  armação  do  estrado...  todo aramado,  e  o  criado-m udo  de  latão,  ou  sei  lá,  verde-abacate, com  uma pequena  gaveta  e  uma  abertura  maior  embaixo,  para as  roupas.

Algumas roupas  minhas  estavam  ali  naquela  abertura do  criado-mudo.  Estava ainda com aquele pijama  azul  de  boli­nhas brancas. O  teto...  uma  agonia  faz  correr  o  m eu  sangue,  escuto  as batidas do meu  coração.  Será que minha turma virá me visitar?

Que sacanagem! uma simples consulta com um psicólogo evita­ria  esse  martírio  todo.  Era  um  martírio  ficar  num lugar  desses um  dia,  que  dirá,  como  o  Rogério...  cinco  meses!  Visitas  só 
daqui  a  quinze  dias,  por  quê?  Deve  ser para  a  gente  se  acostu­mar  a ficar  aqui.  Nem  com anos  e  anos  eu  vou  me  acostumar num lugar nojento  como  este.  U m  barulho  despertou-me  dos meus pensamentos.

A  porta  estava fechada,  não  trancada.  Vi  olhos na abertura de  uns  cinco  centímetros,  depois  a  figura  assoprou  no  buraco. Saiu.  Não  dei  bola.  Novamente,  o  assoprão.  Levantei  e  fiquei do lado da porta.  O utro assoprão. Abri a porta rápido. U m cara, cabeça  chata,  paraíba,  soltou  um  sorriso  estridente  e  saiu  pelo corredor rindo. Ele tinha o rosto fino, bocudo, pele escura, não negro  e  nem  mulato,  cor  de  nortista  do  Brasil,  também  calvo, parecia  o  Amigo  da  Onça.  Não  lhe  dei  atenção,  voltei  para  a cama, com meus botões... voltei a martirizar-me, estava com dó de  mim  mesmo.  A  revolta  começou  a vir à  tona,  aqueles  assoprões recomeçaram na abertura, opinei brincalhão já estava me irritando.  Tentei acalmar-me,  mas aqueles assoprões não deixa­ vam,  levantei e tentei pegar a hiena no cio.

— Vem  cá,  seu  puto!  -  Tentei  pegar  em  seu  braço.  Ele  foi 
mais rápido e fugiu pelo corredor,  rindo.
— Ei,  ei, calma rapaz! — disse-me o enfermeiro.
— Esse cara de hiena não pára de assoprar na minha porta!
— É o Pernambuco,  não ligue,  não!...  Ele faz isso com todo mundo.  Ele só quer chamar a atenção.
— Tudo bem,  mas tava enchendo  o saco.
— Ele  é um dos mais velhos aqui dentro.  Faz nove anos que ele está internado.
— O  quê!  nove anos? Você está brincando...
— E  tem cara aqui dentro há mais  tempo.
— E os parentes?
—  Parentes?  Esses  caras já  foram  abandonados  há  muitos anos.  Eles  não  têm  ninguém  p o r  eles.  O  mundo  deles  é  aqui dentro.  Lá  fora,  eles  não  saberiam  n em  pegar  um  ônibus. Podíamos  deixar as portas abertas  e  tocar fogo  no pavilhão  que eles não sairiam.
— E  quando morre um deles?
— O sanatório faz o enterro. Este hospital é filiado à Federa­ção Espírita do Paraná e,  como caridade,  eles seguram esses coi­tados aqui dentro.  Lá fora eles virariam mendigos e morreriam.

Aos  sábados,  vocês  recebem passes  com o  seu  Abib,  que  é  um médium muito bom. — Enfermeiro falador, devia ser novato, era jovem.

— E você trabalha há muito tempo aqui?
— Há seis meses,  mais  ou menos.
— E  por  que  a  maioria  aqui  é  louco?  Tenho  visto  neguinho aqui dentro só fodido... por que estão aí, cagando em si mesmos?

O falador não respondeu,  só  deu uma piscadinha e virou-se em  direção  à  porta  da  liberdade.  Voltei  para  o  meu  quarto. Já não  queria  saber  de  mais  nada.  Q uanto  mais  conversava,  mais aquele lugar me parecia desprezível. Tudo tinha um gosto amar­go,  as  surpresas  eram desagradáveis,  cada pessoa  tinha uma  his­tória feia,  eram enredos tristes,  uns piores que os outros. Chamada para  o pátio.  Repetia-se  o  quadro  visto pela ma­nhã.  Cada  um  ocupava  o  mesmo  espaço,  aquele  canto,  alguns esparramados  pela  pouca  grama.  Tinha  sim,  uma  mudança,  o guardião era outro.  O jeito era eu também conquistar um espa­ço  e ficar coçando o saco,  naquela grande-pequena jaula.
— Rogério,  quem é aquele enfermeiro falador?
— E um estagiário.
— E  esse cão  de guarda?
— E  o Luiz,  enfermeiro  da tarde.  Gente boa.  E malucão.
— Com o assim?
— U é, fuma unzinho também...
— Será que  ele tem um baseadinho aí pra gente?
— Você acha que  ele  é trouxa? Ele já vem com a cabeça fei­ta. Ele não vai arriscar o emprego dando fumo pra paciente. Ele é esperto,  é bom malandro.
—  Porra,  todo  dia  a  transa  é  essa:  pátio,  remédio  e  comer. Não muda nunca?
— Muda sim,  nos dias de visitas  e nos  dias  de  choque.
— Vem você  outra vez com esse papo  de  choque.
— Tá legal,  quem vai ser o  teu médico?
— O Marcelo disse que é  o Alaor.  Mas  tem outro?
—  O  adm inistrador,  dizem  que  tam bém  é  médico,  mas quem mexe na cuca do pessoal acho  que  é só  o Dr.  Alaor.  Esse sádico!Eu já  estava  p ertu rb ad o , mas  q u eria  saber  mais  e,  num 
masoquismo incontrolável,  continuava a perguntar:

—  Desde  que  cheguei,  ninguém  falou  nada  de  bom  deste lugar.  Não  deve ser tão ruim como vocês estão  dizendo.
— Cara, isto aqui não é um clube de férias e nem uma clíni­ca de repouso de filme americano.  Isto aqui é u m hospício brasileiro e nós somos segurados do INPS. Você não irá ver nada de bom.
— Só  quero sair o mais rápido possível daqui!
— Austry,  não  estou  querendo  assustá-lo.  Mas  encare  a real. Você foi internado por insistência do seu pai,  ele  deve ter esperado  um bom  tempo,  aqui  as  vagas  são  difíceis.  Se  você  pensa que quando receber visitas  eles irão tirá-lo daqui,  é fantasia sua.
— Qual é, cara!? Ele vai ter que me tirar daqui!  Se os exames não derem nada,  não  tem por que  eu ficar aqui.
— Porra!  você tá parecendo u m desses Zé-Bobões.  Não vão fazer  porra  nenhum a  de  exames  em  você!  E  sabe  o  que  vai acontecer quando vierem te visitar? - falou irritado.
— Não sabia que você também é adivinho!
— Não é ser adivinho.  Você notou o apetite do pessoal hoje, na  hora  do  almoço?  Eles,  nesses  dias  em  que  você  não  pode receber visitas, irão te engordar como se engorda porco em chiqueiro...  você  vai  ter  u m  apetite  de  comer  tudo  o  que  pintar com  esses  remédios  pra  abrir  o  apetite!  Em  quinze  dias,  cara, você vai estar gordinho...
— E aí?...  não  tô  entendendo...
—  E  aí...  quando  os  seus  familiares  vierem  para  visita,  eles irão  achar  você  mais  gordo,  mais  forte,  corado,  de  aparência melhor e mais  calmo — efeitos  dos  medicamentos  tranqüilizantes.  Irão lhe  dizer que foi  ótimo  trazerem você pra cá...  Q u e  o tratamento tá sendo bom. E nada, meu chapa, nada do que você disser  eles  irão  escutar!  Cara,  esse  pessoal  é  inteligente,  são mafiosos.

—  Conheço  meus  velhos,  assim  que  falar  o  que  é  isso  aqui, tenho  certeza de  que irão me tirar...
— Vou  torcer  por  você.  Mas  não  sonhe  muito  com  isso.  A cada  visita  minha,  eu  também  penso  que  os  meus  velhos  irão me tirar,  mas não tiram...
- Mas o  teu caso é  outro,  você  é realmente viciado...
- Você tá sonhando.  O m eu caso pra eles é  o mesmo que  o seu,  somos  os  dois  viciados!  Caiu aqui  dentro,  o  tratamento  é generalizado.  N inguém  escuta  você,  você  é  um  viciado  e  está enlouquecendo por falta das  drogas.  Isso  é  o  que  representa sua figura para  eles  e a sua família.  Você  está doente,  ficando louco e...  a  louco,  n inguém  dá  ouvidos!  N ós  não  temos  nem  esse 
direito.  Se você  se  matar pra que  o  ouçam,  irão  dizer que você se matou porque  estava louco...
- Olhe,  cara,  não  dá pra ficar trocando idéia  contigo.  Você tá me deixando  muito  confuso.  Vou mijar.

Qual  é  a  desse  cara,  quer  me  deixar  maluco?  Esse  cara  só pode  estar  revoltado.  Pudera,  cinco  meses  não  são  cinco  dias!

Estava  tão  irritado  com  o  papo  que,  nem  percebi,  e  estava  no meio  dos malditos.  Em frente,  um cara que não parava de bater ovos.  Dois  metros  de  altura,  por  um  e  meio  de  largura.  Enca- 
rava-me,  tremi nas bases.  Olhando para cima,  com minha cabe­ ça um pouco acima da altura do seu umbigo, via-o mexer aque­la  mão,  virando  a  cabeça  e  os  olhos.  Parecia  um  urso  branco, pele  branca.  Com uma  patada  daquele  animal  eu  ficaria  sem  a cabeça.  Atrapalhado  na  porta  do  banheiro,  olhei  em  volta.  Os outros  crônicos  tam bém  estavam  parados  e  m e  olhando.  De imediato, fiz a volta para sair daquele meio...  antes, porém, uma mão  levou  o  cigarro  que  eu  tinha  entre  os  meus  dedos.  Não reclamei,  dei graças a Deus,  saí daquele canto.

Naquele canto,  em poucos segundos,  eu,  o intruso, percebi que  havia invadido  um  espaço  só  deles.  Com o  não  fora  convi­dado  para  aquele  espaço,  eu  os  ameaçava.  Pareceu -me  que naquele momento, no ostracismo em que viviam, todos rompe­ram suas  cascas em defesa de seus  espaços.  Espaço mínimo,  mas só  deles.  Incrível  o  entendimento,  o  respeito  que  tinham  um pelo  outro,  em  seu  espaço  e  fantasia.  Brigavam  entre  si,  pelas marcas  visíveis  de  agressões:  rosto,  braços,  pescoços  arranhados e  até  mordidos.  Formavam  um grupo  de psicopatas irrecuperá­veis,  loucos-loucos,  no sentido  da palavra,  uma pequena comu­nidade,  cada  um  aceitando  as  loucuras  e  fantasias  individuais, sem impor-se  uns sobre  os  outros.  Havia um entendimento na­quele grupo, coisa impossível de se imaginar, mas de alguma ma­neira  eles  se  entendiam,  protegiam-se  e,  o  mais  interessante, respeitavam-se.  Algo  para  os  paranormais  explicarem.  Até  carinho, eles faziam, às vezes.  Com o era possível, pessoas que não ti­nham mais nem o controle de suas funções orgânicas, que rasga­vam dinheiro e comiam merda, serem unidos daquela maneira?

Fui pedir o auxílio do enfermeiro guardião do pátio. Ele me levou até os crônicos - os goiabas ou goiabões,  como eram cha­mados.

— Tá calminho hoje, tá? E assim que eu gosto... - falou para o urso polar batedor de  ovos.
- Tô bonzinho sim,  tô sim.  Quem é  esse aí? - o urso polar falava  revirando  os  olhos  e  as  mãos  que  nunca  paravam  de mexer.
- E  um amigo  de vocês,  ele vai ficar um tempo aqui com a gente. Eu estava receoso,  todos os outros estavam me examinando.
— Mas  que não se meta comigo. “Eu,  me  meter  contigo,  Zé  Grandão?  nem  em  sonho...”, pensava eu.

Ele  não  parava  com  aquela  mão.  Revirava  os  olhos  e  às vezes  a  cabeça.  Sua  voz  de  retardado  era  assustadora.  Urinei naquele  cubículo sem janela,  o mais rápido  possível.  Ao  sair do 
banheiro  o  enfermeiro  estava  andando  de  cavalinho  nas  costas do Zé  Grandão,  o  urso branco.  Sua passividade  era ilusória,  ele era  altamente  agressivo,  um  psicopata  perigoso.  Para  acalmá-lo 
usavam  a  Tortulina,  o  Haloperidol.  Mas  fiquei  sabendo  mais :arde  que  no  Zé  Grandão  costumavam  aplicar  o  Triperidol, cujo  efeito  é maior que o  Haloperidol.

Sentei  em  outro  canto,  os  papos  do  Rogério  estavam  me cansando.  Fiquei  fumando  com  os  olhos  fechados,  naquele  sol de  fim  de  inverno.  Q u an d o  o  cigarro  chegou  à  xepa,  eu  o joguei  fora.  Dois  dos  crônicos,  que já  estavam  me  observando há algum tempo, pularam na xepa.  Em meio a mordidas e arranhões,  um  deles  conseguiu  apanhá-la  e  saiu  fumando.  Tirei  a carteira  e  dei  um  cigarro  ao  que  havia  perdido  a  disputa.  Seus dedos  estavam  m arrom -escuro  de  tanto  fumar  xepa.  Vieram outros  querendo  também  cigarros.  Dei  mais  alguns  e  procurei outro lugar.
Deveriam ser umas  três  horas  da  tarde:  chamada  dos  remédios.  Recebi  três  comprimidos  desta  vez.  Em  seguida,  vieram bules,  dois;  saco  de pães,  um.  Canecas  enfileiradas,  de  alumínio. Tudo veio em cima de uma mesinha com rodas.  Os pães somem, a  fila  pela  cevada  com  leite  é  rápida.  Todos  queriam  comer. Alguns  do  canto  tam bém  vieram  buscar  o  seu  quinhão,  não todos. O enfermeiro ia até eles entregando uma caneca e um pão para os  indiferentes.  Comiam devorando  o pão  na primeira bocada  (não  os do  canto).  Os pães  que  sobravam no  saco  eram  es­perados pelos gulosos impacientes.  Comiam e comiam, parecendo uma porcada na engorda. Mais um ponto para você, Rogério.

