Por Edward MacRae*
Ao pensar em responder á pergunta acima, constatamos que ela é mal formulada por enfatizar excessivamente a dicotomia pessoal/social em relação á questão das granas. Seria melhor pensar nesses termos como extremidades de um continuo e não como entidades distintas. Em outras palavras, aquilo que afeta a sociedade inevitavelmente tem suas repercussões a nível individual e vice-versa. Da mesma forma que o individuo deve apoiar, respeitar, defender e se empenhar pelo aprimoramento da organização social da qual participa, esta também tem a responsabilidade de zelar pelo seu bem-estar, sempre cuidando de proteger a sua liberdade.
No que se refere ao uso de substâncias psicoativas ocorre que, atualmente, a sociedade como um todo vem enfrentando a questão de maneira contraditória, adotando políticas ineficazes que muitas vezes acabam por
confundir os individuos e ao ignorar certos aspectos pode até agudizar as suas consequências negativas.
Ao escolher a repressáo como o principal método de abordar o problema comete-se de início um erro grave. Apesar de se criminalizar a produção, comércio e uso de um longo elenco de substâncias, devido a uma série de razões históricas, políticas e econômicas acaba-se de fato, abdicando de qualquer controle sobre os que mais malefícios causam: o tabaco e o álcool.
Estes tém seu uso francamente promovido através de caríssimas campanhas publicitárias e, em muitos casos, até de incentivos fiscais dados á sua produção. Apesar de se tratar de substâncias cujo uso pouco criterioso pode acarretar sérios danos á saúde do consumidor e perturbações, prejuízos á sociedade como um todo, são poucos os esforços sérios feitos para disciplinar a sua oferta e nem mermo se respeita a tímida legislação vigente sobre o assunto. Como ilustração da gravidade da situação vale lembrar que o "abuso de álcool" seria responsável por 32% dos leitos hospitalares em psiquiatria e 40% das consultas médico-psiquiátricas e que 75% dos acidentes fatais e 39% das ocorrências policiais estariam associadas ao uso de bebidas alcoólicas (Brasil - 1990).
Os malefícios do tabaco são também conhecidos: prejuízos aos sistemas respiratório, digestivo, circulatório, causando entre outros males, cânceres, enfartes e úlceras - além de sofrimento pessoal devido aos custos de tratamentos médicos e hospitalares, assim como através da perda da produtividade econômica dos doentes.
Uma das razões para a falta de interesse em controlar essas drogas é que proscrever e estigmatizar socialmente certas substâncias, de uso relativamente restrito, dá-se a falsa impressão de que álcool e tabaco pertencem a outra categoria moral de pertinência exclusiva á esfera da vida privada do individuo. O que se deixa de levar em conta é o fato, já conhecido dos gregos antigos, que não existem drogas boas ou más, que seus efeitos são determinados pelos modos de uso e pela dosagem.
Assim como outras atividades realizadas por seres humanos vivendo em sociedade, o uso de substâncias psicoativas é regido por controles sociais não só formais (as leis) mas também informais. Estes são escalas de valores e regras de conduta que definem se e como determinada substância deve ser usada. Além destas há também o que o psiquiatra americano Norman Einberg chamou de "rituais sociais" (Zinberg - 1984). Estes são padrões de comportamento prescrito em torno do uso da substâncias em relação á:
• Métodos de aquisição e consumo;
• Escolha do meio físico e social para o uso;
• Atividades relacionadas ao uso;
• Maneira de lidar com os efeitos negativos.
Estes "rituais sociais" servem também para reforçar e simbolizar os valores e regras de conduta. O funcionamento desses controles sociais informais é um fator preponderante na distinção entre o que Zinberg chama de "uso controlado" e "uso compulsivo", o primeiro com baixos custos sociais enquanto o segundo, disfuncional e intenso, tem efeito contrário. Os controles sociais atuam de quatro maneiras:
• Definindo o que é uso aceitável e condenando as que fogem a esse padrão;
• Limitando o uso a meios físicos e sociais que propiciem experiências positivas e seguras;
• Identificando efeitos potencialmente negativos. Os padrões de comportamento ditam precauções a serem tomadas antes, durante e de pois do uso;
• Distinguindo os diferentes tipos de uso das substâncias: respaldando as obrigações e relações que os usuários mantém em esferas não diretamente associados aos psicoativos (Zinberg 1984-17).
