segunda-feira, 21 de abril de 2014

Kurt Cobain bate na porta do Céu...


UM ALÉM LEONARD COHEN 
Seattle, Washington 
Abril de 1994 - maio de 1999

"Give me a Leonard Cohen Aftworld, so I can sigh eternally" 
[Dêem-me um além Leonard Cohen para que eu possa suspirar eternamente.] 
De "Pennyroyal Tea". 


NA MANHÃ DE SEXTA-FEIRA, 8 de abril, o eletricista Gary Shith chegou ao número 171 do Lake Washington Boulevar. Smith e vários outros vinham trabalhando na casa desde quinta-feira, instalando um novo sistema de segurança. A policia passara duas vezes por lá e pedira aos trabalhadores que a avisasse caso Kurt aparecesse. Às 8h 40 da sexta-feira, Smith estava perto da estufa e olhou para dentro dela. "Eu vi um corpo estendido lá no chão", contou ele depois para um jornal. "Pensei que fosse um manequim. Depois notei que havia sangue na orelha direita. Vi uma espingarda estendida ao longo de seu peito, apontando para o seu queixo." Smith ligou para a policia e, em seguida, para sua empresa. Um amigo do plantonista da empresa incumbiu-se de avisar a emissora de rádio KXRX. "Ei, caras, vocês vão ficar me devendo uns bons ingressos para o Pink Floyd por isso", disse ele ao Dj Marty Riemer. 

A policia confirmou que o corpo de um jovem havia sido encontrado na casa dos Cobain e a KXRX divulgou a noticia. Embora a policia ainda não o tivesse identificado, os primeiros boletins noticiosos 
especulavam que se tratava de Kurt.

Após vinte minutos, a KXRX recebeu um telefonema choroso de Kim Cobain, que se identificou como irmã de Kurt, e perguntou, furiosa, por que eles estavam transmitindo um boato tão falacioso. Disseram a ela que ligasse para a policia. Kim ligou e, depois de ouvir a noticia, ligou para sua mãe. Um repórter do Aberdeen Daily World logo apareceu na porta da casa de Wendy. 

Sua declaração seria passada para a Associated Presss e reproduzida no mundo inteiro: "Agora ele se foi e entrou para aquele clube estúpido. Eu disse a ele para que não entrasse para aquele clube estúpido". Ela estava se referindo coincidência de que Jimi Hendrix, Janis Joplin, Jim Morrison e Kurt haviam morrido aos 27 anos de idade. Mas uma outra coisa que sua mãe havia dito não era noticiada em nenhum outro jornal — embora nenhum pai que tenha ouvido a noticia da morte de Kurt precisasse lê-la para saber da perda que ela sofrera. Ao final da entrevista, Wendy disse sobre seu único filho homem: "Eu nunca mais vou abraça-lo novamente.  Não sei o que fazer. Não sei para onde ir". 

Don ficou sabendo da morte do filho pelo rádio — ele estava arrasado demais para conversar com repórteres. Leland e Íris souberam pela televisão. Íris teve de se deitar depois da notícia — ela não sabia se o seu coração debilitado poderia suportar aquilo. 

Enquanto isso, em Los Angeles, COurtney havia se tornado paciente do Exodus, depois de ter se internado na quinta-feira á noite. Na mesma quinta-feira ela havia sido detida no hotel Península depois que a policia chegou ao seu "Quarto sujo de vômito e sangue" e encontrou uma seringa, um bloco de receituário em branco e um pequeno pacote que eles acreditaram tratar-se de heroína (verificou-se que a substância eram cinzas de incenso hindu). 

Depois de ser libertada mediante uma fiança de 10 mil dólares, ele se registrou para um tratamento como paciente internada, desistindo da desintoxicação em hotel. 

Na manhã da sexta-feira, Rosemary Carroll chegou ao Exodus. Quando Courtney viu a expressão no rosto de Rosemary, soube da noticia antes mesmo de ouvi-la. As duas mulheres finalmente se entreolharam durante vários minutos em total silêncio até que Courtney proferiu uma única pergunta; "Como?" Courtney saiu de Los Angeles num Learjet com Frances, Rosemary, Eric Erlandson e a babá jackie Farry. Quando chegaram á casa do lago Washington, ela estava cercada por equipes dos telejornais, que colocaram lonas sobre a estufa para que a mídia não ficasse espiando o que havia lá dentro. 