Após  o  café-cevada,  acendi  o utro  cigarro.  D e  imediato, alguns  crônicos  começaram  a  me  observar.  Quando  terminei, joguei  no  chão  —  a  cena  anterior  se  repetiu.  Eram  três  agora, numa  disputa  rápida  e  agressiva.  A  distância,  ficavam  à  espera, como  urubus,  esperando  a  guimba.  No  chão,  o  mais  esperto pegava.  Ao  conseguir colocá-la na boca,  não  era mais incomo­dado pelos outros  competidores. A necessidade que esses crônicos esquecidos têm de cigarro é  algo  tam bém  aterrador.  Mordem-se,  arranham-se  por  uma xepa...  homens,  numa  disputa  dessas!  Seres  humanos  ou  feras?

Em grunhidos lutam pelo grande prêmio: a guimba.  Q u e os fal­sos moralistas e insensíveis  engulam suas falsidades,  mas a grande realidade  é  que  seria um ato  de  caridade  trazer cigarros para esses  homens.  Não  trazer bolachinhas  e  doces.  Eles  necessitam de  cigarros.  Muitos  podem  achar  absurdo.  Mas  vê-los  agindo como cães agredindo-se por u m osso na certa mudaria seu pare­cer.

 Esses  tipos  de  instituições  poderiam  ter  convênios  com fábricas de cigarros e os refugos de cigarros dessas fábricas pode­riam  ir  para  esses  esquecidos.  Mas  a  falsa  moralidade  de  uma sociedade  também falsa nunca iria perm itir um convênio  desse tipo.  Preferem deixá-los  como  estão,  escondidos,  rasgando  suas carnes por umas xepas  de  cigarros.  Estaria mais  de  acordo  com as regras  da nossa moralidade:  cigarro provoca câncer.

Fim de  tarde...  bom  apenas  para  coçar,  curtindo  o peso  do nosso  m artírio  de  não  fazer  nada.  A  ociosidade  era  tediosa. Alguns jogavam  baralho,  g ru p o  fechado,  até  o  enfermeiro - maconheiro  participou.  Eram  alcoólatras,  grupo  fechado,  elite do hospício. Elite — pinguços conceituados, até um médico e um execu­tivo  da  família  Fontana,  estavam  ali  conosco.  Esse  médico  era clínico,  um  alcoólatra,  gente  finíssima.  E  o  Fontana,  como  o chamávamos,  também  o  era.  Mais  tarde  tive  o  prazer  de  co­nhecê-los.  O  Fontana,  seu nom e real de família,  era um cara de uns  trinta  e  seis  anos  mais  ou  menos.  Tinha  os  cabelos  pretos bem cortados  e  um pouco  ondulados.  Magro,  alto,  era um homem  muito  bonito,  parecia  um  galã  de  cinema.  Era  também muito  fino  e  viajado.  As  vezes  eu  o  perturbava  para  que  me contasse  suas  viagens  ao  exterior.  Passava  pouquíssimo  tempo naquele  pavilhão  dos  infelizes  e  era  logo  transferido  para  os apartamentos.  Freguês já da casa,  os enfermeiros puxavam o seu saco.  Tinha grana ou a família dele tinha.

O  médico  clínico,  não  me  recordo  de  seu  nome,  estava  ali devido  ao  alcoolismo  e  a alguma mutreta ligada  à sua profissão. Nunca ficamos sabendo  ao  certo. Novamente a chamada para os remédios. Deveriam ser qua­se  seis  da tarde.  Recebi,  dessa vez,  cinco  comprimidos  e a  cápsula vermelha.  Eram  treze  a  quinze  comprimidos,  só  nesse  dia.

Fui  apanhar  água,  lá  naquele  canto.  Rogério  me  seguiu.  Os malditos e indiferentes não se importaram com minha presença relâmpago naquele  canto.

- Austry, você já percebeu quantos comprimidos lhe deram hoje?
- J á passou de dez,  eu acho.
- Eles vão impregná-lo de remédio.  Mas comigo não, ó...
 -cuspiu-os na palma da mão e os guardou no bolso.
- Depois eu os jogo fora.
- Rogério!  você joga os  comprimidos  fora? E por isso  que 
você não sara.
- Cara,  essas  porcarias  não  curam ninguém.  Só  servem pra deixá-lo impregnado,  só isso!
- Impregnado,  o que é isso?
-  Impregnado,  xará,  é  ficar como  aqueles ali.  O  sujeito  fica vinte e quatro horas por dia viajando,  sem vontade própria,  len­to, não consegue nem ao menos desabotoar uma camisa sozinho. Tomei-os assim mesmo,  não sei por quê.
- Cara, já vi que não adianta lhe dar toques. Você é novato, daqui a uns dias você vai ver as conseqüências dessas drogas.
- Cara, até agora você só me deixou cabreiro.  Você já falou em choque,  em enganação  dos médicos,  em sei lá o quê.  Tudo que  você  falou,  até  agora,  foi  coisa  ruim.  Olhe,  sinceramente, dá um tempo!
- Austry,  eu só  estou  querendo  te  ajudar...  te preparar para o que eles irão fazer contigo aqui dentro, e você poder se defender deles...  E  só isso!
- Eu agradeço,  cara, mas você me deixa mais confuso.
- Este  pavilhão  onde  estamos,  nós  internos  e  os  enfermeiros o  chamamos  de  San Quentin.  O  nome verdadeiro  é  de  um doutorzinho,  tem a plaquinha lá fora.  Mas todos aqui o  conhecem pelo apelido de San Quentin,  o mesmo nom e de uma p ri­são fodida que tem ou tinha nos Estados Unidos.
- E  o que isso  tem a ver?
— Este pavilhão, o San Q uentin, é uma triagem. Todo m un­
do que é internado no Sanatório Bom Recanto é obrigado p ri­
meiro  a  passar  por. este  pavilhão.  Aqui  dentro,  eles  fazem  a 
desintoxicação,  aplicam  o  famigerado  eletrochoque...  fazem  o 
diabo.  Depois você  é  transferido  para  outros pavilhões.  O  cara 
que puder pagar os apartamentos vai pra lá.
—  Q u er  dizer  que  este  pavilhão,  San  Quentin,  é  a  lavagem 
da roupa suja?
— Mais ou menos isso. Este hospital funciona bem na desin­
toxicação dos alcoólatras.  Fazem uma lavagem no sujeito, soro e 
sei lá o quê.  Funciona. Mas em tratamento de viciados em dro­
gas  é um crime o que  eles fazem com a gente,  e...
— Calma Rogério,  eu não tô mais a fim desse papo.
Não  dava  para  continuar  esse  papo  cavernoso  com  o  R o ­
gério.  A porta se  abriu,  todos  entraram,  alguns se  atropelando. 
Nas mesas grandes  os pratos  de alumínio  amassados,  talvez pela 
pancadaria  que,  com  certeza,  pintava.  Tudo  se  repetia:  o  que 
virá na hora do almoço?
Jantei,  não  comi  até  o  fim.  O  televisor,  que  ficava  numa 
prateleira na parede,  na nossa sala,  após o jantar era ligado.  Não 
me  interessei,  fui  para  o  quarto.  Em  to rn o  das  vinte  e  uma 
horas,  outra  chamada  para  os  com prim idos.  Desta  vez,  três 
comprimidos.  E  todo  m u n d o  para  a  caminha.  O  quarto  foi 
trancado  pelo  enfermeiro  n oturno.  Antes,  avisou-me  que  se 
quisesse ir ao banheiro  era  só bater na porta.  Comecei  a repas­
sar tudo, o papo do Rogério, os que ficavam naquele canto, tan­
tos  comprimidos,  minha família...  meus  estudos,  minha turma. 
Virava  de  um  lado  para  o  outro,  mais  que  charuto  na  boca  de 
bêbado.  Co m custo  consegui dormir.
Pela manhã,  quartos abertos,  fomos acordados aos gritos.
— O,  o  café, pessoal!  Todos tomar café. Vamos, vamos logo, 
todo  mundo  de  pé  -  o  enfermeiro  n o tu rn o  fazia  uma  zorra, 
depois sumia.
Levantei  a  fim  de  tomar  um  banho.  N o  chuveiro, já  para 
entrar,  um outro paciente  da nossa sala de jantar disse:
- Vai tomar banho? Vai perder o café.
- Não tô a fim de perder o café. Estou com uma fome! — Só 
lavei o rosto  e  os dentes.
- H oje tem visitas!  - era o  comentário.
Quinta-feira,  dia de visitas.  Será que meu pai vem? Mesmo 
se vier,  será difícil me  deixarem vê-lo.
Q uinta-feira:  visitas,  não  para  todos,  apenas  para  alguns. 
N inguém  para  ver  os  esquecidos.  Esses  esquecidos  e  malditos 
continuavam  encostados  pelo  INPS,  não  p o r  caridade  espírita. 
Infelizes,  foram usados  e mexidos.  Agora,  vegetam como plan­
tas  secas  esperando  a hora de  caírem de  seus  caules.  De  carida­
de,  só  recebem  um  ou  outro  cigarro  de  algum interno  novato. 
O u alguém que  lhes  dá um par de meias furadas.  Essa é  a cari­
dade  que  recebem,  mas  que  trocariam  sem  pestanejar:  o  trapo 
pelo cigarro.  Mantidos em alas proibidas aos olhos de visitantes, 
constituem-se  em  verdadeira  vergonha  para  uma  sociedade  de 
“normais” .  N u m martírio lento,  eles  esperam que  as  drogas  os 
matem,  explorados pela instituição  que  agora  recebe  os  elogios 
da sociedade, p o r mantê-los sem condições mínimas de higiene 
e valorização humana. Já serviram às experiências para o uso de 
novas  drogas,  novas  teses,  novos  tipos  de  tratamento.  Fizeram 
sua parte  como  cobaias.  Agora são lixos humanos.  Empilhados 
como  inúteis,  esperam  lentamente  que  os  efeitos  de  anos  de 
medicamentos  os  matem.  Q u e  caridade  é  essa?  Mais  caridoso 
seria  eliminá-los  de  uma  vez,  limpando  assim  a  vergonha  de 
uma  sociedade  hipócrita.  Sociedade  esta  constituída  por  cida­
dãos  que  sabem  o  que  ocorre  dentro  dessas  instituições  e,  por 
comodismo  e  desumanidade,  se  fazem  de  desentendidos  do 
assunto,  leigos...  e  isso  é  problema para  os  especialistas  da  área. 
E mais cômodo fazer vista grossa.
P o r  um a  bandeira  vil,  que  essa  sociedade  de  hipócritas 
insensíveis  denominou  de  “caridade”,  eles  são  mantidos  vege-
tando  e apodrecendo  com suas fezes.  A essa sociedade de falsos 
caridosos  eu  dou  de  graça  uma  sugestão:  colocar  todos  esses 
inúteis  dentro  de  um  barracão  de  madeira  podre  e  inútil  tam­
bém;  e,  com duas pedras,  raspando uma na outra, até conseguir 
a chama,  atear fogo ao barracão.  Os que conseguirem sair vivos 
do  barracão,  sugiro  matá-los  a  pedradas!  É  mais  caridoso  que 
deixá-los  em cantos malditos,  apodrecendo com suas fezes.
Ao sair do  banheiro  resolvi fazer uma peregrinação  ao fun­
do  escuro  daquele  pavilhão.  Ao  entrar  naquele  corredor,  que 
iniciava logo após as mesas grandes, não consegui chegar nem à 
metade.  O  cheiro  de  fezes  era  insuportável.  Consegui  ver  o 
interior de  um dos  quartos.  Uma  estopa amarela, já  aparentan­
do  algo  podre,  de  uma  cor  amarronzada.  U m  cobertor  velho, 