No caso das drogas lícitas, especialmente do álcool, cujos efeitos psicoativos sáo mais óbvios que os do tabaco, os controles sociais informais sáo bastante desenvolvidos e gratas a eles grande parte da populacáo se utiliza de maneiras relativamente inócuas de beber, reservando para esse costume determinados momentos, geralmente de lazer. Os dados, citados acima, como aqueles sobre internaróes psiquiátricas e acidentes causados por motoristas ou pedestres alcoolizados, mostrara que mesmo nesse caso ternos ainda muito a aprender e que ainda se permite a veiculacáo de mensagens publicitárias que confunden o público levando-o a adotar práticas imprudentes em relacáo tanto á bebida quanto ao fumo.
Além disso, dá-se pouca importáncia á implementacáo de dispositivos legais que visam disciplinar o uso dos psicoativos lícitos, permitindo-se, por exemplo, a venda indiscriminada de álcool e tabaco a menores e tole-
rando-se o costume de motoristas dirigirem alcoolizados.
Mas, apesar de todas essas dificuldades, a maneira como a maioria consegue conviver com substâncias potencialmente tão perigosas e criadoras de dependência como o álcool, é que comprova a eficácia dos controles sociais informais.
Aqueles que ainda argumentam que o álcool é um problema seríssimo da atualidade obviamente tem razão, mas poucos hoje defenderiam a ideia de que os controles sociais informais seriam mais eficazmente substituídos pela introdução de controles legais que visassem a erradicação do costume de beber. O desastre social que foi a experiência americana da Lei Seca ainda está presente na lembrança de todos que se interessam pelo assunto, pois a proibição da produção e comercialização de bebidas alcoólicas só serviu para incentivar o gangsterismo, piorar a qualidade do produto e reduzir a eficácia dos controles informais que incidiam sobre o seu uso.
Geralmente os controles sociais informais são, como sugere o termo, desenvolvidos, veiculados e reproduzidos de maneira pouco sistemática ao longo do tempo. Embora seu surgimento se dê espontaneamente, o processo pode ser aperfeiçoado e, até certo ponto, moldado por políticas oficiais compreensivas e cuidadosas. Tal é o caso dos programas de redução de danos que visam diminuir a contaminação pelo HIV entre os usuários de drogas injetáveis. Seus promotores, descartando a prioridade normalmente atribuída á erradicação desse uso, concentram-se na tarefa de promover o uso mais asséptico da injeção. Para tanto, utilizam agentes de saúde tolerantes e compreensivos com as necessidades e ideais de vida dessa população.
Frequentemente são os próprios usuários que são capacitados para realizar essa tarefa devido ao seu maior acesso ao "mundo da droga", onde suas palavras são frequentemente mais convenientes que aquelas de técnicos oficiais "caretas".
Enquanto o indivíduo deve buscar manter-se sempre em condicóes psíquicas compatíveis com a possibilidade de assumir responsabilidade por seus atos e suas conseqüéncias, cabe á sociedade o dever de estimular e difundir práticas que levem ao resguardo da saúde de seus integrantes. Porém, nunca se deve esquecer que o bem-estar dos indivíduos transcende meras questões sanitárias e que a sociedade não pode ser concebida em seu todo, nos moldes de uma instituição hospitalar onde, em troca do zelo pela sua saúde, o individuo deve submeter-se a severas restrições á sua liberdade pessoal.
*Edward MacRae* Doutor em Antropologia (USP), Professor Adjunto da Faculdade de Filósofía e Ciências Humanas/UFBA, pesquisador associado do CETAD/UFBA.
BIBLIOGRAFIA
Brasil - Ministério da Educacáo e Cultura; Fundacáo Maurício Sirotsky; FNE/ABEAD,
Programa Valorizacáo da Vida. Brasília, 1990.
Zinberg N. Drug, Set and Setting. New Haven, Yale University Press, 1984.
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