quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Companheiros de adicção

Ele, médico, de família tradicional no estado em que residia. Estávamos próximos e sabia que, devido a facilidade que tinha com certos anestésicos, acabou se viciando em um derivado da morfina. Não sei qual era a substância que ele se auto-aplicava. Não quis saber quais eram os efeitos. Apenas o escutei. Ele partilhava o que sentia naquele instante, e o ar dele parecia distante. Era como se estivesse vendo o pai na imaginação.

Cheio de arrependimento ele me disse que era médico, filho de médico. Não entendia a razão de ter entrado no vício e pensava muito no pai. No desgosto... Porquê, Deus? Interrogava-se!

Meu pai é um homem tão bom e não merecia isso de mim, dizia. O pai, homem honrado, bom caráter, respeitado e acreditado, era seu herói. Ele, um escândalo abafado.

Bem conceituado lembrava o quanto seu pai se esmerou em dar a ele a melhor educação, o melhor em tudo, e ele estava carregado de culpa, remorso, arrependimento, vergonha, vendo-se com os mesmos olhos do meio social. O que causou aquele "escorregão" que lhe roubou a paz?  agora se via, ali, como um drogado, entre drogados, viciado em uma droga que causava forte dependência.

No final disse, como quem não queria aceitar:  "o que foi que aconteceu comigo? porque machuquei meu pai, logo ele, um homem bom tão honrado?"... Não tinha respostas. Elogiava a esposa!

Falou mais coisas e, no final, eu apenas disse que me identificava com tudo o que ele havia dito e fui além,
dizendo: - sinto o mesmo que você e mais que isso, pois joguei minha história de vida na lata do lixo!

Ele, a princípio, não partilhava, era mais um ouvinte. Escolheu tratar-se em outro estado para evitar comentários em sua terra, afinal, ele era um "escândalo", para os pouco instruídos. Abastado, era o único que tinha um quarto só para ele. 

Um outro companheiro, inteligentíssimo, cineasta, guardava uma mágoa decorrente de uma internação inteiramente descabida. Era apenas alcoólico, de família tradicional e pai ultra conservador. Vendo o filho embriagado, contratou uma equipe de resgate e jogou o mesmo em um manicômio. Um estranho naquele ninho. Conseguiu com parentes convencer o pai a retira-lo daquele hospício e encaminha-lo para uma clínica voluntária de boa reputação. Ele vai bem.

F, era uma garota que defendia a tese de que não era adicta, apenas uma pessoa que sofria de depressão e que acabou se viciando em vinho. Tinha argumentos...Fazia parte do meu grupo. Era coerente e se identificava comigo, pois conversávamos sobre a doença que tínhamos em comum. Não tenho mais informação alguma sobre ela, pessoa boníssima. 

Nesse mundo, em minhas passagens por vários lugares, conheci muitos variados tipos de caracteres humanos. Conheço muitas histórias de adictos. Dos pacíficos aos que chegaram a práticas violentas. Perdoei o louco que incendiou um local em que me encontrava pronto para dormir. Não sei mais de quase ninguém. Espero que todos estejam bem, gozando infinitas horas de sobriedade. 

Nós somos anônimos e vivemos da melhor forma que podemos. Mas carregamos o carimbo da adicção, exceto a bela F., que nunca aceitou a doença. Um pena que o destino nos tenha conduzido ao distanciamento. Que Deus, como cada um o concebe, nos guarde e proteja, pois não pedimos para sermos doentes. Aconteceu e agora é só nos resta andar de cabeça erguida, como anônimos, em uma sociedade tão desinformada... 



9 comentários :

  1. oie...tem algo que não compreendo bem, aceito, mais não compreendo e quando questionada fico sem saber o que responder, nessa parte do texto (pois não pedimos para sermos doentes. Aconteceu)..o que iria caracterizar esse "nascemos doentes"....quando argumento isso com pessoas que não são adictas e nem codependentes o que ouço é: todos sabem que droga nunca fez bem, porque foram experimentar?...Se sabiam do risco e arriscaram, não tem como usar essa desculpa que já nasceram doentes e não tiveram escolha...vc conseguiria me ajudar a compreender essa afirmação?? um abraço

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  2. Boa noite, Kel!
    Vou lhe responder por etapa:

    A adicção é um doença que se manifesta mediante modos anti-socias o que dificulta a percepção e "torna difícil o diagnóstico e tratamento". Há quem defenda ser uma doença de cunho hereditário, por isso há quem diga que nascemos com uma predisposição de caráter hereditário. É uma doença física, mental e espiritual. No plano físico pode ser retratada como o uso compulsivo de drogas e a incapacidade de cessar o uso. Ontem um companheiro escreveu pedindo ajuda e revelava esta incapacidade.No plano mental caracteriza-se como uma obsessão que se observa no desejo incontrolável de querer usar, mesmo sabendo das implicações que o uso de drogas causa. No aspecto espiritual ela se caracteriza pelo egocentrismo . As funções mentais "mais elevadas, como a consciência e a capacidade de amar" sofre severo impacto em decorrência do uso. Não é uma deficiência moral, como muita gente imagina. É uma doença crônica, considerada "progressiva, incurável e fatal", mas controlável e tratável. Algumas pessoas perguntam se é contagiosa e nos limitamos a dizer que, pelo menos no plano emocional, afeta entes queridos que contraem a chamada codependência.