como os que distribuem nas cadeias,  devia estar duro de sujeira. 
As  paredes  daquilo  que  eu  estava  vendo,  n em  quarto  e  nem 
cova,  tinham  marcas  de  mãos  e  dedos  escorridos.  Eram  fezes, 
merda  podre.  R ealm en te  não  conseguiria  ir  até  o  fundo  do 
pavilhão.  O  cheiro  era  insuportável  e  a  ânsia  de  vom itar  se 
manifestou.  Voltei  ao banheiro,  lavei  o  rosto  e,  olhando-me  no 
espelho,  consegui chorar um pouco.
H oje é quinta-feira,  o hospício está mais alegre. Dia de visi­
tas.  Após  o  café,  fila  no  banheiro.  Muitos  riem  esperançosos. 
Tomam  banho  e  colocam  a  roupa  de  domingo.  Alguns  enfer­
meiros  estão  dando  banho  naquele  crônico  incapacitado  que 
passa os dias lá dentro,  urinado e cagado.  Mas hoje  ele tem visi­
ta,  é dia de banho. Até o cabelinho do goiaba, o  enfermeiro faz 
questão  de  ajeitar com a ponta do pente  sujo,  de dividi-lo bem 
ao meio, bem certinho.  H oje ele tem visita.  Tudo bonitinho...  a 
preparação começa logo após o café da manhã, antes das sete.  O 
grande  espetáculo  está  marcado  para as  três  horas  da tarde,  mas 
são  muitos  preparando-se.  A  direção  do  espetáculo  exige  que 
seja do agrado de todos os ilustres visitantes:  os familiares. Estava 
bem  m elhor  que  o ntem .  U m  agito.  Se  aquela  ociosidade  se 
repetisse hoje,  não daria para agüentar.
- Mas que  agito,  hein,  Rogério!
— Visitas,  é bom ver a família.
- Eles  entram aqui no pavilhão?
- Aqui dentro é expressamente proibida a entrada dos fami­
liares  e pessoas  estranhas.
— N ão querem mostrar como vivemos. Escondem a realida­
de do terror que  é isso.
- Você já está começando a entender este lugar.
-  Também,  ontem  você  não  me  deu  folga.  Não  consegui 
dormir.
— N em com o sonífero  que lhe  deram?
— Não,  eu dormi.  Mas tudo  o  que vi...  não foi fácil.
- E gostou?
— E  o lugar ideal pra  curtir uma férias — rimos —,  onde  esse 
pessoal recebe as visitas?
— N o pátio, lá fora.
— Lá fora não  tem muro,  é só  dar no pinote.
— Já fiz isso,  meus velhos  mandaram um camburão  me  tra­
zer de volta.  Foi pior.
- Cara,  será  que  se  meu pai vier,  eles me  deixam falar com
ele?
—  Tire  o  cavalo  da  chuva!  Seu  pai,  só  daqui  a  quinze  dias. 
Ele sabe disso,  duvido que  ele venha.
- Treze  dias,  então.  Se  eu  tivesse  uma  chance  de  falar com 
meu pai,  não ficaria mais u m dia aqui.
- Não  adiantaria nada.
-  Tá  legal,  Dr.  Sabe-tudo.  Não  vai  tomar banhinho  tam ­
bém e pentear o  cabelinho, pra entrar em cena?
— Mais tarde um dos melhores figurantes irá se produzir. 
Tudo  realmente  era  uma  grande  produção.  O  espetáculo
parecia  uma  estréia  de  teatro.  Os  mínimos  detalhes  eram  lem ­
brados.  O grande cenário  era lá fora.  O interior do pavilhão  era 
proibido à visita de estranhos,  poderiam prejudicar o andamen­
to  do valioso tratamento!
A grande peça acontecia ao ar livre, no imenso jardim flori­
do  do  Sanatório  Bom  Recanto.  Até  o  nom e  é  bonito:  Bom 
Recanto — soa a paz!  O jardim arborizado,  os pássaros cantando 
freneticamente,  paz  e  sossego  no  ar...  Banquinhos  de  madeira, 
todos  pintadinhos  de  branco,  um  recanto  de  namorados  dos 
tempos  da vovó,  só  faltando  a bandinha  tocando  e  o  lago  com 
os  cisnes  nadando.  U m a  paz  celestial,  às  vezes  quebrada  por 
algum grito  de  um  crônico  dentro  do  pavilhão  que  quase  ins­
tantaneamente  é  sufocado pela mão  do  enfermeiro  em sua gar­
ganta.  O  espetáculo  acontecia  para  o  agrado  de  todos,  ou 
melhor,  dos  ilustres  visitantes,  que  a  direção  do  sanatório  fazia 
questão  de  impressionar.  Ao  in tern o ,  não  sobravam  muitas 
chances  de ser ouvido.  U m lugar de  tanta beleza e  tranqüilida­
de impressionava tanto que a família toda queria ficar internada.
Eram sensibilizados  com a dedicação,  calma  e  gentileza dos 
enfermeiros  que  trocavam  o  autoritarismo  e  os  gritos  por falas 
mansas,  na frente  das  visitas.  Alguns  eram  até  bonificados  com 
dinheiro  e  presentes  dos  familiares.  Discretamente,  aceitavam 
essas bonificações.
A  chance  de  nós,  internos,  sermos  ouvidos  era  inexistente 
perante  tamanha  superprodução,  digna  de  H ollyw ood.  N ão 
teríamos a mínima credibilidade, mesmo que rasgássemos o cor­
po  para  provar  que  o  que  ocorria  lá  dentro  era  o  inverso  do 
mostrado aqui fora.
O hospício parecia em festa.  Era quinta-feira,  dia de visitas. 
O  alm oço  tam bém  era  especial,  com  m aionese,  frango  ao 
molho,  macarrão,  arroz,  feijão  e  outros bichos.  Comi  como  há 
muito  tempo  não  comia,  estava  com um b o m apetite.  O  pátio 
ficou aberto na hora das visitas.  Nós,  que não  tínhamos visitan­
tes,  ficamos lá.
Estavam todos os que tinham visitas bem limpinhos. Alguns 
até tomaram um segundo banho  de perfume.  Esperavam ansio­
sos  chegar  a  hora.  Até  o  médico  clínico  estava  rindo,  na  espe­
rança  de  que  seus  problemas  lá  fora  tivessem  tomado  o  rumo
que  ele  esperava.  Com o  ele,  outros  estavam  com  seus  anseios 
renovados,  esperançosos  até  de  irem  embora.  Eram  esperanças 
ousadas e eles estavam alegres com elas,  a ponto de distribuírem 
cigarros aos esquecidos,  mesmo sem eles terem pedido.
Pouco antes das três horas, todos aguardavam ansiosos que o 
enfermeiro,  que  fechou  a  porta  de  acesso  ao  interior  do  pavi­
lhão,  colocasse a cabeça e os chamasse.
Os  crônicos pareciam saber que  todo  o  hospício  estava  em 
alto  astral  e  aproveitavam  as  gentilezas  dos  esperançosos.  C o ­
meçaram  as  chamadas,  saíam  do  pátio  com  sorrisos  até  as  ore­
lhas.  Até eu fiquei com uma certa esperança que meu pai tives­
se  vindo  e  que  eles  me  deixariam  vê-lo.  Era  remota,  mas  não 
impossível.
Durante  os  minutos preciosos  de  espera ficavam impacien­
tes.  Fumavam mais que o normal. Ao ouvir o seu nom e chama­
do,  a  angústia  dava  lugar  a  um  largo  sorriso.  Saíam  do  pátio  e 
levavam seus desejos ardentes, o objetivo maior: ir para casa.  Sa­
biam que teriam de representar também. Não podiam demons­
trar  toda  a  sua  ansiedade  em  sair  daquele  lugar.  Precisavam  se 
controlar  e  mostrar aos  seus  que  estavam  calmos,  conscientes  e 
receptivos.  Controlar-se  ao  máximo  para  mostrar  que  não  era 
mais  necessário  ficar  ali  dentro.  N ão  podiam  e  nem  deviam 
explodir se os familiares fossem contra a sua saída.  Se o fizessem, 
as esperanças iriam se perder.  Tinham que representar também, 
dentro  daquela peça que  envolvia muitos personagens,  sendo  o 
deles o papel mais difícil.
Os  parentes  do  Rogério  também vieram.  Iria  pedir  para  o 
tirarem  dali  ou,  pelo  menos,  transferi-lo  de  pavilhão.  Pois  nos 
outros  pavilhões  se  tinha  a  liberdade  de  pelo  menos  andar  pelo 
jardim do Sanatório, à hora que se quisesse. E nós, ali do pavilhão 
San Quentin,  éramos  controlados  em nossas horas  de pátio.  U m 
pátio de delegacia, pequeno. Rogério saiu também,  esperançoso. 
Ficamos nós:  eu,  os esquecidos e um ou outro que se preparou e 
a  visita  não  veio.  O  horário  de  visitas  terminava  às  dezessete
horas.  Aquela  tarde  foi  diferente  da  anterior.  Desejava  que  o 
Rogério conseguisse o seu objetivo. Meu velho não veio mesmo.
As visitas terminaram.  Os internos vieram derrubando fru­
tas,  doces,  cigarros,  biscoitos  e  balas.  Derrubavam  esperanças. 
Risos  antecipados  tornaram-se  olhares  frustrados. Já  não  riam. 
Angústias  nas  mãos, jogam -nas  no  quarto,  esparramam  pelo 
chão.  De que adiantam aquelas guloseimas?
Os  visitantes  se  foram,  convencidos  pelo  belo  espetáculo 
hollywoodiano.  Os  que  tinham  ensaiado  a  manhã  toda  para 
falar, falaram alguns.  Os ouvidos,  ouviram? Pouco provável que 
ouvissem  o  que  realm ente  era  fundam ental  para  o  in tern o . 
Tudo foi encarado por seus familiares como meras reclamações, 
por  estarem  ali  presos.  As  reclamações  pelos  maus-tratos,  pelo 
isolamento, pelos choques, pelos remédios, pelos crônicos caga­
dos  ao  seu  redor.  Q u an d o  iriam  tirá-los  dali?  Tudo  que  era 
reclamado deixava de ter importância.  O que realmente impor­
tava era que o tratamento  estava sendo feito.
Tratamento  diagnosticado  p o r  uma  bola  de  cristal  ou  por 
adivinhação.  Seria  melhor levar-nos  a  tratamento  com pai-de- 
santo.
A empolgação, que começou pela manhã, deu lugar a um ar 
fúnebre.  Talvez por isso  os psiquiatras digam que as visitas atra­
palham o andamento  do tratamento.
Q u e  tratamento?  Engolir comprimidos  e  ficar preso,  isola­
do, isso é tratamento?
O silêncio  era quebrado  apenas pelos crônicos indiferentes. 
Estes  se  lambuzam  com  doces,  chocolates  e  outras  baboseiras. 
U m grupo de crônicos circunda aquele outro que recebeu visi­
ta e  tem cigarros.  Ficam numa roda,  fumando  um cigarro  após 
o  outro,  até  fumarem  to d o  o  maço  -  depois  dispersam.  Os 
outros internos analisam em suas camas,  cabisbaixos,  onde erra­
ram  ao  falar  com  seus  familiares.  A  outros,  a  esperança  parece 
que irá se  concretizar.  Logo  estarão fora dali.
A chamada para os  remédios  da hora do jantar.  Muitos não 
comeram  o  de  costume,  estavam  empapuçados  pelo  que  lhes 
trouxeram  os  familiares.  Televisão  até  as  nove  da  noite,  outra 
chamada  para  os  remédios.  Tomei  a  mesma  dosagem  de  com ­
primidos  do  dia anterior.  Todos no  quarto,  o n o tu rn o  tranca as 
portas.
— Boa-noite, Austry.
— Boa-noite.
Escuto  o  barulho  da  chave  na  fechadura,  tudo  escurece, apenas a claridade da abertura da porta. Pensativo,  adormeço.


