terça-feira, 22 de abril de 2014

CIDADE DOS ESQUECIDOS, por Andrea Dip


A ideia desta matéria veio de um sonho que tive uma noite.Eu andava por um corredor longo, escuro e esverdeado de hospital psiquiátrico, ouvindo as histórias das pessoas, conversando com com médicos. Acordei resolvida a conhecer de perto esse assunto que tanta gente não lembra que existe: a loucura. O que não imaginava é que, em vez de deparar com o sofrimento psíquico, tropeçaria em problemas escandalosos.

O Brasil tem hoje 42.000 internos em 240 hospitais psiquiátricos. É o terceiro maior repasse do SUS(Sistema Único de Saúde) e,apesar da política do Ministério da Saúde de diminuição gradual dos leitos, 63 por cento das verbas de saúde mental vão para os manicômios.

"Na primeira metade do século 20, através da Liga Brasileira de Higiene Mental, intelectuais simpáticos às ideias eugenistas e racistas do nazifascismo procuraram fundamentar o papel do hospital psiquiátrico como instituição de tratamento. enquanto nos seus porões produziam experiências biológicas e mutiladoras", explica o doutor Dr Nacile Daúd Júnior, psiquiatra. pesquisador e militante
do ainda pequeno movimento anti manicomial no Brasil.

De 1934 (quando surge a primeira lei psiquiátrica que atribui ao poder público a defesa da sociedade "contra os loucos de todos os gêneros", até 1965 já havia no pais 135 hospitais psiquiátricos superlotados. "O hospício no Brasil nasce com uma vocação: a da higienização, que vem de braços dados com uma perspectiva capitalista da produtividade. Se o indivíduo não tivesse a capacidade de produzir, não servia. Então, o hospício brasileiro recebia os indesejáveis, não só os loucos. mas os negros. as prostitutas, os mendigos e os imigrantes. E acabou com o "campo de concentração", diz Maria Cristina Lopes, psicóloga, ex-coordenadora da ONG SOS Saúde e atual diretora de um centro de convivência para doentes mentais em São Paulo.

A década de 1960 inauguraria uma nova fase. "A partir da política privatista pós-64", comenta o doutor Nacile, "expandiu-se o parque asilar através de hospitais psiquiátricos privados, conveniados com o Estado. Em 1966, o INPS ( Instituto Nacional de Previdência Social) ampliou o financiamento de empresas de saúde. De 1966 a 1981, os hospícios passaram de 135 para 430, num total de 105.000 leitos, 80 por cento controlados pela iniciativa privada. Além disso,  a ditadura aproveitou os hospícios para submeter presos políticos ao eletrochoque, contenções, celas fortes e drogas poderosas como a escopolamina, prescrita como 'medida disciplinar'.

A escopolamina era usada por Hitler durante o nazismo, como a droga da verdade. Ela causa sensação de morte iminente "e faz o sujeito confessar qualquer negócio", explica Maria Cristina.

Só no Juquery, hospício em Franco da Rocha, na Grande São Paulo, havia 16.000 internos, nos anos 1960 e 70. Pessoas dormiam amarradas a troncos pelos Pátios, para não fugir.

Austregésilo Carrano, autor do livro Canto dos Malditos, tinha 16 anos quando seu pai achou, em 1974, um baseado na sua jaqueta. O pai o internou. Foram quatro anos de internação em diferentes hospitais. Vinte e uma sessões de eletrochoque, drogas pesadíssimas, maus tratos, Carrano conta no livro - que deu origem ao filme Bicho de Sete Cabeças - que nem sequer recebeu diagnóstico em todo esse tempo. O Canto dos Malditos foi proibido em 2002 e só voltou a circular em 2004. Além de Carrano nunca ter sido indenizado, foi condenado a pagar 60.000 reais aos hospitais onde esteve internado. "Nâo existem indenizações às vitimas psiquiátricas, com exceção recente de um caso de abuso na aplicação de eletroconvulsoterapia em São Paulo", conta ele que hoje luta contra o que chama de "chiqueiros psiquiátricos". 