Antes que os toldos fossem armados, o fotógrafo Tom Reese do Seattle Times tirou algumas fotos da estufa através de um buraco no muro. "Eu achei que poderia não ser ele", lembra Reese, "Pois podia ser qualquer um. Mas quando vi o tênis, eu soube." A foto de Reese, que saiu na primeira página do Seaatle Times de sábado, mostrava o que se via pelas portas francesas, ou seja, metade do corpo de Kurt — sua perna direita, o tênis e seu punho cerrado junto a uma caixa de charutos. Naquela tarde, o legista de King County emitiu uma declaração confirmando o que todos já sabiam: 

"A autópsia demonstrou que Cobain morreu de um ferimento de tiro de espingarda em sua cabeça e neste momento o ferimento parece ter sido auto-infligido". O dr. Nikolas Hartshorne fora quem realizara a autópsia — a tarefa foi particularmente comovente porque outrora ele havia promovido uma apresentação do Nirvana na faculdade. "Na época relatamos ferimento de tiro de espingarda "aparentemente" auto-infligido porque ainda queríamos colocar todos os pingos nos is", lembra Hartshorne. 

"Não havia absolutamente nada que indicasse que se tratava de alguma coisa diferente de um suicídio." No entanto, devido a atenção da mídia e da celebridade de kurt, a policia de Seattle apenas concluiu a 
investigação depois de quarenta dias e passou mais de duzentas horas entrevistando os amigos e a família de Kurt. 

Apesar de rumores em contrário, foi possível identificar o cadáver como sendo de kurt, embora seu aspecto fosse macabro: as centenas de bolinhas de chumbo do cartucho de espingarda haviam expandido sua cabeça e o haviam desfigurado. A policia retirou digitais do corpo e as impressões correspondiam aquelas já arquivadas no caso da prisão por violência doméstica. Embora uma análise posterior da espingarda concluísse que "quatro fichas de impressões latentes levantadas não contêm nenhuma impressão legível", Hartshorne disse que as impressões na arma não eram legíveis porque esta teve de ser retirada á força da mão de Kurt depois que se instalara o rigor mortis. "Eu sei que suas impressões digitais estão lá, porque ele estava com a arma na mão", explica Hartshorne. Determinou-se que a data da morte foi o dia 5 de abril, embora possa ter sido 24 horas antes ou depois disso. Muito provavelmente. Kurt já estava morto na estufa enquanto várias buscas ocorriam no prédio principal da residência. 

A autópsia encontrou traços de benzodiazepinas (tranqüilizantes) e heroína no sangue de Kurt. O nível de heroína encontrado era tão alto que mesmo Kurt — famoso pela enorme quantidade que tomava — não poderia ter sobrevivido por muito mais tempo do que o que levou para disparar a arma. 

Ele havia lavrado um feito bastante notável, embora portasse semelhanças com os de seu tio Burle (tiros na cabeça e no abdome) e os de seu bisavô James Irving (que se esfaqueara no abdome e depois rasgara os pontos): Kurt conseguiria se matar duas vezes, usando dois métodos igualmente fatais. 

Courtney estava inconsolável. Insistiu para que a policia lhe desse o casaco de veludo manchado de sangue de Kurt, que ela vestiu. Quando os policias finalmente deixaram o local, e com apenas um guarda de segurança como testemunha, ela reconstituiu os últimos passos de Kurt, entrou na estufa — que ainda tinha de ser limpa — e mergulhou as mãos em seu sangue no chão, ajoelhada, ela rezou, uivou e gemeu de dor, ergueu as mãos cobertas de sangue para o céu e gritou "Por quê?". Ela encontrou um pequeno fragmento do crânio de Kurt com cabelo preso a ele. Ela lavou e passou xampu nesse horripilante suvenir. E depois começou a pagar sua dor com drogas. Naquela noite, ela vestiu várias camadas de roupas de Kurt — elas ainda tinham o seu cheiro. Wendy chegou, e mãe e nora dormiram na mesma cama, agarrando-se uma á outra durante a noite. 