Nota nossa: aqui interrompemos a transcrição do texto de autoria de  Austregésilo  Carrano  Bueno, publicado em livro com o título CANTO DOS MALDITOS
U m a história verídica que inspirou o filme  Bicho  de sete cabeças. J a m a i s  SONHARIA  a o n d e   o s   caminhos  da  m inha 
adolescência  me  levariam.  Algo  que  supus  acontecer apenas  em 
filmes  americanos  de  terror  aconteceu.  Em  meados  de  outubro 
de  1974,  chegando em casa,  fui convidado por meu pai a acom- 
panhá-lo  em  visita  a  u m  amigo  seu,  hospitalizado.  Estranhei 
aquele convite, pois não tínhamos o hábito de sair juntos, mas fui.
Chegando ao hospital, antes mesmo de entrarmos nas insta­
lações  de  imediato  dois  enfermeiros vieram ao  nosso  encontro. 
Com sorrisos, postaram-se um de cada lado.  Desconfiei daque­
la posição.  Pegaram em meus braços.
— Ei! pera aí...  o que está acontecendo? - perguntei assusta­
do  e olhando para meu pai.
— Calma,  filho,  é para o  seu bem! - respondeu meu pai.
— Seu pai  o  trouxe  aqui  pra você  fazer uns  exames,  apenas 
isso... — falou um enfermeiro negro.
— Mas  que  exame,  pai?  eu não  estou  doente...  — perguntei, 
forçando para soltarem os meus braços.
— Calma,  filho!  é para o seu bem...
— Q u e calma?  eles  estão me puxando...  qual é, velho?
— Nós sabemos que você não está doente. Ele só quer que vo­
cê faça uns exames e mais nada... — disse, tentando me acalmar,  o 
enfermeiro negro. Puxaram-me para dentro de um pavilhão.
— Ei!...  espere  aí,  meu pai não vai  entrar? — falei  e vi  a  por­
ta atrás de mim fechar-se.
— Venha comigo! — disse o negro. Largaram os meus braços.
Cam inham os  p o r  um  corredor.  D o  lado  direito  ficavam
quartos,  do  lado  esquerdo,  uma  sala  não  m u ito  grande  com 
mesas e cadeiras. Entramos num quarto logo ao lado da sala. Era 
um  quarto  que  usavam  como  enfermaria.  Sentaram-me  numa 
cama alta.  Havia um pequeno armário com vidro e um suporte 
para  braço.  O  enferm eiro  n egro  sentou-se  ao  m eu  lado  na 
cama,  o  outro sentou-se  a uma mesinha de  enfermagem.
— Com o  é  o seu nome? — perguntou  o  enfermeiro negro.
— Austry.
-  Bem,  Austry,  o  que  na  realidade  está  acontecendo  é  o 
seguinte...  —  Fez  uma  pausa.  —  Seu  pai  en co n tro u  m aconha 
numa jaqueta sua.  Ele  acha  que  você  é viciado  e  trouxe-o  aqui 
para fazer tratamento.
- Não acredito.  Meu velho pensa que sou viciado? Ele nem 
conversou  comigo  e já me trouxe pra cá?!...
- E  o fumo,  você fuma maconha? - o  negro.
—  D o u  meus  peguinhas,  mas  isso  não  significa  que  seja 
viciado.
- Bom,  só  sei  que seu pai o internou  e  a gente vai tratar de 
você.
- Tratar de mim?  Isso é uma piada. Eu não sou um viciado, 
podem  fazer  o  exame  que  quiserem.  Não  sou  dependente  de 
droga  nenhuma.  Vamos,  façam  os  exames!  Podem  fazer  qual­
quer  tipo  de  exame,  vocês  verão  que  não  tenho  dependência 
nenhuma...  Isso  é,  se  vocês forem capazes  de  entender o  que  é 
ser  u m  viciado!  Cara!  tô  afirm ando  pra  vocês:  eu  não  sou 
nenhum dependente!  Então,  que tratamento vocês vão fazer?
- Todos os viciados que passam por aqui começaram com a 
maconha e as bolas.  E agora  estão nos picos.
—  Problema  deles.  Pico  não  é  o  m eu  caso  e  nunca  será. 
Podem olhar meus canos,  não tenho uma marca.  Se eu tomasse
pico,  tá  certo,  vocês  podiam  me  classificar  como  viciado,  de­
pendente, caso eu não passasse sem uma picada. Mas maconha... 
a maconha faz menos mal que  o  cigarro  comum.
- É  o que você  diz.  Os  estudos médicos dizem outra coisa. 
Agora vou lhe aplicar uma injeção  e você  vai  dorm ir um pou­
co.  N ão precisa ficar com medo!  M eu nome  é Marcelo — disse 
o enfermeiro negro.
Q u e  medo!  eu  não  acreditava,  era  um pesadelo...  Só  podia 
ser  u m  pesadelo  —  eu,  in tern ad o  para  fazer  tratam en to  p o r 
fumar m aconha...  Se eu tomasse pico, cocaína, tá certo. Mas eu 
não  tomava,  mal  tinha cheirado  uma  ou  duas vezes.  Só porque 
fumava  maconha?...  As  vezes  eu  passava  semanas  sem  colocar 
um  fininho  na  boca.  Q ual  é?  Maconha  não  vicia  ninguém,  e, 
quem disser o contrário,  eu desafio a provar que maconha vicia.
Preparada a injeção...  uma cavala! Braço no suporte, palma- 
dinhas para despertar a veia,  e a picada.
-  Cara,  não  tem  nada  a  ver  esse  internamento...  Eu  não... 
vou...  fi... — E não vi mais nada. Acordei no dia seguinte, tenta­
va raciocinar...  tonto pelo  efeito  da injeção!  Estava num quarto 
cinza-claro.  U m pijama azul de bolinhas.  Não  era meu.  Levan­
tei, fui até a porta.  Ao  abri-la,  dei de cara com um pessoal sen­
tado  às  mesas,  tom ando  café.  Todos  me  olharam,  uma  nova 
atração.  Queria ir ao banheiro,  meu pênis estava duro,  fato  que 
chamou mais a atenção de todos. Encabulado,  tentei esconder o 
meu estado.  Perguntei onde era o banheiro,  um cara com ar de 
gozação informou.
O  pavilhão  era  grande  como  um barracão.  Lá  estava  a  sala 
com as mesas,  em frente  ao  quarto  em que  eu  dormira.  Cami­
nhando  em  direção  ao  fundo  do  pavilhão,  havia  um  corredor 
com quartos  dos  dois lados  e  mais  uma  sala grande  com mesas 
compridas,  como  as  de  festas  de  igreja.  Passando  essa  segunda 
grande sala,  havia um corredor com mais  quartos  de  cada lado. 
As  portas  dos  quartos  tinham  uma  pequena  abertura  em hori­
zontal,  que permitia ver o interior.  O banheiro era do tamanho
dos  qu arto s,  co m  vaso  e  chuveiro,  uma  pia  de  rosto  e  u m 
pequeno espelho na parede.
Tomei  café,  sem  importar-me  com  os  outros  que  ali  esta- 
vam.  Estava  querendo  entender  a  fria  em  que  me  encontrava. 
Matutava  com meus botões.  Sentia  os  olhares,  querendo inter­
rogar.  Fui  o  último  a  levantar  da  mesa.  Os  outros  tinham  ido 
para  o  fundo  do pavilhão.  Após  aquele  café  com  cevada  e  pão, 
fui levado  a outra sala, a das mesas grandes.  O enfermeiro abriu 
uma porta e m andou-m e sair.
Saí para um pátio de uns 20 por 20 metros, cercado p o r um 
muro de uns 5 metros de altura. Vi outros internos,  que não es- 
tavam às mesas,  em frente  ao meu quarto.  Mais pareciam m en ­
digos maltrapilhos.  Ficavam isolados dos outros num canto p ró ­
ximo  aos banheiros do pátio.  Nesse canto havia um telhadinho, 
parecendo  uma  churrasqueira  de  parque.  Aquele  grupo  estra­
n ho  ali  ficava.  N o  meio  do  pátio  havia  um  pouco  de  grama, 
onde alguns deitavam-se.  Encostei num canto do muro branco, 
observando aquele cenário  de filme de terror.
O  que  mais  me  chamava  a  atenção  era  aquele  grupo,  no 
canto coberto...  tinha um sujeito enorme, forte, meio gordo ou 
inchado,  com um  corte  de  cabelo  estilo  militar.  N ão parava  de 
balançar a mão  direita e virava a  cabeça  de um lado para  outro. 
Era  uma  figura  assustadora.  O utro  sujeito  corria  de  um  canto 
para outro, soltando um tipo de  grunhido.  Havia alguns com as 
calças molhadas e sujas, devia ser urina e fezes. U m outro escor­
regava  andando  com  o  corpo  e  o  rosto  encostados  na  parede, 
parecendo  querer entrar,  fazer parte daquela parede,  esconder-se 
de todo,  misturar-se com o  concreto.
Era uma visão triste:  aquelas pessoas reduzidas àquilo.  Eram 
pessoas sim,  seres humanos,  mas pareciam feras torturadas,  ago­
niadas,  com  alguma  coisa  mordendo  seus  corpos  e  rasgando- 
lhes também a alma.
Os  que  haviam  tomado  café  comigo  pareciam  normais  e 
não  estavam em farrapos,  como  aqueles lá  do  canto.  Havia  o u -
Iros malvestidos ou sujos,  esparramados na pouca grama. Mas os 
daquele  canto  eram  diferentes,  pareciam  a  degradação  de  uma 
raça sobrevivente  de  uma  guerra nuclear.  O  desespero  em seus 
olhares, o medo em seus atos...  a individualidade em suas fanta­
sias,  apenas  quebradas  p o r  algum  ato  de  violência  de  um  para 
com o  outro.
Aquele  canto  era  q u alq u er  coisa  diabólica.  C o m o  se  o 
demônio  tivesse  o  comando  de  suas  mentes,  nelas  derramando 
sua  ira  e  divertindo-se  em  atormentá-los.  Aquilo  era  satânico: 
pessoas  urinadas,  defecadas,  revirando  os  olhos,  cabeças,  que­
rendo  entrar  dentro  do  concreto.  Todo  aquele  to rm en to  só 
podia  ser  comparado  ao  inferno.  Se  ele  realmente  existe,  sem 
dúvida eu estava vendo um pedacinho dele, ali naquele canto,  o 
canto dos malditos...
O conceito geral daquele pátio  é uma grande jaula,  onde as 
feras ficavam, umas deitadas, outras sentadas em diversos lugares, 
os olhares perdidos horas e horas, olhando não se sabia para on­
de.  Todos mantidos  escondidos,  como  animais  contaminados  e 
que deviam ser trancados  em algum lugar.  E  o lugar era aquele 
pátio. Não sabia o que fazer... tudo ao meu redor, não! não esta­
va  acontecendo,  era  um  pesadelo,  meu  Deus!  Aquelas  pessoas 
não eram reais...  eu tinha que acordar!...  A angústia começou a 
tomar  conta  de  mim...  eu  não  estava  ali,  eu  não  queria  ficar 
ali!...  meu Deus,  que lugar era este?!
— Ei!  você  é o enfermeiro?
— Sou - respondeu, com um livro na mão,  roupas comuns e 
sentado  numa  cadeira,  perto  da  porta  que  dava  acesso  ao  inte­
rior do pavilhão.
—  Olha,  eu  não  estou  entendendo  nada.  O n tem  eu  falei 
com u m outro enfermeiro, não falei com médico nenhum, não 
sei o  que  estou fazendo  aqui  dentro.  Quero  ir embora! — gritei 
desesperado.
— Você vai falar com o  médico.  Daqui a pouco  ele vai che­
gar, fale com ele — disse sem dar a mínima.
Agoniado, fiquei rodando pelo pátio. Não ousava chegar per­
to  daquele  canto.  Remoía-me:  quando  ele  chegar,  eu  explico — 
não sou viciado, não tenho necessidade de drogas.  O senhor pode 
fazer os exames que quiser! Foi um equívoco de meu pai. Eu não 
preciso ficar aqui dentro, rodeado por pessoas horríveis.
Q uando  o médico  chegou,  m eu coração  disparou.  D ep en ­
dia dele continuar naquele lugar pavoroso... dependia exclusiva­
mente de mim mostrar a ele que eu era uma pessoa normal. Ao 
entrar  no  pátio  foi  imediatamente  cercado  pelos  internos  que 
haviam tomado  café  em frente  ao  quarto  onde  eu  dormira.  Os 
do  canto  nem  tomaram  conhecimento  do  ilustre  personagem. 
Aproximei-me.  O  enfermeiro  do  pátio  falou  alguma  coisa  ao 
seu ouvido  e ele me olhou. Estendi-lhe a mão  em cum prim en­
to.  Tocou  apenas  nas  pontas  dos  meus  dedos  como  se  eu  fosse 
contaminá-lo.  Disse-lhe  que  queria falar-lhe.  Abanou  a  cabeça 
positivamente,  entreteve-se  em  seguida  com  o  g ru p o  ao  seu 
redor e,  rapidamente,  saiu do pátio.
— Enfermeiro,  eu quero falar com o médico.
— Se precisar,  ele  chama!
— Com o  assim? Eu quero falar com ele.  Não  é  se ele preci­
sar! Eu quero falar com ele. Ele não pode simplesmente me dei­
xar preso aqui  dentro. Eu  exijo falar com ele.
— Aqui dentro, você não  exige nada! E se precisar,  ele man­
da buscá-lo - respondeu, já.
— Então,  eu quero falar com meu pai!
— A sua família você só verá daqui a quinze  dias.
— Q uê,  quinze dias? Eu não vou ficar aqui dentro todo  esse 
tempo,  não,  de jeito nenhum.
—  Olha,  coloca  na  sua  cabeça  que  você  está internado,  esse 
é o fato.  Você  está em tratamento.
—  Tratamento  de  quê?  Vocês  simplesmente  me  prenderam 
aqui  dentro.  N inguém veio me  examinar pra ver se sou  ou não 
um  viciado.  O  médico  chega  aqui,  dá  uma  olhada  geral  em 
todo  mundo  e sai.  Qual é,  que lance  é esse?!
- Cara,  eu não  tenho  que lhe  dar explicação nenhuma. E  é 
melhor você  ficar  calmo  para  o  seu  próprio  bem  —  continuou 
nervoso  com minha insistência.
N ão  adiantava.  O  cara  era  radical.  Perguntei  a  ele  se pode­
ria falar com o médico  de tarde.  Só amanhã ele  estará de volta!, 
respondeu seco.  Q ue merda ficar aqui,  eu não quero.  Os pensa­
mentos  começavam a  se  atropelar  em minha mente.  Não  con­
seguia  coordená-los:  ontem ,  meus  estudos,  vestibular,  minhas 
aulas...  é  um  pesadelo,  m eu  Deus,  isto  não  está  acontecendo, 
não  pode  ser  real...  Estou  preso  ao  canto  dos  loucos  cagados, 
que  merda!  tenho  dezessete  anos  e  estou  num hospício.  Não  é 
real, meu Deus!  Pai... por que você fez isso comigo? Achar ma­
conha...  não  sou  viciado!  não  prova  nada,  ignorância  sua,  pai. 
Eu,  dentro  de um lugar desses...  e meus  estudos?  Se  tivéssemos 
conversado, pai,  eu lhe provaria que não sou viciado...  não  sou, 
pai!  N ão precisava me trazer para cá.  Por que não conversamos, 
pai?  Por  que  não  conversamos,  porra?!  O  médico  nem  sequer 
me  olhou  direito,  vão  me  tratar  do  quê?  Eu  não  quero  ficar 
aqui. Eu vou fugir.  O muro  é alto demais, somos mais de vinte, 
seria fácil dominar aquele bundão, mais uns três e seria... Aquele 
c:>ra com um gibi parece normal,  talvez ele tope...
-  E  aí,  tudo  bem?  —  perguntei  imaginando  qual  seria  sua 
reação, pois todos  que  estão internados eram loucos!
-  Tudo  bem,  senta  aí!  —  falou  com  o  gibi  levantado  para 
tapar o sol.
- Tá aqui há muito  tempo?
