Faz um bocado de tempo que disse a um companheiro de alojamento que o remédio era esquecer, apagar tudo que se relacionasse com o processo da adicção da memória, mas é impossível deletar a memória. O que podemos fazer com ela e tentar retoca-la, reeditando-a. Eu gostaria de passar uma borracha nos bons e maus momentos da minha adicção ativa e, em certos momentos vividos em estado de recuperação.
Alguém pode estranhar que eu diga que existiram momentos bons. Sim, existiram, não posso nega-los. Mas preciso apaga-los dos meus registros, preciso não lembrar que existiram. Já os maus momentos tendemos esquecê-los, naturalmente, devido ao processo seletivo...
Também devo confessar que foram muito poucos os momentos felizes e que em minhas recordações quase não consigo vê-los, de tanto fixar-me nos maus momentos e esses maus momentos foram fruto de inúmeras insanidades, da repetição delas, da minha inconsequência. E, sem querer contemporizar comigo mesmo, um organismo intoxicado, não pode nos conduzir a bons pensamentos. Isso você vai dizer que é elementar, que é obvio, tudo bem. Compreendo isso tudo. Viver só por hoje requer que eu esqueça o passado, é um proposição que nem sempre sigo e reconheço que sempre pintam recordações, boas e más, alegres e tristes e que, muitas vezes sinto dificuldade em preencher este vazio que faz lembrar o que é importante esquecer.
Falta-me muitas coisas. Hoje eu me sinto fortalecido, mas, quando verifico que certas lembranças afloram, eu me preocupo.
Olhe bem, não sou um cara que alguém possa dizer: "ele é fissurado". Ou, ele é obsessivo compulsivo. Quando desencontrado e, ainda sob efeito das drogas no organismo, mesmo estando limpo, me ocorriam certos impulsos e estes impulsos eram fruto de boas recordações. Durante o uso, eu era a própria loucura em ação. Agora, ninguém que me conheceu limpo vai poder dizer que a minha dependência era química. Eu, por mais que tivesse usado bastante, quando queria parar, parava e não sentia a menor falta. E só recaia por conta de outras razões, de futilidades, de certas carências afetivas. Quando em inicio do processo de abstinência eu não sentia porra nenhuma. Ocupava-me e pronto. O risco era exatamente lembrar o que deve ser esquecido e quando lembro é porque algo está me faltando.
Atualmente vivo um momento bastante delicado e tenho que prosar com pessoas que eu, sem presunção alguma, acho que vivem em um mundo completamente diferente do meu mundo careta. Gosto de arte, de música, de cinema, rádio, televisão, de jornais, revistas e de conversar com pessoas que tenham um conteúdo que me acrescente algo. Não tenho AA, nem NA e vou dizer uma coisa, tenho preparo, tenho literatura de auto-ajuda das citadas irmandades. Mas existe algo que vai de encontro com minha personalidade. Não gosto de ser um cara "apaixonado" por AA, nem NA, gosto dessas irmandades dentro de um padrão de normalidade.
Não quero viver como um sujeito catequizado, evangelizado, como um crente chato, que só fala de bíblia. Isso cria em mim um grande desconforto. Também sei que, embora com pessoas ao meu redor, me sinto só. Sou um ausente nesse meio e também um solitário, com um senso crítico aguçado e eu não quero me tornar num ser irônico, chato, pois tenho que compreender determinadas limitações, minhas e dos que me cercam.
Minha terapia é ligar para uma filha e curtir o alto astral dela, os risos e as brincadeiras. Compartilho com ela e gosto. hoje não deu para conversar com ela. Chato. Sinto falta dela, mesmo quando ela liga, só pra me dar um alô. Isso é confortável e não existe mais em meu mundo outra pessoa senão ela. Leio e-mails de companheiros da AABR, mas não posto nada. Ler blog de codependentes me satisfaz, preenche-me, soma...
No universo em que vivo há gente que tem um papo agradável, que tem conteúdo, mas são pessoas ocupadas e eu me tornei um desocupado que busca na internet baixar aplicativos para testes. Falta-me uma TV, a conexão que uso, atualmente, é muito lenta e lembra as antigas conexões discadas. Também falta um rabo de saia que goste de um bom papo. É salutar conversar com alguém do sexo oposto. O perfume de mulher já é algo que satisfaz e não preciso ir mais além, uma boa conversa me satisfaz e não tenho segundas intenções.
Então, hoje, resolvi jogar conversa fora escrevendo essas coisas. Sinto falta daqueles papos acadêmicos, dos meios que frequentava e de estar sempre produzindo algo novo e escrevendo outras coisas mais dignificantes do que ficar falando em drogas. Hoje resolvi partilhar com qualquer anônimo.
Mas eu supero esta fase. Quando estou determinado, creia, nada me derruba. Agora o lado risível deste texto são as interpretações. Nele existem sinais de recaída e isso é uma droga, porque um codependente lê e, então, passa a me patrulhar. Ao invés de ajudar, entra na sacanagem de pensar droga de drogas e isso é um pé no saco. Mas estou consciente desses efeitos colaterais. Codependentes são tão exatos, que posso advinha-los. São como bula de remédios. Ah, o remédio é esquecer e eles não entendem o que quero dizer, do começo ao fim.