O país chegou aos anos 90 (a "década do cérebro" da Organização Mundial de Saúde, pelo avanço em remédios contra depressão e outros transtornos mentais) com quase 100.000 pessoas internadas; e a 2006, com mais de 300.000 mortos (ao longo de 154 anos) dentro dos muros dos manicômios, diz o doutor Nacile: "A morte é a face mais cruel da violência inevitável dos hospitais. Os familiares assinam um termo em que a instituição não se responsabiliza por eventuais acidente,. suicídios e outras ocorrências durante a internação. Por isso, raramente denunciam os abusos e violências de que tomam conhecimento. Mesmo com a diminuição dos leitos, o número de mortes se mantém. De 1992 a 2005 morreram dentro dos manicômios aproximadamente 16.000 pessoas. e outras tantas fora de seus muros. mas em decorrência de violências praticadas em seu interior". A violência consiste na administração errada de remédios e de eletrochoque, descaso e contenções malfeitas, por exemplo.

Em 1991 foi encontrado no Juquery um cemitério clandestino com restos de 30.000 cadáveres de homens, mulheres, crianças, bebês e pedaços de corpos, como braços e pernas. "Houve uma denúncia anônima à SOS Saúde. A Assembléia Legislativa de São Paulo constituiu uma comissão parlamentar para investigar o caso", conta Maria Cristina. "Achamos uma italiana que desembarcou no Brasil, mas se perdeu do marido. Como tinha quatro filhos pequenos, nenhum dinheiro e não falava português, não poderia ser aproveitada como força de trabalho. Ela e os quatro filhos foram parar no Juquery e lá ficaram até morrer. Estão enterrados lá. " Sobre presos políticos, nenhum teria morrido no Juquery, mas pelo menos quatro têm registro de entrada: David Capistrano da Costa, ex-deputado do PCB, desaparecido em 1974; Antônio Carlos MeIo Ferreira, o Melinho, da VAR Paimares; Aparecido Galdino Jacinto e Dorgival de Souza Damasceno, da Ação Libertadora Nacional. Muitos dos restos mortais de crianças, segundo Cristina, seriam de filhos de internas com enfermeiros, médicos ou funcionários (não de internos, já que as alas eram separadas em masculinas e femininas). 

E em 1991 aconteceu um incêndio "misterioso" nos arquivos do hospital, durante as investigações. O segundo, porque em 1978 os livros do cemitério haviam pegado fogo e ninguém foi condenado. apesar deter sido provado que o incêndio foi provocado. O processo gerado pelo relatório da comissão da Assembléia foi arquivado por falta de provas e porque "os corpos já estão lá há muitos anos", declarou o doutor Carlos Calsavalla, promotor de Franco da Rocha. Hoje existe uma capela no local, onde há missas e visitas no Dia de Finados.

Nota do Blog: estamos postando trechos de CIDADE DOS ESQUECIDOS, de Andrea Dip, jornalista, por reputarmos este artigo como sendo relevante e da maior importância para esclarecer pessoas ingênuas, além de lutarmos por reformas abrangentes, que nos conduza a um estágio civilizatório digno... e esperamos que todos dediquem, um pouco de tempo,  à leitura do que ela escreveu, neste libelo que denuncia e revela de tantas mazelas ocultas das pessoas comuns, sobre o que os manicômios representaram e representam para o que chamamos de civilização. O artigo será publicado de modo ainda incompleto, pois esperamos acrescentar mais um pequeno trecho que lança luz na escuridão que reina sobre o tema. Infelizmente não poderemos publicar tudo, na íntegra. Mas os fragmentos do que já postamos dá para chegarmos á uma conclusão: muita coisa tem que mudar para melhor, incluindo as chamadas "clínicas" e "centros" de recuperação para dependentes químicos, que também estão se transformando em verdadeiros cemitérios de gente sepultada, em vida, inclusive pessoas portadoras de doenças mentais.


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