quinta-feira, 12 de junho de 2014

EXPERIMENTANDO AUASCA - CAETANO VELOSO



Agora eu estava ali, diante do único copo de auasca que não fora esvaziado. Tinha ouvido a argumentação de Gil para me convencer: diferentemente da maconha, o auasca não produzia queda de percepção da luz, dormências, embriaguez ou taquicardia. A gente ficava lúcido e aos poucos começava a perceber as coisas com mais intensidade, as cores, as texturas, as relações entre as formas, e às vezes víamos coisas que sabíamos não serem "reais", embora as víssemos com nitidez. Por um desejo de libertar-me do medo, por curiosidade, por necessidade de compartilhar, peguei o copo e engoli todo o conteúdo que me era destinado.

A beberagem espessa e amarelada tinha gosto de vômito, mas não me causou náuseas. Fiquei tranqüilo esperando. De fato, nada aconteceu de comparável ao tapa da maconha. Apenas comecei a achar cômica a música do Pink Floyd que Gil pusera no toca-discos. Ela me soava superficial e gaiata e eu ria entendendo muito bem por que ela me soava assim. Logo o carpete de náilon do quarto do som apresentou seu modo peculiar de ser: cada tom de cor neutra - palha, areia, gelo, cinza e mil sub-brancos - dizia de si muitas coisas, fosse sobre a velocidade das vibrações que produziam sua aparência, fosse sobre a tolice dos homens que buscavam fingir beleza, fosse sobre a unicidade do momento em que estávamos nos encarando.

Eu me demorava observando os objetos e me maravilhava de quão fundo os podia entender. Sabia tudo sobre aquele pedaço de madeira que aparecia sob o tapete. Captava o sentido das variações de densidade, entendia a história de cada pedaço de matéria. Comovia-me com o drama de cada ser inanimado que se me apresentava: não era como se eles tivessem consciência, antes era como se eu fosse uma consciência que tudo atravessa, sendo inclusive consciência profunda dos entes sem consciência. As vezes me parecia possível perceber como é que as moléculas se juntavam para resultar nessa ou naquela manifestação perceptível: pano, plástico, papel. Eu acompanhava o trabalho dos átomos, do acaso e das convenções na criação dos seres reconhecíveis. E não me sentia mal. Pelo contrário. Consciente de que já estava sob a ação da droga, eu simplesmente observava com uma curiosidade quase alegre as mudanças que minha gradativa mudança impunha ao mundo. 

As outras pessoas começaram a se mover de modo a me chamar a atenção. Por algum motivo, eu me isolara inicialmente e não tivera vontade de nada dizer nem perguntar a ninguém. Sandra entrava e saia do quarto do som com os olhos duros e o rosto sério. Ela estava assustada. Eu a achava parecida com um índio. Gil estava com lágrimas nos olhos e falava alguma coisa sobre morrer, ter morrido, não sei. Dedé circulava pela sala dizendo que se via a si mesma em outro lugar. Eu fiquei muito feliz de observar que as pessoas eram tão nitidamente elas mesmas. Fechei os olhos. Uns pontos de luz coloridos surgiram no espaço ilimitado da escuridão. 

Eles se organizavam em formas agradáveis. Eu disse a Gil: "É tão bonitinho! É tudo simétrico!". E eu mesmo achava graça nas palavras escolhidas. E mais ainda: entendia que esse "é tudo" se referia àquilo que de fato é. Eu não estava dizendo "o que eu vejo é bonitinho e é simétrico", mas "o que é é bonitinho e simétrico". Eu tinha toda a calma do mundo para interpretar nesses termos o que eu mesmo dizia. Voltava então a fechar os olhos. Os pontos estavam mais e mais ricamente organizados. Eram luzes concentradas de cores gostosamente definidas. O modo como eles se organizavam parecia ao mesmo tempo inevitável e livremente decidido por mim. 

Eu queria o que acontecia: eu desejava tal ou qual movimento e isso era imediatamente fatal. Formas circulares eram compostas por lindos pontos luminosos dançantes. Aos poucos eu sabia quem era cada um desses pontos. E em breve eles de fato se mostravam como seres humanos. Eram muitos, de ambos os sexos, todos estavam nus e tinham aspecto de indianos. Essas pessoas dançavam em círculos de desenhos complicados, mas eu não só podia entender todas as sutilezas dessa complicação como tinha tranqüila capacidade de concentração para saber sobre cada uma das pessoas tanto quanto eu sei de mim mesmo ou de meus próximos mais amados. 




Dizer que essas figuras dançavam em círculos é tentar traduzir para uma linguagem ordinária a sensação de completude absoluta que as formas por elas descritas produziam. Eu alternava com abrir e fechar os olhos - observação do mundo exterior e vivência desse mundo de imagens que se tornava cada vez mais denso. De fato, aos poucos eu reconhecia que os seres vistos com os olhos fechados eram indubitavelmente mais reais do que meus amigos presentes no quarto do som ou as paredes desse quarto e os tapetes. A própria concepção de espaço - o quarto no apartamento, na cidade, no mundo; as distâncias entre as pessoas, a dimensão dos móveis - se mantinha ao preço de um reconhecimento irônico de sua precária convencionalidade. O tempo era igualmente criticado por essa instância mais alta em minha consciência lúcida: com benevolência e sem nenhuma angústia, eu sabia que o fato de estar ali vivendo aquele momento era irrelevante diante da evidência de que eu já tinha - ou teria - nascido, vivido e morrido - e também jamais existido -, embora a percepção do meu eu naquela situação fosse uma ilusão inevitável. 