Lhe compreendo...kkk..por que meu marido desabafa exatamente a mesma coisa...que certos vazios não tem exatamente a ver com a falta de droga e que falar somente sobre droga..não da...sim ele aceita..pelo menos só por hoje..ir ao grupo..mais tb não quer "catequizar"..rs...quer ter uma vida normal..jogar papo fora..namorar..ter uma vida...se sentir querido..ele tb não se considera compulsivo..tb não o considero...visto que fica até que algum tempo limpo...e o que leva a usar é o sentimento de vazio..o qual ele não sabe lidar..tem haver com a droga e não tem...tb..são dois problemas..o vazio emocional...e a falta de habilidade em lidar com esse vazio..que o relembra do "remédio" que preenche esse vazio...o maldito ciclo...esse vazio não é exclusivo de adicto...o que é exclusivo de adicto é talvez a forma de preenche-lo...esse vazio..a humanidade toda sente...eu sinto..saudade do bom que já passou...vontade de reviver..certas coisas...passa...e acabamos encontrando algo novo que nos preencha...momentos felizes...e assim a vida vai passando...dias bons...dias não tão bons...força pra recomeçar...motivos pra sorrir...e continuar a caminhar...equilibrar a vida...tmj..nessa caminhada....e só por hoje...eu tenho preenchido meu vazio com novos planos...fique com Deus
ResponderExcluirGrato Kel, por me retirar desse monólogo de adicto. Existe um vazio emocional, realmente. Também há o vazio existencial, a ânsia de viver com sobriedade, de retomar a vida normalmente. Também existe a angústia da finitude do ser, que deprime, mas que não é o que me bole por dentro. O não querer lembrar e o me pegar lembrando, é contraditório. Temo o que Freud disse sobre a relação que há entre o "ID" e o "EGO". Onde um esteve, o outro estará. Por exemplo, não é bom sinal, pra mim, sonhar com drogas. Atualmente estou limpo, sph, e não sinto vontade de usar nada. Mas há em mim, também, uma ausência de sintonia em relação a algumas pessoas que estão próximas. Elas vivem em um "canal" e estou em "outro". É algo chato o sentimento da "solidão" quando há gente perto da gente. Tentei, através do post, sinalizar alguma coisa boa e, no final, as pessoas próximas reagiram do modo que esperava... É muito engraçado verificar como existem codependentes tão previsiveis. Hoje recebi um telefonema sintomático: - Onde você estava, pois lhe telefonei e você não atendia. Expliquei que o telefone estava desligado e quando o liguei, a operadora estava sem sinal. Depois quem estava perto me olhava com aqueles olhos de quem quer me esganar e o interessante é que acabo rindo desses retratos caricaturais. São charges muito interessantes... Gostei de sua intervenção. Vou tentar lidar com meus vazios, lembrando aos que o adicto é como um copo vazio: está cheio de ar!
ExcluirChico e Gil compuseram uma canção intitulada "Copo Vazio"
Valeu a força!
Sou codependente e te entendo! Mesmo eu nunca ter usado fisicamente nenhuma substância, me sinto sozinha como consequências das drogas!
ResponderExcluir"Não precisa ser fácil, eu só preciso saber que é possível"
Grato, pelo apoio. Visitei seu blog, que julguei interessante. Um estilo novo de escrever, muito legal. Mas não comentei. Me sentiria como um intruso, ao menos foi o sentimento que me invadiu no momento.
ExcluirPois bem, "me sinto sozinho como consequência das drogas". Creio, que as drogas só agravaram essa sensação de solidão, que existia antes delas.
Olhe, andei por entre blogs e achei uma coisa que compartilho e que achei interessante pois foi escrita por uma codependente. Como achei bonito, vou transcrever :
"A codependência é tão grave quanto a dependência, e por isso preciso me dedicar a mim mesma, me amar mais.
Tem uma canção do Skank, linda, por sinal, que traduz bem me meus devaneios:
"E quando eu estiver triste
Simplesmente me abrace
E quando eu estiver louco
Subitamente se afaste
E quando eu estiver fogo
Suavemente se encaixe
E quando eu estiver triste
Simplesmente me abrace
E quando eu estiver louco
Subitamente se afaste
E quando eu estiver bobo
Sutilmente disfarce...
Mas quando eu estiver morto
Suplico que não me mate (não)
Dentro de ti
Mesmo que o mundo acabe enfim
Dentro de tudo que cabe em ti"
Às vezes, quando estamos recaídas, ou confusas, ou seja lá o que for, tudo que a gente precisa é de um abraço, um aconchego, ou mesmo o silêncio.
Não precisamos de palavras que nos deixam mais confusas ou tristes..."
Esses sentimentos de codependentes parecem confusos, mas não são. Existe um quê de beleza nas coisas que todas as codependentes escrevem e eu procuro entender uma coisa que denomino como "laços que nos une e ao mesmo tempo nos separa". Será que a droga é um mero agente catalisador de uma reação química esquisita que ocorre dentro das nossas cabeças? Mas não precisa responder porque todos nós buscamos respostas, quando o importante é agradecermos por estarmos vivos e com um enorme desejo de conjugar o verbo viver e ser feliz. Valeu sua força!