- Dessa vez,  faz cinco  meses.
- Cinco  meses,  aqui  dentro?  Com o  é  que você  agüenta? - 
Isso me pareceu uma eternidade.
- Só  penso  em ir  embora desse inferno! Já não  dá mais pra 
.igüentar esses internamentos.
- Quantas vezes você já foi internado?
- Já perdi até as  contas — abaixando a cabeça.
- M eu nome  é Austry,  e  o  seu?
— Rogério.
— Você  tá sacudo  de ficar aqui dentro,  eu tô  só  há um dia  e 
pouco  e já  não  agüento.  Só  tem  um  vigia  aqui  no  pátio,  com 
mais uns dois a gente podia dominar o cara e pinotear daqui, em 
dois toques...
— Nós só  chegaríamos à parte interna do pavilhão!
— Por quê?
— Ele  só  tem a chave  daquela porta.  As  outras  chaves  ficam 
com  os  outros  enfermeiros.  Isso  aqui  ficaria  em  pouco  tempo 
cheio desses gorilas...  é bobeira!
— Bobeira é ficar aqui  dentro! Eu não  estou agüentando...
— Cara,  se acalme!...  senão você vai pra Tortulina.
— Tortulina,  o que que  é isso?
— E  uma  injeção  de  Haloperidol  que  lhe  aplicam  no  mús­
culo.  Você fica igual àquele cara grandão,  lá no  canto:  babando 
e revirando a cabeça. A porra dessa injeção repuxa todos os ner­
vos.  E  como  íngua  dando  em vários  nervos  ao  mesmo  tempo, 
cara...  O efeito dessa injeção retorce todo o corpo.  Dói pra dia­
bo  essa  droga  do  capeta!  Eles  aplicam  nos  pacientes  que  estão 
exaltados,  é  uma  forma  de  controlá-los,  pois  ficam  completa­
mente sem ação física.  Por isso,  se acalme de vez...  senão,  te le­
vam pra enfermaria e te aplicam a droga.
— Então!...  p o r isso o  enfermeiro falou daquele jeito...
—  Esses  caras  aqui  dentro  não  querem  ser  incom odados. 
Q u em os incomoda, logo eles dão um jeito do cara entrar numa 
por bem ou por drogas.
— D eu pra perceber,  não  tem m eio-termo...
— Tem o que eles querem. Você chegou ontem, nunca este­
ve internado antes?
— N unca e até agora não  aceitei que  estou aqui.
—  Cara,  isto  aqui  é  pior que  uma prisão  de  verdade.  E,  em 
muitos  sentidos,  tão  ou  mais  perigoso.  Essas  drogas  que  somos 
obrigados  a  tom ar  são  u m  veneno  que  nos  mata  em  poucos 
anos.
— Até agora só tomei uma injeção do tamanho de uma cava­
la e dormi até hoje.
— Você  tomou  a  “três  p o r u m ”,  como  nós  chamamos.  Por 
que  te internaram?
— Meu velho pensa que sou viciado.
— E você é?
— Pelo  que  entendo,  viciado  é  aquele  que,  quando  o  orga­
nismo  está sem droga, parece sentir uma sede danada.  Isso  é ser 
viciado.  O  meu  caso  era  apenas  uns  peguinhas  na  maconha  e 
umas bolas, mas não tenho dependência nenhuma. Podem fazer 
os exames que quiserem.
— Cara,  teu velho é um mal informado.  Se  ele queria evitar 
que você tomasse  realmente  drogas,  ele te  trouxe  ao lugar mais 
errado  do mundo,  pois aqui  dentro nós somos drogados  diaria­
mente. A sedação aqui é feita em massa.  Tomamos mais de vin­
te comprimidos diários.
— Até agora não tomei nenhum comprimido.
— Mas não fique impaciente,  aqui você come comprimidos. 
Nós  acordamos  tom ando  essas  drogas  e  dorm im os  tom ando 
essas drogas.
— Esse médico...  quem é?
—  Esse  médico  é  u m  verdadeiro  psicopata.  Chama-se  Dr. 
Alaor  Guimont,  catedrático  em  Psiquiatria,  professor  em  uni­
versidades,  um  dos  diretores  deste  “lab o ra tó rio ”  chamado 
Sanatório Bom Recanto.  Tem setenta e dois anos e se você cair 
na mão  dele,  xará,  ele  com certeza irá te  queimar todos os  chi­
fres... E  o maior sádico  que  tive  o  desprazer de  conhecer.
— Cara, você  é fã dessa figura...  O  que é queimar os chifres?
— Eletrochoque.  Choque,  meu irmão!
- J á ouvi falar nesse troço,  mas isso  é pra louco...
— E  o  que  você  acha  que  somos?  Esse  filho  de  uma  cadela 
pesteada vive com a maquininha de eletrochoque na mão. Acho 
que  ele até dorme  com ela.
— Mas  eu não  sou louco.
- Tá aqui dentro! Pra todo mundo lá fora você não passa de 
um louco...  Isto  aqui  é  um hospício,  cara!  E  começa  com  esses 
interesseiros  que dizem tratar da gente.
- Por que você diz isso? E você tá aqui por quê?
-  Cara,  estou  aqui  porque  sou  dependente.  Tomo  e  vou 
continuar  tom ando  cocaína.  Esses  caras  aqui  não  curam  nem 
bêbado.  N unca viram nem uma quina de maconha,  não enten­
dem  nada  sobre  vício,  tan to  é  que  você  está  aqui  d en tro ... 
Agora,  no meu caso,  tá certo. Eu preciso de um verdadeiro tra­
tamento, não o que eles fazem aqui dentro. Enchem -m e de bar- 
bitúricos  e  queimam  os  meus  chifres  com  eletrochoque.  Cara, 
que tratamento  é esse?
- Eletrochoque em viciado?
- Por isso eu tenho certeza, se o Dr. Alaor pegar a tua ficha, 
você vai entrar nessa na certa.
- Como,  se  ele nem falou comigo ainda?
- O  que  você  está  esperando?  Q u e  ele vá conversar conti­
go? Você realmente tá louco!
- Não  tô  entendendo...  como assim?
- Cara, você tem visto muita televisão. Essa de divã pra você 
deitar e falar, só em filmes ou em clínica particular, que são uma 
verdadeira suíte  de  hotel cinco  estrelas.  Aqui você não passa de 
uma ficha,  e sua entrevista,  a consulta com o psiquiatra, você já 
fez.  Foi quando ele visitou o pátio. Aquela foi a sua consulta.  O 
tratamento vem através da tua ficha.
- Mas que tratamento  é  esse?
- E o que o teu dinheiro pode comprar. Se você tivesse gra­
na,  você estaria numa clínica particular.
-  Mas  como  um  médico  psiquiatra  pode  medicar  sem,  ao 
menos,  conversar com o paciente?
-  Caiu  aqui  dentro,  você  não  é  mais  dono  de  si.  Fazem  o 
que  quiserem contigo,  tua ficha já tá  cheia de informações  que 
teu  pai  preencheu.  Está  como  viciado.  Só  vão  examinar  o  teu 
coração  e derreter os teus chifres. E foda!
— Aí,  cara,  vou rodar um pouco.
Ro g ério  não  estava  sendo  nada  agradável  com  esse  papo. 
Ao contrário, estava me deixando cabreiro. Ele já podia ser con­
siderado  um  freguês  de  hospício.  Saía  e  voltava.  Mas  era  uma 
fonte  de informações.  Verídicas?  O  tempo  diria...
—  Cara,  e  os  exames?  Eles  não  vão  fazer  pra  saber  se  sou 
dependente?
— Exame!  pra ver se você  é dependente  de maconha?  Isso  é 
papo  furado.  Não  existe  tal  exame.  E  o  cara  que  disser  que  é 
viciado em maconha,  eu mando  ele ir caçar marido,  e dar até o 
zóio  cego  ficar  rosinha.  Maconha  não  vicia  ninguém,  xará.  A 
única coisa que ela faz é deixar você fissurado pra querer entrar 
na onda que ela causa. Agora, se não pintar, tu toma uns conha­
ques  e  faz  a  cabeça  do  mesmo jeito .  E  diferente  de  quem  é 
viciado em coca, não tem outra coisa que te faça a cabeça.  Tem 
que ser somente  o pó-de-anjo.  Só  ele acaba com a violenta fis­
sura. E muito diferente. E as porras desses caretas não enxergam 
essa tremenda diferença.  Pra eles tudo  é viciado.
— Com o  é  que você tem tanta certeza?  ■
—  Cara,  teve  época  em  que  eu  tinha pacotera  de  maconha. 
Fumava direto. U m baseado a cada meia hora.  Cheguei a empa- 
puçar  de  tanto  fumar  essa  droga.  Fiquei  com  uma  aversão  ao 
cheiro da maconha, que hoje me faz vomitar.  Não suporto nem 
mais o  cheiro  da maldita.
— Então a maconha não te fazia mais a cabeça,  e você partiu 
pra drogas mais fortes,  foi isso?
—  Cara,  ninguém  toma  cocaína  porque  a  maconha  deixou 
ou  não  deixou  de  fazer  a  cabeça.  Esse  é  o utro  papo  furado, 
outro  tabu  da  ignorância  das  pessoas  que  não  entendem  nada 
sobre maconha ou cocaína.  Esse papo  de  que se  começa com a 
maconha  e  depois  tem  que  se  recorrer  a  drogas  mais  fortes  é 
pura  fantasia.  O  lance  de  querer  uma  droga  mais  forte  é  uma 
questão  de  cabeça e conhecimento do assunto...
— Então,  por que você  começou com o pico?
-  Comecei  com  dezesseis  anos  a  tomar  pico.  Não  porque 
alguém  me  obrigasse  ou  tenha  viciado.  E  sim  porque  essa  é  a 
fase  mais  carente,  p o r  insegurança,  p o r  fuga,  p o r  angústia  da 
adolescência.  E  também por ingenuidade  e falta de  real  conhe­
cimento  do  que  é  a coca  e  dos  seus  efeitos.  Esses  são  os verda­
deiros  motivos  que  nos  levam  ao  vício.  Tudo  o  mais  é  papo 
furado.
- Você falou ingenuidade. Eu comecei a fumar com quinze 
anos,  tive oportunidade de tomar pico  e não  tomei!
-  Cara,  eu  tô  com vinte  e  dois  anos.  H á seis  anos  as  coisas 
eram diferentes.  Hoje,  1974,  ainda não  existe  em todo o Brasil 
um hospital especializado  em tratamento  de viciado.  E  se você 
quer saber,  vão  mais  trinta  anos.  A  ignorância  sobre  as  drogas 
irá continuar,  porque  este país  é  atrasado  e manipulado.  O  go­
verno  é  o  maior  cúmplice  do  vício.  D e  repente,  o  pessoal  do 
governo  não quer que  o vício acabe.  Não  existe a liberdade  de 
se falar abertamente sobre  as  drogas.
-  Mas  o  combate  às  drogas  é  violento.  Trafica  pega  uma 
cana federal.
- Cara,  você  não  está entendendo  o  que  eu  estou  dizendo! 
Q uanto mais mistérios fizerem sobre as drogas mais o baseado se 
torna  uma  coisa  misteriosa  e  sedutora.  E  o  pico  de  cocaína,  o 
êxtase  dos  êxtases.  E  as  grandes  manchetes  sobre  apreensão  de 
drogas mais admiradores atraem,  e mais trafica na área criam.
- Então,  como  e o que fazer?
-  Conscientizar  os jovens.  E  aquele  lance.  Vou  falar  sobre 
cocaína,  que  é o  que realmente vicia.  Q u em tá dentro quer sair 
e  quem  tá  fora,  p o r  curiosidade  e  falta  de  conhecimento  dos 
efeitos da cocaína,  quer entrar. Por acaso você sabia que a maio­
ria  dos  bolivianos  que  transam  com  cocaína  não  tomam pico? 
Porque  eles  conhecem  o  efeito  da  droga.  Cheiram  de  vez  em 
quando, mas nunca colocam nas veias. Eles conhecem os efeitos 
da  droga.  O  que  não  acontece  com  a  nossa juventude,  que  se 
empolga simplesmente pelo  barato  que  ela  causa.  O  fabricante
boliviano  ensina até às  crianças os  efeitos  da  cocaína,  mostra  os 
efeitos.  É isso que se tem que fazer...
- Concordo  com você.  Eu só não tomei umas picadas por­
que  tive  medo.  Conheci  uma  mochileira  da  Bahia.  A  gata  só 
tinha  as  duas  presas  na  boca:  a  coca já  tinha  feito  cair todos  os 
dentes  dela.  Só  sobraram  as  duas  presas.  Ela  só  tinha  dezoito 
anos.  E  os braços eram uma ferida só.
- E por aí...  Tire uma foto  da boca dela,  faça uns  outdoorse 
espalhe  pela  cidade  com  letreiros  assim:  “TOME  COCAÍNA, 
ENCOMENDE  SUA  DENTADURA.”  Esse  seria  o  verdadeiro 
combate  às  drogas.  Talvez  alguém  tenha  essa  idéia,  também 
mostrando os braços.
Rimos.  Mas  o  Ro g ério  tinha  razão.  Para  muitos  da  minha 
idade  a empolgação  diminuiria com certeza.  Eu,  se fosse presi­
dente,  faria isso: liberaria a maconha e faria os  outdoors.
-  Concordo  com  você.  Liberar  a  maconha  e  fazer  os  out­
doors.
- Pensando  só  em você!  Maconha  é  o  mesmo  que  o fumo 
de  cigarro  comum,  os efeitos  são  os mesmos, ao longo  do  tem­
po  ou até maiores para quem fuma cigarros  comuns.  Essas pes­
soas têm mais facilidades  de ficar com certas doenças  do  que  os 
que não fumam.
- Isso  deveria aparecer na televisão.  Co m pessoas que tran­
sam  essas  drogas,  nós,  os  usuários.  M uito  se poderia  esclarecer. 
Mas deixam tudo  às  escondidas.
- Isso,  meu  chapa,  só  daqui  a cem anos!  Essa de  colocarem 
nas  ruas  o  assunto,  vai  ser  difícil.  Preferem nos jogar dentro  de 
hospícios ou em prisões.  Eu já estou cansado disso, qualquer dia 
acabo com esse martírio,  de entrar e sair desses hospícios.  Tomo 
iima  overe  fim.  Aqui  dentro,  só judiam,  graças  à ignorância.  E 
melhor uma  overe ponto final.
Aquelas palavras  doeram lá no meu  íntimo.  Rogério  estava 
cansado,  vinte  e  dois  anos  que  pareciam  trinta.  O  que  ele já 
linha  sofrido,  só  ele  sabia.  Abaixou  a  cabeça, já  com  sinais  de
calvície,  rosto  redondo,  moreno  claro,  bigode preto  ralo,  e  en- 
treteve-se  em  seu  ser  sofrido.  Nada  falei,  calei  olhando  aquele 
canto.  Fomos  interrompidos por um grito.
— Cambada!  O  os remédios! — gritou  o  enfermeiro bundão.
Trazia  uma  caixa  com  divisórias,  colocou-a  em  cima  da 
cadeira.
Alguns  internos  o  rodearam,  enquanto  ele  ia  tirando  copi­
nhos  plásticos  com  os  comprimidos.  Chamava  o  nom e  e  os 
virava  na  palma  da  mão  do  sujeito.  Alguns, já  com  canecas  de 
alumínio  amassadas  e  com  água,  tomavam  e passavam  a  caneca 
ao  seguinte.  Esvaziadas as canecas,  iam buscar mais água naque­
le  canto.  N u m  relâmpago,  enchiam  as  canecas.  Os  indiferentes 
daquele  canto  se  perturbavam  com  as  presenças,  mas  logo  se 
entregavam às suas fantasias. Surpresa foi a hora em que o enfer­
meiro,  gaguejando,  chamou pelo meu nome.  U m a zero para o 
Rogério...  sem  ao  menos  um  olá  do  famoso  psiquiatra,  eu já 
estava  sendo  medicado.  Talvez  esses  psiquiatras  sejam  também 
algum tipo  de bruxo  e tenham uma bola de  cristal...
Peguei  os  comprimidos:  ao  todo  eram cinco  e uma cápsula 
vermelha.  N o resto de  água eu os engoli.  Após o  grupo  dissol- 