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  3. Recomendo leitura do link da Revista Brasileira de Psiquiatria, antes de concluir. Tenho que abreviar tudo face a dificuldade de conexão. Eis o link abreviado:

    http://migre.me/hYV7Z

    "Resumo
    Este artigo procura examinar a questão da herdabilidade nas dependências químicas. Através da revisão de estudos em famílias, em gêmeos e de adoção, encontramos evidências para afirmar a importância dos fatores genéticos na transmissão da vulnerabilidade às dependências. Essa transmissão pode ser melhor compreendida através de um modelo epigenético de desenvolvimento do transtorno onde condições biológicas hereditárias associem-se a situações ambientais ao longo da vida para a produção da dependência. Neste artigo apresentamos essas condições biológicas intermediárias vinculadas ao alto risco para dependência, focadas no caso do álcool e da cocaína. Por fim, descrevemos os estudos moleculares que vêm estabelecendo associações entre polimorfismos e as dependências, com relevo para o sistema dopaminérgico."

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  7. Para Finalizar este tema que rende muito acrescento o seguinte:
    Tenho que ser breve, a conexão me impediu de trabalhar no blogue. Bem, você quer saber ": - o que iria caracterizar esse "nascemos doentes". Responderia que só as pesquisas no campo da Genética, que estão em estágio avançado, poderiam lhe dar uma resposta satisfatória . Ainda existem muitas controvérsias, quer sobre a definição da adicção como uma doença, quer a respeito da fundamentação científica do caráter hereditário da mesma. O campo cientifico é tão rigoroso que o conceito de vida ainda não é consensual. O mesmo podemos falar em relação a definição de saúde. Mas todos nós sabemos o que é vida e saúde. Inclino-me em aceitar a adicção como uma doença. Agora se seria congênita, ou decorrente de alguma mutação genética, ou de uma predisposição orgânica, não poderei afirmar nada além do que minha cultura livresca permite.
    Com relação ao que lhe respondem, de modo interrogativo ("todos sabem que droga nunca fez bem, porque foram experimentar?"), devo lhe assegurar que este argumento pode ser refutado facilmente. Isto acontece porque a adicção, além de ser uma doença física e espiritual, é também uma doença que afeta a mente humana e, neste plano, a obsessão impulsiona a pessoa adoecida àquele desejo incontrolável de querer usar droga(as), mesmo sabendo das implicações que o uso destas causam. Isto, por acaso, não nos parece normal, porque é algo patológico. As afirmações que lhe oferecem como argumento de negação, antes de refutar sua tese, elas realçam os aspectos doentios da adicção. Manda essa gente pensar com mente aberta! Um detalhe que deixei passar é que a autodestrutividade dos adictos é um suicídio lento e gradual, consciente, ou inconsciente. Isto não é sadio! Tudo converge para nossa aceitação como uma doença, mesmo! Não busquei falar em OMS.

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  8. entendi...na verdade não existe algo "definitivo" ou lógico que afirme 100% nada, então talvez a melhor forma de pensar (pra mim entender) é não julgar o outro, pois a verdade muda conforme muda a janela, é fácil dizer o pq o outro fez isso ou aquilo, dificil é dizer com toda certeza que se você estivesse no corpo do outro, tivesse vivenciado a vida do outro e os sentimentos do outro, qual seria a nossa escolha, será que diferente, melhor ou pior?..como seria impossível saber...realmente é impossível responder por alguém...ai o melhor é modificar a mim mesma e ao próximo apenas amar....desculpa minhas divagações...rs..sou um tanto curiosa...e vivo buscando a lógica das coisas...rs..uma braço e obrigada. pela atenção

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  9. Sua intervenção foi ótima. Sou um observador com o olhar generoso. Quanto a adicção, tudo caminha para afirma-la e confirma-la como uma doença. No campo da genética também há uma evolução neste sentido. Julgar o próximo, ou outras pessoas, achar que poderia ser diferente e etc ocorre, mas é algo muito louco porque não passa de um exercício de evento aleatório. Mas existem coisas que são, realmente, tão previsivéis. O olhar também muda conforme o ângulo. Gostei de " a janela muda". Concordo! Você ajuda o pensamento pois ajuda e nos conduz a avançar, dialeticamente pensando. Grato pela participação. Questionar é algo que gosto muito. Não fosse a dificuldade de conexão elaboraria algo inspirado no que escreveu.

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soporhoje10@gmail.com

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