No sábado, 9 de abril, Jeff Mason foi incumbido de levar Courtney até a agência funerária para ver o corpo de Kurt antes de ser cremado — ela já tinha solicitado que fossem feitos moldes de gesso de suas mãos. Grohl também foi convidado e declinou do convite, mas Krist compareceu, chegando antes de Courtney. Ele passou alguns momentos a sós com seu velho amigo e desatou a chorar. Quando ele saia, Courtney e Mason foram introduzidos na sala de inspeção. Kurt estava sobre uma mesa, vestido com suas roupas mais elegantes, mas seus olhos tinham sido costurados. Era a primeira vez em dez dias que Courtney viu o marido e foi a última vez que seus corpos físicos ficaram juntos. Ela acariciou seu rosto, falou com ele e cortou uma mecha de seus cabelos. Depois, baixou as calças dele e cortou uma mecha de seus pêlos púbicos — seus adorados púbicos, os pelos que ele esperara por tanto tempo quando adolescente, de algum modo precisavam ser preservados. Finalmente, ela subiu em cima de seu corpo, abraçando-o com as pernas e recostou a cabeça em seu peito e lamentou: "Por que? Por quê? Por quê?". 

Naquele dia os amigos tinham começado a chegar para confortar Courtney e muitos trouxeram drogas, que ela ingeria indiscriminadamente. 

Entre as drogas e seu pesar, ela estava uma calamidade. Os repórteres telefonavam a cada cinco minutos e, embora ela não tivesse muito em condições de falar, de vez em quando atendia ás ligações para fazer perguntas, não para respondê-las: "Por que Kurt fez isso? Onde ele esteve na semana passada?". Como muitos amantes enlutados, ela se concentrava nos detalhes minúsculos para se desviar de sua perda. Ela passou duas horas ao telefone falando com Gene Stout, do Seattle Post-Intelligencer, ponderando essas cismas e declarando: "Eu sou durona e posso agüentar tudo. Mas não 
posso agüentar isto". A morte de Kurt ganhou a primeira página do New York Times e dezenas de repórteres de televisão e jornais desembarcaram em Seattle, tentando cobrir uma matéria em que poucas fontes falariam com a mídia. A maioria deles enviava artigos opinativos sobre o que Kurt significava para uma geração. O que mais se poderia dizer? 

Era preciso organizar um funeral. Susan Silver da Soundgarden tomou a iniciativa e marcou um culto reservado em uma igreja e, simultaneamente, uma vigília pública á luz de velas no Seattle Center. 

Naquele fim de semana, uma lenta procissão de amigos chegou á casa do lago Washington — todos pareciam com neurose de guerra, tentando encontrar explicações para o inexplicável. Para aumentar o seu pesar havia o desconforto físico: na sexta-feira, quando Jeff Mason chegou, encontrou o tanque de óleo completamente seco. Para aquecer a enorme residência, ele começou a enviar limusines para comprar lenha da Safeway. "Eu estava quebrando cadeiras porque a lareira era o único meio de aquecer a casa", lembra ele. Courtney estava no quarto do casal no andar de cima, embrulhada em camadas de roupas de Kurt, gravando uma mensagem para ser apresentada na celebração pública. 


Na tarde de domingo, a vigília pública foi realizada no Pavilhão da Bandeira do Seattle Center e 7 mil pessoas participaram, levando velas, flores, cartazes feitos em casa e algumas camisa de flanela em chamas. Um conselheiro de suicídio discursou e incentivou os jovens em dificuldades a pedirem ajuda, enquanto os Djs trocavam recordações. Uma mensagem curta de Krist foi divulgada: 
Lembramos-nos de Kurt pelo que ele foi: afetuoso, generoso e terno. Guardaremos a música conosco. Nós a teremos para sempre. Kurt tinha uma moral em relação a seus fãs que estava enraizada no seu modo punk rock de pensar: nenhuma banda é especial: nenhum músico é rei: se você tem uma guitarra e muita emoção, apenas bata alguma coisa com força e com vontade — você é o superastro. Plugue os tons e ritmos que são universalmente humanos. Música. Que diabo, use a guitarra como um tambor. Capte um canal legal e deixe-o fluir de seu coração. Era desse nível que Kurt falava conosco: em nossos corações. É ai que a música sempre estará, para sempre. A fita de Courtney foi reproduzida em seguida. Ela a havia gravado tarde da noite anterior na cama do casal. Ela começava dizendo: Eu não sei o que dizer. Estou me sentindo do mesmo jeito que você. Caras, se vocês não sentirem isso para sentar-se neste quarto onde ele tocava guitarra e cantava, e não se sentirem honrados por estarem perto dele, vocês estão loucos. Seja como for, ele deixou um bilhete. Parece mais uma carta ao maldito editor.