ver-se  o  enfermeiro  ten to u  dar  para  alguns  daquele  canto  os 
comprimidos.  Uns os apanhavam sem problemas,  a outros nem 
foram  oferecidos  e  alguns  recusavam.  Os  com prim idos  que 
sobraram  foram  pisados  pelo  enfermeiro.  Achei  u m  absurdo 
aquele desperdício,  mas talvez mudasse  de idéia!
Pouco  depois dos  comprimidos,  a porta que  dava acesso  ao 
interior  do  pavilhão  foi  aberta.  Deviam  ser  umas  onze  horas. 
Chamada para o almoço.
Entraram,  atropelando-se  pela  porta.  Fui  um  dos  últimos. 
Dentro,  nas  mesas  compridas,  pratos  de  alumínio,  na  maioria 
amassados,  envelhecidos,  sem  a  tinta  do  fundo,  e  colheres.  Os 
maltrapilhos,  mal-encarados, já  estavam  sentados.  Os  do  canto, 
em  pé,  correndo  pelo  corredor  dos  fundos,  escondiam-se  no 
escuro,  gritando.  Além  da  confusão  que  faziam,  o  mau  cheiro
completava  o  cenário.  Alguns  urinados,  outros  cagados,  que 
cheiro.  Assim eles comem.
Chocado, procurei sair daquela sala, rápido. Percorri o  cor- 
icdor.  Em  outra  sala  vi  mesas  para  quatro,  com  toalhas  xadrez, 
pratos  brancos  de  louça,  colheres  também.  Tudo  limpo,  até  os 
pacientes.  Fui direto para meu quarto,  sem apetite.  Tudo  ali era 
novo  e assustador...  nó na garganta...  de bruços,  cara no lençol, 
o  nó vira vontade de  chorar.
R o g ério  veio  me  buscar.  Sentamos  à  mesma  mesa.  Pela 
porta  da  liberdade,  entram  panelões:  arroz,  macarrão,  feijão  e 
carne.  Os  dois  enfermeiros  serviam  a  todos,  faziam  os  pratos, 
iodos cheios acima da boca.  Apetite não faltava,  comiam como 
gulosos.  Todos  servidos,  levavam  as  panelas  para  a  outra  sala. 
Mal toquei o prato, não tinha fome, encostei o prato.  Comentei 
com Rogério:
- Os lá  de  trás...  como  eles  conseguem  comer com os  o u ­
tros cagados ao seu lado?
-  Cara,  é  melhor  você  não  esquentar  com  o  que  vê  aqui 
dentro.
- Os pratos deles são  de alumínio.
-  Se  fossem  de  louça  poderiam  se  machucar.  Estão  a  toda 
hora se agredindo.
- Vocês...  parecem que não  comem há dias?!
-  São os remédios para abrir o  apetite.
Não tinha fome.  M eu prato não  ficou sem assistência,  logo 
foi pedido.  Após  o  almoço,  todos  aos  seus  quartos.  Deitar para 
fazer a digestão.  Essa de irmos deitar após o  almoço pareceu ser 
uma  ordem  aos  da  sala  em frente  ao  meu  quarto.  Os lá  de  trás 
ficaram perambulando pelo corredor,  em correrias e grunhidos. 
Deitado  em  minha  cama,  a  porta  do  quarto  semi-aberta,  vi  o 
enfermeiro negro  surgir.
- Tudo bem, Austry?
- N em tudo.
- Por quê?
Entrando,  sentou-se na cama,  ao lado dos meus pés.
— Porque não  consegui falar  com  o médico!  Não  sei o  que 
estou  fazendo  aqui.  Meu  pai  não  tem  dinheiro  para pagar  esse 
tratamento bobo.  Não sei de nada...
— Você não falou com o médico porque seu pai já falou com 
ele... — explicou calmo.
—  O  que  meu  pai  acha  é  uma  coisa.  O  médico  devia  con­
versar comigo.  M e  examinar,  fazer qualquer tipo  de  exame pra 
ver se tem necessidade de eu fazer esse chamado tratamento. Eu 
estou pra fazer vestibular,  como é que ficam meus  estudos?
—  O  Dr.  Alaor  G uim ont  é  um dos  melhores  psiquiatras  do 
Paraná. Só em vê-lo ele já o analisou. Ele é o seu médico, é bas­
tante  experiente.
— Ele é também adivinho...  olhou-m e p o r uns segundos e já 
soube que sou viciado...  Qual é, Marcelo? é esse o seu nome? E 
outra, já estou tomando comprimidos.  O hom em ,  além de adi­
vinho,  deve  ter  uma  bola  de  cristal,  só  pode  ser isso.  - R iu  da 
maneira  como falei.
— Você está aqui pra sair do vício.  Q u em m andou se encher 
de porcaria por aí  e  quebrar tudo  em casa?
— Com o é que é?...  quebrar tudo em casa?!  Isso  é mentira...
Lembrei-me  que quando  eu queria sair  e  às vezes os velhos
se  opunham,  fazia um escarcéu  dentro  do meu  quarto,  chutan­
do  m eu  guarda-roupa.  Jogava  algumas  coisas  ao  chão  e  saía 
assim  mesmo.  Encontrando  m aconha  na  m inha jaqueta,  eles 
somaram:  dois mais dois igual a cinco...  são as drogas que fazem 
ele  agir  dessa  maneira!  Não  tiveram  a  consciência  de  analisar  a 
rebeldia da adolescência. A desinformação sobre as drogas, sobre 
o  que  Rogério  e  eu  conversamos.  E  as  manchetes:  “Drogado 
maconheiro mata a mãe para comprar maconha...”  “M aconhei­
ro  coloca  maconha  dentro  de  balas  para  viciar  crianças...”  Ab­
surdos  dessa  natureza  dominam  a  ignorância  popular  sobre  as 
drogas. Meus pais fazem parte dessa grande massa popular mani­
pulada  p o r  informações  absurdas  que  acreditam  ser  possível
colocar fumo  de  maconha misturado  com açúcar em forma de 
lvalas  a  serem  dadas  para  criancinhas  chupar  e  se  viciar.  E  o 
cúmulo  do  absurdo,  mas  a  grande  maioria  acredita.  E  graças  a 
essas  fantasiosas  manchetes,  a  obscuridade  sobre  o  assunto  das 
drogas na sociedade persiste...
—  Bem,  isso  é  o  que  seu  pai  colocou  na  ficha...  que  você 
inda  muito  nervoso,  desobediente  e  agressivo  com  todos.  Eu 
não devia nem lhe contar isso!
— Mas isso não prova que  eu sou viciado.
— Com o não? Se você não escuta ninguém, quer fazer o que 
lhe vem à cabeça...  algum problema você tem!
—  Posso  ter  algum problema,  menos  ser viciado.  Sou  meio 
revoltado com... nem eu sei o quê. Agora, com drogas, não tem 
nada a ver.  Façam exame de sangue, sei lá o quê, mas vejam que 
não preciso de tratamento  nenhum!
— Não sei a sua história, só sei que você vai ser tratado pelas 
drogas que tom ou lá fora.
— Vão me  tratar me dando mais drogas aqui dentro.
— Mas aqui são todas bem administradas.
—  N um a ficha.  Pois  ninguém  me  tira  da  cabeça  que  vocês, 
pra  começarem a  me  dar medicamentos,  deveriam no  mínimo 
fazer alguns exames.  E também o psiquiatra devia ter ao menos 
conversado comigo.
— Você parece ser mais velho, Austry.
— Talvez a rua envelheça a gente  mais  cedo.  Você  disse  que 
o Dr. Alaor Guimont vai ser o meu médico. E esse papo que eu 
ouvi de eletrochoque em viciado?
— Mas você não é viciado...  ou  é?
—  E justamente  por  isso  que  eu  quero  que  vocês  façam  os 
exames  que  quiserem,  antes  de  me  queimarem  os  chifres.  Pô, 
Marcelo!  me  dê  essa  força,  fale  com  o  médico,  explique  a  ele 
que foi um mal-entendido  do meu pai.  Explique pra ele!
— Austry,  eu não posso fazer isso,  ele  é o médico.  Mas você
não precisa ficar com medo de nada, aqui ninguém vai lhe fazer 
mal.  Agora descanse do  almoço.
Saiu,  fiquei  com  meus  botões.  O  que  iriam  fazer  comigo? 
Essa porra de eletrochoque.  Rogério tem verdadeiro pavor. E se 
esse  médico  do  peru  resolve  me  aplicar  essa  droga  de  choque, 
como  será  que  é?  A  possibilidade  do  choque  começou  a  p er- 
turbar-me.  O pavor que o Rogério tinha. Marcelo saiu e não to ­
cou no assunto.  Eletrochoque. Ai, meu Deus! livrai-me dessa.
Agoniado,  o  nó  na  garganta...  (que  merda!  quero  chorar, 
mas não consigo). Reviro-m e na cama-colchão de palha...  que­
ro pensar em outra coisa.  Este quarto,  olho  os detalhes:  o vitrô, 
não  são  barras,  são  armações  de  ferro...  as  paredes  cor  gelo,  as 
portas cinza-claras. Vira tudo cinza quando acordo de manhã. A 
porta também tem uma pequena abertura,  em sentido h orizon­
tal.  Levantei  o  colchão,  examinei  a  armação  do  estrado...  todo 
aramado,  e  o  criado-m udo  de  latão,  ou  sei  lá,  verde-abacate, 
com  uma pequena  gaveta  e  uma  abertura  maior  embaixo,  para 
as  roupas.  Algumas roupas  minhas  estavam  ali  naquela  abertura 
do  criado-mudo.  Estava ainda com aquele pijama  azul  de  boli­
nhas brancas.
O  teto...  uma  agonia  faz  correr  o  m eu  sangue,  escuto  as 
batidas do meu  coração.  Será que minha turma virá me visitar? 
Q u e sacanagem! uma simples consulta com um psicólogo evita­
ria  esse  martírio  todo.  Era  um  martírio  ficar  num lugar  desses 
um  dia,  que  dirá,  como  o  Rogério...  cinco  meses!  Visitas  só 
daqui  a  quinze  dias,  por  quê?  Deve  ser para  a  gente  se  acostu­
mar  a ficar  aqui.  N em  com  anos  e  anos  eu  vou  me  acostumar 
num lugar nojento  como  este.  U m  barulho  despertou-me  dos 
meus pensamentos.
A  porta  estava fechada,  não  trancada.  Vi  olhos na abertura 
de  uns  cinco  centímetros,  depois  a  figura  assoprou  no  buraco. 
Saiu.  Não  dei  bola.  Novamente,  o  assoprão.  Levantei  e  fiquei 
do lado da porta.  O utro assoprão. Abri a porta rápido. U m cara, 
cabeça  chata,  paraíba,  soltou  um  sorriso  estridente  e  saiu  pelo
corredor rindo. Ele tinha o rosto fino, bocudo, pele escura, não 
negro  e  nem  mulato,  cor  de  nortista  do  Brasil,  também  calvo, 
parecia  o  Amigo  da  Onça.  Não  lhe  dei  atenção,  voltei  para  a 
cama, com meus botões... voltei a martirizar-me, estava com dó 
de  mim  mesmo.  A  revolta  começou  a vir à  tona,  aqueles  asso- 
prões recomeçaram na abertura, o pinei brincalhão já estava me 
irritando.  Tentei acalmar-me,  mas aqueles assoprões não deixa­
vam,  levantei e tentei pegar a hiena no cio.
— Vem  cá,  seu  puto!  -  Tentei  pegar  em  seu  braço.  Ele  foi 
mais rápido e fugiu pelo corredor,  rindo.
— Ei,  ei, calma rapaz! — disse-me o enfermeiro.
— Esse cara de hiena não pára de assoprar na minha porta!
— É o Pernambuco,  não ligue,  não!...  Ele faz isso com todo 
mundo.  Ele só quer chamar a atenção.
— Tudo bem,  mas tava enchendo  o saco.
— Ele  é um dos mais velhos aqui dentro.  Faz nove anos que 
ele está internado.
— O  quê!  nove anos? Você está brincando...
— E  tem cara aqui dentro há mais  tempo.
— E os parentes?
—  Parentes?  Esses  caras já  foram  abandonados  há  muitos 
anos.  Eles  não  têm  ninguém  p o r  eles.  O  mundo  deles  é  aqui 
dentro.  Lá  fora,  eles  não  saberiam  n em  pegar  um  ônibus. 
Podíamos  deixar as portas abertas  e  tocar fogo  no pavilhão  que 
eles não sairiam.
— E  quando morre u m deles?
— O sanatório faz o enterro. Este hospital é filiado à Federa­
ção Espírita do Paraná e,  como caridade,  eles seguram esses coi­
tados aqui dentro.  Lá fora eles virariam mendigos e morreriam. 
Aos  sábados,  vocês  recebem passes  com o  seu  Abib,  que  é  um 
médium muito bom. — Enfermeiro falador, devia ser novato, era 
jovem.
— E você trabalha há muito tempo aqui?
— Há seis meses,  mais  ou menos.
— E  por  que  a  maioria  aqui  é  louco?  Tenho  visto  neguinho 
aqui dentro só fodido... por que estão aí, cagando em si mesmos?
O falador não respondeu,  só  deu uma piscadinha e virou-se 
em  direção  à  porta  da  liberdade.  Voltei  para  o  meu  quarto. Já 
não  queria  saber  de  mais  nada.  Q uanto  mais  conversava,  mais 
aquele lugar me parecia desprezível. Tudo tinha um gosto amar­
go,  as  surpresas  eram desagradáveis,  cada pessoa  tinha uma  his­
tória feia,  eram enredos tristes,  uns piores que os outros.
Chamada para  o pátio.  Repetia-se  o  quadro  visto pela ma­
nhã.  Cada  u m  ocupava  o  mesmo  espaço,  aquele  canto,  alguns 
esparramados  pela  pouca  grama.  Tinha  sim,  uma  mudança,  o 
guardião era outro.  O jeito era eu também conquistar um espa­
ço  e ficar coçando o saco,  naquela grande-pequena jaula.
— Rogério,  quem é aquele enfermeiro falador?
— E um estagiário.
— E  esse cão  de guarda?
— E  o Luiz,  enfermeiro  da tarde.  Gente boa.  E malucão.
— Com o assim?
— U é, fuma unzinho também...
— Será que  ele tem um baseadinho aí pra gente?
— Você acha que  ele  é trouxa? Ele já vem com a cabeça fei­
ta. Ele não vai arriscar o emprego dando fumo pra paciente. Ele 
é esperto,  é bom malandro.
—  Porra,  todo  dia  a  transa  é  essa:  pátio,  remédio  e  comer. 
Não muda nunca?
— Muda sim,  nos dias de visitas  e nos  dias  de  choque.
— Vem você  outra vez com esse papo  de  choque.
— Tá legal,  quem vai ser o  teu médico?
— O Marcelo disse que é  o Alaor.  Mas  tem outro?
—  O  adm inistrador,  dizem  que  tam bém  é  m édico,  mas 
quem mexe na cuca do pessoal acho  que  é só  o Dr.  Alaor.  Esse 
sádico!
Eu já  estava  p ertu rb ad o ,  mas  q u eria  saber  mais  e,  n u m 
masoquismo incontrolável,  continuava a perguntar:
—  Desde  que  cheguei,  ninguém  falou  nada  de  bom  deste 
lugar.  Não  deve ser tão ruim como vocês estão  dizendo.
— Cara, isto aqui não é um clube de férias e nem uma clíni­
ca de repouso de filme americano.  Isto aqui é u m hospício bra­
sileiro e nós somos segurados do INPS. Você não irá ver nada de 
bom.
— Só  quero sair o mais rápido possível daqui!
— Austry,  não  estou  querendo  assustá-lo.  Mas  encare  a real. 
Você foi internado por insistência do seu pai,  ele  deve ter espe­
rado  um bom  tempo,  aqui  as  vagas  são  difíceis.  Se  você  pensa 
que quando receber visitas  eles irão tirá-lo daqui,  é fantasia sua.
— Qual é, cara!? Ele vai ter que me tirar daqui!  Se os exames 
não derem nada,  não  tem por que  eu ficar aqui.
— Porra!  você tá parecendo u m desses Zé-Bobões.  Não vão 
fazer  p o rra  n enhum a  de  exames  em  você!  E  sabe  o  que  vai 
acontecer quando vierem te visitar? - falou irritado.
— Não sabia que você também é adivinho!