Eu não sei o que aconteceu. Quer dizer, isto ia acontecer, mas poderia ter sido quando ele tivesse quarenta anos. Ele sempre disse que iria sobreviver a todos e chegar aos 120 anos de idade. Eu não vou ler todo o bilhete para você, porque o resto não é da conta de nenhum de vocês. Mas parte do bilhete é para você. Eu realmente não acho que ler isto tire a dignidade dele, considerando que é dirigido á maioria de você. Ele é um tremendo imbecil. Eu quero que você digam "imbecil" bem alto. A multidão gritou "imbecil". E então Courtney leu o bilhete de suicídio.

No curso dos dez minutos seguintes, ela mesclou as palavras finais de Kurt com seus próprios comentários. Quando leu a parte em que Kurt mencionava Freddie Mercury, ela gritou "Pra, Kurt, porra! E dai? Então não seja um astro do rock, seu imbecil". Onde ele escrevia sobre ter "amor demais", ela perguntou: "Então, por que você não ficou?". E quando citou a passagem que dizia "o sensível, insatisfeito, pisciano, pequeno homem de Jesus", ela lastimou: "Cale a boca! Safado! Por que você não aproveitou?".

Embora ela estivesse lendo o bilhete para a multidão — e para a mídia —, ela falava como se Kurt fosse seu único ouvinte. Perto do final, antes de ler a frase de Neil Young citada por Kurt, ela advertiu: "E não lembre disto porque é uma mentira sacana: "É melhor queimar do que se apagar aos poucos". Meu Deus, você é um imbecil!". Ela terminou o bilhete e então acrescentou: Lembrem-se, isto é tudo besteira!. Mas eu quero que vocês saibam de uma coisa. Aquela asneira de "amor exigente" dos anos 80 não funciona. Não é real. Não funciona. Eu deveria ter deixado, todos nos deveríamos ter deixado que ele se entorpecesse. Deveríamos ter deixado que ele tivesse aquilo que o fazia sentir-se melhor, que fazia seu estômago se sentir melhor, deveríamos ter deixado ele ter aquilo em vez de tentar arranca-lhe a pele. Vão para casa e digam a seus pais. "Nem pensem em vir com essa asneira de amor exigente para cima de mim, porque essa porra não funciona". É o que eu penso.

Estou me deitando em nossa cama e estou realmente triste, e me sinto do mesmo jeito que vocês se sentem. Eu realmente sinto muito, caras. Eu não sei o que poderia ter feito. Eu gostaria de poder ter estado aqui. Eu gostaria que eu não tivesse ouvido as outras pessoas. Mas eu ouvi. Tenho dormido toda noite com a mãe dele e acordo de manhã e acho que é ele porque os corpos deles são do mesmo tipo. Agora eu tenho que ir. Apenas digam a ele que ele é uma sacana, está bem? apenas digam, "Sacana, você é um sacana". E que eu o amo. Enquanto a extraordinária fita de Courtney estava sendo reproduzida no Seattle Center, do outro lado da cidade, setenta pessoas se reuniram na Unity Church of Truth para a celebração reservada. "Não havia tempo para um programa ou convites", lembrou o reverendo Stephen Towles, que presidiu a cerimônia. A maioria dos presentes fora convidada por telefone na noite anterior. Vários dos amigos mais íntimos de Kurt — inclusive jesse Reed — foram esquecidos ou não conseguiram chegar a tempo por terem sido avisados muito em cima da hora. A multidão incluiu um contingente da Gold Mountain e carradas de amigos de Olympia. Bob Hunter, o velho professor de arte de Kurt, era um dos poucos de Aberdeen. Mesmo a ex-namorada de Kurt, mary lou Lord, compareceu e se sentou nos fundos da igreja. Courtney e Frances estavam na frente, ladeadas por Wendy e Kim; as mulheres Cobain pareciam ser a única coisa que impedia Courtney de desmontar. Don e Jenny e Leland estavam presentes; Íris estava muito doente. Tracy Marander estava lá e com certeza tão desolada quanto a família — ela havia sido tão intima de Kurt quando seus parentes sanguíneos.