— Não é ser adivinho.  Você notou o apetite do pessoal hoje, 
na  hora  do  almoço?  Eles,  nesses  dias  em  que  você  não  pode 
receber visitas, irão te engordar como se engorda porco em chi­
queiro...  você  vai  ter  u m  apetite  de  comer  tudo  o  que  pintar 
com  esses  remédios  pra  abrir  o  apetite!  Em  quinze  dias,  cara, 
você vai estar gordinho...
— E aí?...  não  tô  entendendo...
—  E  aí...  quando  os  seus  familiares  vierem  para  visita,  eles 
irão  achar  você  mais  gordo,  mais  forte,  corado,  de  aparência 
melhor e mais  calmo — efeitos  dos  medicamentos  tranqüilizan­
tes.  Irão lhe  dizer que foi  ótimo  trazerem você pra cá...  Q u e  o 
tratamento tá sendo bom. E nada, meu chapa, nada do que você 
disser  eles  irão  escutar!  Cara,  esse  pessoal  é  inteligente,  são 
mafiosos.
—  Conheço  meus  velhos,  assim  que  falar  o  que  é  isso  aqui, 
tenho  certeza de  que irão me tirar...
— Vou  torcer  por  você.  Mas  não  sonhe  muito  com  isso.  A
cada  visita  minha,  eu  também  penso  que  os  meus  velhos  irão 
me tirar,  mas não tiram...
- Mas o  teu caso é  outro,  você  é realmente viciado...
- Você tá sonhando.  O m eu caso pra eles é  o mesmo que  o 
seu,  somos  os  dois  viciados!  Caiu  aqui  dentro,  o  tratamento  é 
generalizado.  N inguém  escuta  você,  você  é  um  viciado  e  está 
enlouquecendo por falta das  drogas.  Isso  é  o  que  representa sua 
figura para  eles  e a sua família.  Você  está doente,  ficando louco 
e...  a  louco,  n inguém  dá  ouvidos!  N ós  não  temos  nem  esse 
direito.  Se você  se  matar pra que  o  ouçam,  irão  dizer que você 
se matou porque  estava louco...
- Olhe,  cara,  não  dá pra ficar trocando idéia  contigo.  Você 
tá me deixando  muito  confuso.  Vou mijar.
Qual  é  a  desse  cara,  quer  me  deixar  maluco?  Esse  cara  só 
pode  estar  revoltado.  Pudera,  cinco  meses  não  são  cinco  dias! 
Estava  tão  irritado  com  o  papo  que,  nem  percebi,  e  estava  no 
meio  dos malditos.  Em frente,  um cara que não parava de bater 
ovos.  Dois  metros  de  altura,  por  um  e  meio  de  largura.  Enca- 
rava-me,  tremi nas bases.  Olhando para cima,  com minha cabe­
ça um pouco acima da altura do seu umbigo, via-o mexer aque­
la  mão,  virando  a  cabeça  e  os  olhos.  Parecia  um  urso  branco, 
pele  branca.  C o m uma  patada  daquele  animal  eu  ficaria  sem  a 
cabeça.  Atrapalhado  na  porta  do  banheiro,  olhei  em  volta.  Os 
outros  crônicos  tam bém  estavam  parados  e  m e  olhando.  D e 
imediato, fiz a volta para sair daquele meio...  antes, porém, uma 
mão  levou  o  cigarro  que  eu  tinha  entre  os  meus  dedos.  N ão 
reclamei,  dei graças a Deus,  saí daquele canto.
Naquele canto,  em poucos segundos,  eu,  o intruso, percebi 
que  havia invadido  um  espaço  só  deles.  Com o  não  fora  convi­
dado  para  aquele  espaço,  eu  os  ameaçava.  Pareceu -m e  que 
naquele momento, no ostracismo em que viviam, todos rompe­
ram suas  cascas em defesa de seus  espaços.  Espaço mínimo,  mas 
só  deles.  Incrível  o  entendimento,  o  respeito  que  tinham  um 
pelo  outro,  em  seu  espaço  e  fantasia.  Brigavam  entre  si,  pelas
marcas  visíveis  de  agressões:  rosto,  braços,  pescoços  arranhados 
e  até  mordidos.  Formavam  um grupo  de psicopatas irrecuperá­
veis,  loucos-loucos,  no sentido  da palavra,  uma pequena comu­
nidade,  cada  um  aceitando  as  loucuras  e  fantasias  individuais, 
sem impor-se  uns sobre  os  outros.  Havia um entendimento na­
quele grupo, coisa impossível de se imaginar, mas de alguma ma­
neira  eles  se  entendiam,  protegiam-se  e,  o  mais  interessante, 
respeitavam-se.  Algo  para  os  paranormais  explicarem.  Até  cari­
nho, eles faziam, às vezes.  Com o era possível, pessoas que não ti­
nham mais nem o controle de suas funções orgânicas, que rasga­
vam dinheiro e comiam merda, serem unidos daquela maneira?
Fui pedir o auxílio do enfermeiro guardião do pátio. Ele me 
levou até os crônicos - os goiabas ou goiabões,  como eram cha­
mados.
— Tá calminho hoje, tá? E assim que eu gosto... - falou para 
o urso polar batedor de  ovos.
- T ô bonzinho sim,  tô sim.  Q u em é  esse aí? - o urso polar 
falava  revirando  os  olhos  e  as  mãos  que  nunca  paravam  de 
mexer.
- E  um amigo  de vocês,  ele vai ficar um tempo aqui com a 
gente.
Eu estava receoso,  todos os outros estavam me examinando.
— Mas  que não se meta comigo.
“Eu,  me  m eter  contigo,  Zé  Grandão?  nem  em  sonho...”, 
pensava eu.
Ele  não  parava  com  aquela  mão.  Revirava  os  olhos  e  às 
vezes  a  cabeça.  Sua  voz  de  retardado  era  assustadora.  U rin ei 
naquele  cubículo sem janela,  o mais rápido  possível.  Ao  sair do 
banheiro  o  enfermeiro  estava  andando  de  cavalinho  nas  costas 
do Zé  Grandão,  o  urso branco.  Sua passividade  era ilusória,  ele 
era  altamente  agressivo,  um  psicopata  perigoso.  Para  acalmá-lo 
usavam  a  Tortulina,  o  Haloperidol.  Mas  fiquei  sabendo  mais 
:arde  que  no  Zé  Grandão  costumavam  aplicar  o  Triperidol, 
:ujo  efeito  é maior que o  Haloperidol.
Sentei  em  outro  canto,  os  papos  do  R o g ério  estavam  me 
cansando.  Fiquei  fumando  com  os  olhos  fechados,  naquele  sol 
de  fim  de  inverno.  Q u an d o  o  cigarro  ch eg o u  à  xepa,  eu  o 
joguei  fora.  Dois  dos  crônicos,  que já  estavam  me  observando 
há algum tempo, pularam na xepa.  Em meio a mordidas e arra­
nhões,  um  deles  conseguiu  apanhá-la  e  saiu  fumando.  Tirei  a 
carteira  e  dei  um  cigarro  ao  que  havia  perdido  a  disputa.  Seus 
dedos  estavam  m arrom -escuro  de  tanto  fumar  xepa.  Vieram 
outros  querendo  também  cigarros.  Dei  mais  alguns  e  procurei 
outro lugar.
Deveriam ser umas  três  horas  da  tarde:  chamada  dos  rem é­
dios.  Recebi  três  comprimidos  desta  vez.  Em  seguida,  vieram 
bules,  dois;  saco  de pães,  um.  Canecas  enfileiradas,  de  alumínio. 
Tudo veio em cima de uma mesinha com rodas.  Os pães somem, 
a  fila  pela  cevada  com  leite  é  rápida.  Todos  queriam  comer. 
Alguns  do  canto  tam bém  vieram  buscar  o  seu  quinhão,  não 
todos. O enfermeiro ia até eles entregando uma caneca e um pão 
para os  indiferentes.  Comiam devorando  o pão  na primeira b o - 
cada  (não  os do  canto).  Os pães  que  sobravam no  saco  eram  es­
perados pelos gulosos impacientes.  Comiam e comiam, parecen­
do uma porcada na engorda. Mais um ponto para você, Rogério.
Após  o  café-cevada,  acendi  o utro  cigarro.  D e  imediato, 
alguns  crônicos  começaram  a  me  observar.  Q uando  terminei, 
joguei  no  chão  —  a  cena  anterior  se  repetiu.  Eram  três  agora, 
numa  disputa  rápida  e  agressiva.  A  distância,  ficavam  à  espera, 
como  urubus,  esperando  a  guimba.  N o  chão,  o  mais  esperto 
pegava.  Ao  conseguir colocá-la na boca,  não  era mais incom o­
dado pelos outros  competidores.
A necessidade que esses crônicos esquecidos têm de cigarro 
é  algo  tam bém  aterrador.  Mordem-se,  arranham-se  por  uma 
xepa...  homens,  numa  disputa  dessas!  Seres  humanos  ou  feras? 
Em grunhidos lutam pelo grande prêmio: a guimba.  Q u e os fal­
sos moralistas e insensíveis  engulam suas falsidades,  mas a gran­
de realidade  é  que  seria um ato  de  caridade  trazer cigarros para
esses  homens.  Não  trazer bolachinhas  e  doces.  Eles  necessitam 
de  cigarros.  Muitos  podem  achar  absurdo.  Mas  vê-los  agindo 
como cães agredindo-se por u m osso na certa mudaria seu pare­
cer.  Esses  tipos  de  instituições  p oderiam  ter  convênios  com 
fábricas de cigarros e os refugos de cigarros dessas fábricas pode­
riam  ir  para  esses  esquecidos.  Mas  a  falsa  moralidade  de  uma 
sociedade  também falsa nunca iria perm itir um convênio  desse 
tipo.  Preferem deixá-los  como  estão,  escondidos,  rasgando  suas 
carnes por umas xepas  de  cigarros.  Estaria mais  de  acordo  com 
as regras  da nossa moralidade:  cigarro provoca câncer.
Fim de  tarde...  bom  apenas  para  coçar,  curtindo  o peso  do 
nosso  m artírio  de  não  fazer  nada.  A  ociosidade  era  tediosa. 
Alguns jogavam  baralho,  g ru p o  fechado,  até  o  en ferm eiro - 
maconheiro  participou.  Eram  alcoólatras,  grupo  fechado,  elite 
do hospício.
Elite — pinguços conceituados, até um médico e um execu­
tivo  da  família  Fontana,  estavam  ali  conosco.  Esse  médico  era 
clínico,  u m  alcoólatra,  gente  finíssima.  E  o  Fontana,  como  o 
chamávamos,  também  o  era.  Mais  tarde  tive  o  prazer  de  co­
nhecê-los.  O  Fontana,  seu nom e real de família,  era um cara de 
uns  trinta  e  seis  anos  mais  ou  menos.  Tinha  os  cabelos  pretos 
bem cortados  e  um pouco  ondulados.  Magro,  alto,  era um h o ­
mem  m uito  bonito,  parecia  um  galã  de  cinema.  Era  também 
m uito  fino  e  viajado.  As  vezes  eu  o  perturbava  para  que  me 
contasse  suas  viagens  ao  exterior.  Passava  pouquíssimo  tempo 
naquele  pavilhão  dos  infelizes  e  era  logo  transferido  para  os 
apartamentos.  Freguês já da casa,  os enfermeiros puxavam o seu 
saco.  Tinha grana ou a família dele tinha.
O  médico  clínico,  não  me  recordo  de  seu  nome,  estava  ali 
devido  ao  alcoolismo  e  a alguma mutreta ligada  à sua profissão. 
Nunca ficamos sabendo  ao  certo.
Novamente a chamada para os remédios. Deveriam ser qua­
se  seis  da tarde.  Recebi,  dessa vez,  cinco  comprimidos  e a  cáp­
sula vermelha.  Eram  treze  a  quinze  comprimidos,  só  nesse  dia.
Fui  apanhar  água,  lá  naquele  canto.  R o g ério  me  seguiu.  Os 
malditos e indiferentes não se importaram com m inha presença 
relâmpago naquele  canto.
- Austry, você já percebeu quantos comprimidos lhe deram 
hoje?
- J á passou de dez,  eu acho.
- Eles vão impregná-lo de remédio.  Mas comigo não, ó... - 
cuspiu-os na palma da mão e os guardou no bolso.
- Depois eu os jo g o fora.
- Rogério!  você joga os  comprimidos  fora? E por isso  que 
você não sara.
- Cara,  essas  porcarias  não  curam ninguém.  Só  servem pra 
deixá-lo impregnado,  só isso!
- Impregnado,  o que é isso?
-  Impregnado,  xará,  é  ficar como  aqueles ali.  O  sujeito  fica 
vinte e quatro horas por dia viajando,  sem vontade própria,  len­
to, não consegue nem ao menos desabotoar uma camisa sozinho.
Tomei-os assim mesmo,  não sei por quê.
- Cara, já vi que não adianta lhe dar toques. Você é novato, 
daqui a uns dias você vai ver as conseqüências dessas drogas.
- Cara, até agora você só me deixou cabreiro.  Você já falou 
em choque,  em enganação  dos médicos,  em sei lá o quê.  Tudo 
que  você  falou,  até  agora,  foi  coisa  ruim.  Olhe,  sinceramente, 
dá um tempo!
- Austry,  eu só  estou  querendo  te  ajudar...  te preparar para 
o que eles irão fazer contigo aqui dentro, e você poder se defen­
der deles...  E  só isso!
- Eu agradeço,  cara, mas você me deixa mais confuso.
- Este  pavilhão  onde  estamos,  nós  internos  e  os  enfermei­
ros o  chamamos  de  San Q uentin.  O  nome verdadeiro  é  de  um 
doutorzinho,  tem a plaquinha lá fora.  Mas todos aqui o  conhe­
cem pelo apelido de San Quentin,  o mesmo nom e de uma p ri­
são fodida que tem ou tinha nos Estados Unidos.
- E  o que isso  tem a ver?
— Este pavilhão, o San Q uentin, é uma triagem. Todo m un­
do que é internado no Sanatório Bom Recanto é obrigado p ri­
meiro  a  passar  por. este  pavilhão.  Aqui  dentro,  eles  fazem  a 
desintoxicação,  aplicam  o  famigerado  eletrochoque...  fazem  o 
diabo.  Depois você  é  transferido  para  outros pavilhões.  O  cara 
que puder pagar os apartamentos vai pra lá.
—  Q u er  dizer  que  este  pavilhão,  San  Quentin,  é  a  lavagem 
da roupa suja?
— Mais ou menos isso. Este hospital funciona bem na desin­
toxicação dos alcoólatras.  Fazem uma lavagem no sujeito, soro e 
sei lá o quê.  Funciona. Mas em tratamento de viciados em dro­
gas  é um crime o que  eles fazem com a gente,  e...
— Calma Rogério,  eu não tô mais a fim desse papo.
Não  dava  para  continuar  esse  papo  cavernoso  com  o  R o ­
gério.  A porta se  abriu,  todos  entraram,  alguns se  atropelando. 
Nas mesas grandes  os pratos  de alumínio  amassados,  talvez pela 
pancadaria  que,  com  certeza,  pintava.  Tudo  se  repetia:  o  que 
virá na hora do almoço?
Jantei,  não  comi  até  o  fim.  O  televisor,  que  ficava  numa 
prateleira na parede,  na nossa sala,  após o jantar era ligado.  Não 
me  interessei,  fui  para  o  quarto.  Em  to rn o  das  vinte  e  uma 
horas,  outra  chamada  para  os  com prim idos.  Desta  vez,  três 
comprimidos.  E  todo  m u n d o  para  a  caminha.  O  quarto  foi 
trancado  pelo  enfermeiro  n oturno.  Antes,  avisou-me  que  se 
quisesse ir ao banheiro  era  só bater na porta.  Comecei  a repas­
sar tudo, o papo do Rogério, os que ficavam naquele canto, tan­
tos  comprimidos,  minha família...  meus  estudos,  minha turma. 
Virava  de  um  lado  para  o  outro,  mais  que  charuto  na  boca  de 
bêbado.  Co m custo  consegui dormir.
Pela manhã,  quartos abertos,  fomos acordados aos gritos.
— O,  o  café, pessoal!  Todos tomar café. Vamos, vamos logo, 