Dentro da igreja, os pranteadores encontraram fotos de Kurt aos seis anos de idade, expostas nos bancos. O reverendo começou com o Salmo 23 e então disse: "Como um vento que chora pelo universo, o tempo leva consigo os nomes e feitos dos conquistadores e dos cidadão comuns. E tudo aquilo que fomos e tudo que permanece, está nas memórias daqueles que se importaram porque passamos por esse caminho, mas apenas por um breve momento. Estamos aqui para lembrar e libertar Kurt Cobain, que viveu uma vida curta, mas que foi longa em realizações". Towles recitou a história do Buda Dourado, que passou anos escondido sob uma camada de barro antes de seu verdadeiro valos ser conhecido e concluiu com um poema intitulado "O viajante". Depois, pediu á platéia para considerar uma série de perguntas, destinadas a fazê-lo pensar sobre Kurt. Ele perguntou; "Havia assuntos inacabados entre você?". Se Towles tivesse pedido para que levantasse as mãos em resposta, a sala estaria cheia de braços erguidos. Em seguida, Towles pediu que se aproximassem e compartilhassem suas recordações.

Bruce Pavitt da Sub Pop falou primeiro e disse: "Eu o amo, eu o respeito. É claro que estou alguns dias atrasado para expressar isto". Dylan Carlson leu um texto budista. Krist leu anotações preparadas, semelhantes á sua mensagem gravada.

Danny Goldberg falou das contradições em Kurt, de como ele dizia que odiava a fama e, no entanto, se queixava quando seus vídeos não era exibidos. Goldberg disse que o amor de Kurt por Courtney "foi uma das coisas que o mantiveram seguindo", apesar de sua constante depressão. E Goldberg falou de Aberdeen, embora na perspectiva de um nova-iorquino: "Kurt veio de uma cidade da qual ninguém ainda tinha ouvido falar e seguiu em frente para mudar o mundo". E então Courtney se levantou e leu o bilhete de suicídio que estava em suas mãos. Ela bradou, chorou, lamentou e mesclou o bilhete de Kurt com trechos bíblicos do Livro de Jó. Encerrou falando de Boddah e de como este amigo imaginário era importante para Kurt. Quase ninguém no salão sabia de que ela estava falando, mas a menção do amigo imaginário da infância de Kurt foi o bastante para fazer Wendy, Don, Kim, Jenny e Leland soluçarem em silêncio. O reverendo Towles encerrou a cerimônia com uma leitura de Mateus 5:43.

Quando o culto terminou, as velhas rixas voltaram. Mary Lou Lord saiu, receando por sua vida. Don e Wendy mal se falaram. E um dos amigos de Kurt de Olympia ficou tão ofendido pelos comentários de Danny Goldberg que, no dia seguinte, fez circular uma paródia por meio de fax. Mas em parte alguma a divisão foi mais evidente do que na programação de duas vigílias em competição depois do culto.

Uma delas foi realizada por Krist e Shelli e a outra por Courtney, e só uns poucos enlutados compareceram a ambas. Courtney se atrasou para a vigília em sua casa, já que depois da cerimônia ela se aventurara até a vigília á luz de velas. Lá ela distribuiu algumas roupas de Kurt para fãs que ficaram surpresos ao vê-la agarrando ao bilhete de suicídio. "Foi incrível", lembro o segurança James kirk. "Ele não estava num envelope de plástico, nem nada. Ela o mostrava aos garotos e dizia, "Eu sinto muito". No caminho de volta para casa, Courtney parou na emissora de rádio KNDD e exigiu tempo no ar "Eu quero entrar no ar e mandá-los parar de tocar Billy Corgan e só tocarem Kurt", anunciou ela A emissora educadamente a mandou embora.

Uma semana depois, Courtney recebeu a urna com as cinzas de Kurt. Ela pegou um punhado e o enterrou sob um salgueiro na frente da casa. Em maio, colocou o resto em uma mochila de ursinho e viajou até o mosteiro budista Namgyal, perto da Itaca, estado de Nova York, onde procurou consagração para as cinzas e absolvição para si mesma. Os monges abençoaram os restos e usaram um punhado para fazer uma escultura comemorativa Tsatas.