todo  mundo  de  pé  -  o  enfermeiro  n o tu rn o  fazia  uma  zorra, 
depois sumia.
Levantei  a  fim  de  tomar  um  banho.  N o  chuveiro, já  para 
entrar,  um outro paciente  da nossa sala de jantar disse:
- Vai tomar banho? Vai perder o café.
- Não tô a fim de perder o café. Estou com uma fome! — Só 
lavei o rosto  e  os dentes.
- H oje tem visitas!  - era o  comentário.
Quinta-feira,  dia de visitas.  Será que meu pai vem? Mesmo 
se vier,  será difícil me  deixarem vê-lo.
Q uinta-feira:  visitas,  não  para  todos,  apenas  para  alguns. 
N inguém  para  ver  os  esquecidos.  Esses  esquecidos  e  malditos 
continuavam  encostados  pelo  INPS,  não  p o r  caridade  espírita. 
Infelizes,  foram usados  e mexidos.  Agora,  vegetam como plan­
tas  secas  esperando  a hora de  caírem de  seus  caules.  De  carida­
de,  só  recebem  um  ou  outro  cigarro  de  algum interno  novato. 
O u alguém que  lhes  dá um par de meias furadas.  Essa é  a cari­
dade  que  recebem,  mas  que  trocariam  sem  pestanejar:  o  trapo 
pelo cigarro.  Mantidos em alas proibidas aos olhos de visitantes, 
constituem-se  em  verdadeira  vergonha  para  uma  sociedade  de 
“normais” .  N u m martírio lento,  eles  esperam que  as  drogas  os 
matem,  explorados pela instituição  que  agora  recebe  os  elogios 
da sociedade, p o r mantê-los sem condições mínimas de higiene 
e valorização humana. Já serviram às experiências para o uso de 
novas  drogas,  novas  teses,  novos  tipos  de  tratamento.  Fizeram 
sua parte  como  cobaias.  Agora são lixos humanos.  Empilhados 
como  inúteis,  esperam  lentamente  que  os  efeitos  de  anos  de 
medicamentos  os  matem.  Q u e  caridade  é  essa?  Mais  caridoso 
seria  eliminá-los  de  uma  vez,  limpando  assim  a  vergonha  de 
uma  sociedade  hipócrita.  Sociedade  esta  constituída  por  cida­
dãos  que  sabem  o  que  ocorre  dentro  dessas  instituições  e,  por 
comodismo  e  desumanidade,  se  fazem  de  desentendidos  do 
assunto,  leigos...  e  isso  é  problema para  os  especialistas  da  área. 
E mais cômodo fazer vista grossa.
P o r  um a  bandeira  vil,  que  essa  sociedade  de  hipócritas 
insensíveis  denominou  de  “caridade”,  eles  são  mantidos  vege-
tando  e apodrecendo  com suas fezes.  A essa sociedade de falsos 
caridosos  eu  dou  de  graça  uma  sugestão:  colocar  todos  esses 
inúteis  dentro  de  um  barracão  de  madeira  podre  e  inútil  tam­
bém;  e,  com duas pedras,  raspando uma na outra, até conseguir 
a chama,  atear fogo ao barracão.  Os que conseguirem sair vivos 
do  barracão,  sugiro  matá-los  a  pedradas!  É  mais  caridoso  que 
deixá-los  em cantos malditos,  apodrecendo com suas fezes.
Ao sair do  banheiro  resolvi fazer uma peregrinação  ao fun­
do  escuro  daquele  pavilhão.  Ao  entrar  naquele  corredor,  que 
iniciava logo após as mesas grandes, não consegui chegar nem à 
metade.  O  cheiro  de  fezes  era  insuportável.  Consegui  ver  o 
interior de  um dos  quartos.  Uma  estopa amarela, já  aparentan­
do  algo  podre,  de  uma  cor  amarronzada.  U m  cobertor  velho, 
como os que distribuem nas cadeias,  devia estar duro de sujeira. 
As  paredes  daquilo  que  eu  estava  vendo,  n em  quarto  e  nem 
cova,  tinham  marcas  de  mãos  e  dedos  escorridos.  Eram  fezes, 
merda  podre.  R ealm en te  não  conseguiria  ir  até  o  fundo  do 
pavilhão.  O  cheiro  era  insuportável  e  a  ânsia  de  vom itar  se 
manifestou.  Voltei  ao banheiro,  lavei  o  rosto  e,  olhando-me  no 
espelho,  consegui chorar um pouco.
H oje é quinta-feira,  o hospício está mais alegre. Dia de visi­
tas.  Após  o  café,  fila  no  banheiro.  Muitos  riem  esperançosos. 
Tomam  banho  e  colocam  a  roupa  de  domingo.  Alguns  enfer­
meiros  estão  dando  banho  naquele  crônico  incapacitado  que 
passa os dias lá dentro,  urinado e cagado.  Mas hoje  ele tem visi­
ta,  é dia de banho. Até o cabelinho do goiaba, o  enfermeiro faz 
questão  de  ajeitar com a ponta do pente  sujo,  de dividi-lo bem 
ao meio, bem certinho.  H oje ele tem visita.  Tudo bonitinho...  a 
preparação começa logo após o café da manhã, antes das sete.  O 
grande  espetáculo  está  marcado  para as  três  horas  da tarde,  mas 
são  muitos  preparando-se.  A  direção  do  espetáculo  exige  que 
seja do agrado de todos os ilustres visitantes:  os familiares. Estava 
bem  m elhor  que  o ntem .  U m  agito.  Se  aquela  ociosidade  se 
repetisse hoje,  não daria para agüentar.
- Mas que  agito,  hein,  Rogério!
— Visitas,  é bom ver a família.
- Eles  entram aqui no pavilhão?
- Aqui dentro é expressamente proibida a entrada dos fami­
liares  e pessoas  estranhas.
— N ão querem mostrar como vivemos. Escondem a realida­
de do terror que  é isso.
- Você já está começando a entender este lugar.
-  Também,  ontem  você  não  me  deu  folga.  Não  consegui 
dormir.
— N em com o sonífero  que lhe  deram?
— Não,  eu dormi.  Mas tudo  o  que vi...  não foi fácil.
- E gostou?
— E  o lugar ideal pra  curtir uma férias — rimos —,  onde  esse 
pessoal recebe as visitas?
— N o pátio, lá fora.
— Lá fora não  tem muro,  é só  dar no pinote.
— Já fiz isso,  meus velhos  mandaram um camburão  me  tra­
zer de volta.  Foi pior.
- Cara,  será  que  se  meu pai vier,  eles me  deixam falar com
ele?
—  Tire  o  cavalo  da  chuva!  Seu  pai,  só  daqui  a  quinze  dias. 
Ele sabe disso,  duvido que  ele venha.
- Treze  dias,  então.  Se  eu  tivesse  uma  chance  de  falar com 
meu pai,  não ficaria mais u m dia aqui.
- Não  adiantaria nada.
-  Tá  legal,  Dr.  Sabe-tudo.  Não  vai  tomar banhinho  tam ­
bém e pentear o  cabelinho, pra entrar em cena?
— Mais tarde um dos melhores figurantes irá se produzir. 
Tudo  realmente  era  uma  grande  produção.  O  espetáculo
parecia  uma  estréia  de  teatro.  Os  mínimos  detalhes  eram  lem ­
brados.  O grande cenário  era lá fora.  O interior do pavilhão  era 
proibido à visita de estranhos,  poderiam prejudicar o andamen­
to  do valioso tratamento!
A grande peça acontecia ao ar livre, no imenso jardim flori­
do  do  Sanatório  Bom  Recanto.  Até  o  nom e  é  bonito:  Bom 
Recanto — soa a paz!  O jardim arborizado,  os pássaros cantando 
freneticamente,  paz  e  sossego  no  ar...  Banquinhos  de  madeira, 
todos  pintadinhos  de  branco,  um  recanto  de  namorados  dos 
tempos  da vovó,  só  faltando  a bandinha  tocando  e  o  lago  com 
os  cisnes  nadando.  U m a  paz  celestial,  às  vezes  quebrada  por 
algum grito  de  um  crônico  dentro  do  pavilhão  que  quase  ins­
tantaneamente  é  sufocado pela mão  do  enfermeiro  em sua gar­
ganta.  O  espetáculo  acontecia  para  o  agrado  de  todos,  ou 
melhor,  dos  ilustres  visitantes,  que  a  direção  do  sanatório  fazia 
questão  de  impressionar.  Ao  in tern o ,  não  sobravam  muitas 
chances  de ser ouvido.  U m lugar de  tanta beleza e  tranqüilida­
de impressionava tanto que a família toda queria ficar internada.
Eram sensibilizados  com a dedicação,  calma  e  gentileza dos 
enfermeiros  que  trocavam  o  autoritarismo  e  os  gritos  por falas 
mansas,  na frente  das  visitas.  Alguns  eram  até  bonificados  com 
dinheiro  e  presentes  dos  familiares.  Discretamente,  aceitavam 
essas bonificações.
A  chance  de  nós,  internos,  sermos  ouvidos  era  inexistente 
perante  tamanha  superprodução,  digna  de  H ollyw ood.  N ão 
teríamos a mínima credibilidade, mesmo que rasgássemos o cor­
po  para  provar  que  o  que  ocorria  lá  dentro  era  o  inverso  do 
mostrado aqui fora.
O hospício parecia em festa.  Era quinta-feira,  dia de visitas. 
O  alm oço  tam bém  era  especial,  com  m aionese,  frango  ao 
molho,  macarrão,  arroz,  feijão  e  outros bichos.  Comi  como  há 
muito  tempo  não  comia,  estava  com um b o m apetite.  O  pátio 
ficou aberto na hora das visitas.  Nós,  que não  tínhamos visitan­
tes,  ficamos lá.
Estavam todos os que tinham visitas bem limpinhos. Alguns 
até tomaram um segundo banho  de perfume.  Esperavam ansio­
sos  chegar  a  hora.  Até  o  médico  clínico  estava  rindo,  na  espe­
rança  de  que  seus  problemas  lá  fora  tivessem  tomado  o  rumo
que  ele  esperava.  Com o  ele,  outros  estavam  com  seus  anseios 
renovados,  esperançosos  até  de  irem  embora.  Eram  esperanças 
ousadas e eles estavam alegres com elas,  a ponto de distribuírem 
cigarros aos esquecidos,  mesmo sem eles terem pedido.
Pouco antes das três horas, todos aguardavam ansiosos que o 
enfermeiro,  que  fechou  a  porta  de  acesso  ao  interior  do  pavi­
lhão,  colocasse a cabeça e os chamasse.
Os  crônicos pareciam saber que  todo  o  hospício  estava  em 
alto  astral  e  aproveitavam  as  gentilezas  dos  esperançosos.  C o ­
meçaram  as  chamadas,  saíam  do  pátio  com  sorrisos  até  as  ore­
lhas.  Até eu fiquei com uma certa esperança que meu pai tives­
se  vindo  e  que  eles  me  deixariam  vê-lo.  Era  remota,  mas  não 
impossível.
Durante  os  minutos preciosos  de  espera ficavam impacien­
tes.  Fumavam mais que o normal. Ao ouvir o seu nom e chama­
do,  a  angústia  dava  lugar  a  um  largo  sorriso.  Saíam  do  pátio  e 
levavam seus desejos ardentes, o objetivo maior: ir para casa.  Sa­
biam que teriam de representar também. Não podiam demons­
trar  toda  a  sua  ansiedade  em  sair  daquele  lugar.  Precisavam  se 
controlar  e  mostrar aos  seus  que  estavam  calmos,  conscientes  e 
receptivos.  Controlar-se  ao  máximo  para  mostrar  que  não  era 
mais  necessário  ficar  ali  dentro.  N ão  podiam  e  nem  deviam 
explodir se os familiares fossem contra a sua saída.  Se o fizessem, 
as esperanças iriam se perder.  Tinham que representar também, 
dentro  daquela peça que  envolvia muitos personagens,  sendo  o 
deles o papel mais difícil.
Os  parentes  do  Rogério  também vieram.  Iria  pedir  para  o 
tirarem  dali  ou,  pelo  menos,  transferi-lo  de  pavilhão.  Pois  nos 
outros  pavilhões  se  tinha  a  liberdade  de  pelo  menos  andar  pelo 
jardim do Sanatório, à hora que se quisesse. E nós, ali do pavilhão 
San Quentin,  éramos  controlados  em nossas horas  de pátio.  U m 
pátio de delegacia, pequeno. Rogério saiu também,  esperançoso. 
Ficamos nós:  eu,  os esquecidos e um ou outro que se preparou e 
a  visita  não  veio.  O  horário  de  visitas  terminava  às  dezessete
horas.  Aquela  tarde  foi  diferente  da  anterior.  Desejava  que  o 
Rogério conseguisse o seu objetivo. Meu velho não veio mesmo.
As visitas terminaram.  Os internos vieram derrubando fru­
tas,  doces,  cigarros,  biscoitos  e  balas.  Derrubavam  esperanças. 
Risos  antecipados  tornaram-se  olhares  frustrados. Já  não  riam. 
Angústias  nas  mãos, jogam -nas  no  quarto,  esparramam  pelo 
chão.  De que adiantam aquelas guloseimas?
Os  visitantes  se  foram,  convencidos  pelo  belo  espetáculo 
hollywoodiano.  Os  que  tinham  ensaiado  a  manhã  toda  para 
falar, falaram alguns.  Os ouvidos,  ouviram? Pouco provável que 
ouvissem  o  que  realm ente  era  fundam ental  para  o  in tern o . 
Tudo foi encarado por seus familiares como meras reclamações, 
por  estarem  ali  presos.  As  reclamações  pelos  maus-tratos,  pelo 
isolamento, pelos choques, pelos remédios, pelos crônicos caga­
dos  ao  seu  redor.  Q u an d o  iriam  tirá-los  dali?  Tudo  que  era 
reclamado deixava de ter importância.  O que realmente impor­
tava era que o tratamento  estava sendo feito.
Tratamento  diagnosticado  p o r  uma  bola  de  cristal  ou  por 
adivinhação.  Seria  melhor levar-nos  a  tratamento  com pai-de- 
santo.
A empolgação, que começou pela manhã, deu lugar a um ar 
fúnebre.  Talvez por isso  os psiquiatras digam que as visitas atra­
palham o andamento  do tratamento.
Q u e  tratamento?  Engolir comprimidos  e  ficar preso,  isola­
do, isso é tratamento?
O silêncio  era quebrado  apenas pelos crônicos indiferentes. 
Estes  se  lambuzam  com  doces,  chocolates  e  outras  baboseiras. 
U m grupo de crônicos circunda aquele outro que recebeu visi­
ta e  tem cigarros.  Ficam numa roda,  fumando  um cigarro  após 
o  outro,  até  fumarem  to d o  o  maço  -  depois  dispersam.  Os 
outros internos analisam em suas camas,  cabisbaixos,  onde erra­
ram  ao  falar  com  seus  familiares.  A  outros,  a  esperança  parece 
que irá se  concretizar.  Logo  estarão fora dali.
A chamada para os  remédios  da hora do jantar.  Muitos não 
comeram  o  de  costume,  estavam  empapuçados  pelo  que  lhes 
trouxeram  os  familiares.  Televisão  até  as  nove  da  noite,  outra 
chamada  para  os  remédios.  Tomei  a  mesma  dosagem  de  com ­
primidos  do  dia anterior.  Todos no  quarto,  o n o tu rn o  tranca as 
portas.
— Boa-noite, Austry.
— Boa-noite.
Escuto  o  b arulho  da  chave  na  fechadura,  tudo  escurece, 
apenas a claridade da abertura da porta.  Pensativo,  adormeço.


Nota nossa: aqui interrompemos a transcrição do texto de autoria de  Austregésilo  Carrano  Bueno, publicado em livro com o título CANTO DOS MALDITOS
U m a história verídica que inspirou o filme  Bicho  de sete cabeças. 

Nenhum comentário :

Postar um comentário

soporhoje10@gmail.com

LinkWithin

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...