A maior parte dos restos mortais de Kurt ficou depositada em uma urna no endereço do Lake Washington Boulevard, 171, até 1997, quando Courtney vendeu a casa. Ela se mudou para Beverly Hill com Frances e a urna de Kurt. Antes de vender a casa, ela insistiu em um acordo que lhe permitia voltar um dia e remover o salgueiro.

Cinco anos depois do suicídio de Kurt, no dia 31 de maio de 1999, o memorial Day, Wendy organizou um culto final para seu filho. O plano era que Frances espalharia as cinzas de Kurt em um riacho atrás da casa de Wendy enquanto um monge budista recitaria uma oração. Naquela semana, Courtney e Frances já estavam de férias no noroeste. Depois da morte de Kurt, Courtney se tornaria intima de Wendy e havia comprado para ela uma casa de 400 mil dólares, com um grande terreno, nos arredores de Olympia.

Era nos fundos dessa casa que se planejava celebrar o culto e um punhado de parentes e amigos haviam sido convidados. Embora Wendy não convidasse pessoalmente Don, os empresários de Courtney o convidaram e ele compareceu. Mas algumas rixas de família ainda continuavam: Leland, que estava a apenas meia hora de distância — e passava a maioria de seus dias sozinho em seu trailer depois que Íris morreu em 1997 —, não foi chamado.

Courtney convidou Tracy Marander e ela compareceu, desejando dar um último adeus a Kurt. Quando Tracy chegou e viu Frances, ficou confusa com a beleza da menina — descalça, usando um vestido púrpura, os olhos marcadamente parecidos com os de um menino que ela outrora amara. Esse era um pensamento que ocorreria a Courtney todos os dias de sua vida.

No curso dos não após a morte de Kurt, muitos haviam sugerido que fosse erguido um memorial em Aberdeen, e o lugar em que ele nasceu também poderia ter servido como um local apropriado para espalhar suas cinzas.

Espalhar Kurt debaixo de sua ponte mistificadora teria sido uma espécie de justiça cruel e irônica literal — pela primeira vez, ele dormiria lá. Mas, em lugar disso, enquanto o monge entoava as orações, Frances bean Cobain, com seis anos de idade, espalhou as cinzas do pai no riacho McLane 
— emas se dissolveram e flutuaram na corrente. Em diversos sentidos, este era, também, um local adequado para o descanso. Kurt havia encontrado sua verdadeira musa artística em Olympia e, menos de oito quilômetros adiante, ele se sentava num apartamento insignificante, que cheirava a mijo de coelho, e compunha canções o dia inteiro. Essas canções sobreviveram a Kurt e até a seus demônios mais tenebrosos. Como certa vez observou seu pai adotivo temporário Dave Reed, numa das melhores sínteses já feitas sobre a vida de Kurt: "Ele tinha o desespero, não a coragem, para ser ele mesmo.

Uma vez que você tem isso, você não pode dar errado, porque você não pode cometer nenhum erro quando as pessoas o amam por você ser você mesmo. Mas, para Kurt, não importava que as outras pessoas o amassem: ele simplesmente não se amava o bastante".

Havia ainda outra peça maior do destino, e uma gema de história antiga que vinculava esse pedaço particular de água e terra e ar a esses restos mortais: logo acima do morro, a cerca de quinze quilômetros dali, na nascente do riacho McLane e de todos os córregos da área, estava a pequena cadeia de montanhas de Washington conhecida como as black hills. Era lá que, anos antes, uma jovem família ia pela estrada de duas faixas, passava pela chamada Fuzzy Top mountain.

No carro estava mamãe, papai, uma filha bebê e um garotinho de seis anos, com os mesmos olhos azuis etéreos de Frances Cobain. Não havia nada no mundo que o garoto gostasse mais do que andar de trenó com sua família e, durante o trajeto desde Aberdeen, ele implorava ao pai que dirigisse mais depressa porque não conseguia agüentar a espera. Quando o Camaro chegava a uma parada perto do cume da Fuzzy Top, o menino saia correndo, agarrava seu trenó Flexible Flyer, ocupava um ponto de partida para descer a montanha e disparava como se o seu vôo por si só pudesse de algum modo para o tempo. No pé da colina, ele acenaria com a mão enluvada para sua família e um sorriso largo e morno lhe assomaria ao rosto, os olhos azuis brilhando ao sol de inverno.

FIM

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