Dedé me chamou para ir até a varandinha atapetada e envidraçada que ficava junto à sala de visitas. Ela queria me mostrar uma coisa impressionante: São Paulo à noite, vista da janela do nosso vigésimo andar, enquanto estávamos sob o efeito do auasca. Não sei o que ela via. Era óbvio que, sem nos explicarmos muito, externávamos reações muito semelhantes. A mim impressionou-me sobretudo a sensação de que a cidade estava - era - morta. Não que fosse triste - e muito menos feia. Era algo imenso, metálico, brilhante apesar de escuro (tudo parecia negro), mas, diferentemente de Dedé, dos amigos, do apartamento - e até do tapete de náilon -, sobretudo dos anjos hindus que eu via por trás de minhas pálpebras, não parecia ter vida. Voltei ao quarto do som e retomei a experiência celestial dos olhos fechados.  

Quando, alguns anos depois, li As portas da percepção e Céu e inferno, de Aldous Huxley, recebi com rápida naturalidade suas observações sobre o papel da cor na aferição, pela mente, da realidade do percebido. O preto-e-branco, ou qualquer monocromatismo, é a marca mesma da representação, da abstração, da irrealidade. A cor, antes de nos aparecer como um mero atributo (como alguns amigos meus argumentaram contra Huxley), tem o gosto do real quando captado pela visão. Sem dúvida usamos automaticamente a cor como prova de realidade. Há vários outros indicadores - constância, correspondência interestésica etc. - que asseguram o real e o opõem às alucinações, às ilusões e aos sonhos. 

Chegamos a uma intuição de evidência da realidade. No caso dessas visões obtidas com o auasca, sobretudo por causa da cor - e a despeito de não haver nenhuma manifestação sonora, tátil ou olfativa -, era-me evidente que o que eu via de olhos fechados era mais real do que o que eu via de olhos abertos. Mas o que quer dizer mais real? Eu podia me ver vendo o que via e, embora sabendo que tudo eram instâncias ilusórias, era capaz de julgar o que se aproximava mais do real absoluto. Não havia nenhuma desvalorização do real cotidiano: eu sabia de mim, dos meus e do mundo - e minha capacidade de amor por tudo isso estava muito aumentada. Apenas eu entrara em contato com um nível de realidade mais funda e mais intensa. E o fato de eu poder amar com mais força o que aí se apresentava contribuía para a intensificação do meu amor pelo mundano comum. Eu me sentia feliz. Mas essa felicidade, embora sentida com arrebatamento, também era vista de longe, como um mero aspecto desse mundo menos real do que aquele dos anjos hindus. 

Estes eram também reconhecidos como meus ancestrais: eram todas as pessoas que existiram para que eu chegasse a ser. Eram também todas as pessoas que realmente existiam. Diferentemente de nós, elas existiam desde sempre e para sempre, o círculo sem fim de sua dança (porque era um círculo, embora não se vissem seus limites e, ainda que ele não fosse bidimensional, não era uma esfera) era um movimento de aproximação do absoluto. Nós éramos contingentes, elas eram necessárias. 

De fato, logo elas descreviam em sua dança a formação de um centro de tudo: algo que, sem deixar de ser uma multidão de dançarinos nus, era ao mesmo tempo um rosto e uma fonte. Eu sabia que me aproximava do sentido último de todas as coisas. Daquele rosto emanava perenemente tudo. Aquela fonte olhava e sabia. Os anjos não simplesmente emprestavam seus corpos nus para que o desenho se realizasse: seus semblantes amáveis, a qualidade da cor de sua pele, o estilo de seus movimentos, comunicavam a idéia de face e de fonte. Eles traziam em seus olhares e seus gestos (é preciso relembrar que eu sentia conhecê-los cada um individualmente) a mensagem de poder, sabedoria, inevitabilidade e grandeza da cara da pessoa-fonte. 

Não sei se tive, diante dessa representação da idéia de Deus, o súbito retraimento de quem aprendeu que a face do Criador não pode ser contemplada. O fato é que, num dado momento, considerei que talvez me tivesse deixado ir longe demais. Uma outra possibilidade de interpretação que minha lembrança autoriza é a de que, naquele momento, o efeito do auasca começou a dar mostras de extinguir-se. Porque eu não quis deixar de ver o ser central que se revelava: o que eu quis, repentinamente, foi deixar de ter visto tudo o que vira, sentido tudo o que sentira. 

Um enorme cansaço, combinado com uma enorme excitação, me deixou em estado de desespero. Decidi abrir os olhos e sair do quarto do som, onde estivera quase todo o tempo, e ir para a sala de jantar. Mas a idéia da infinidade de processos mentais complexos que isso implicava me paralisou. Então tive medo de não ser mentalmente capaz de decidir (e realizar a decisão de) dar dez passos. Compreendi, com a mesma lucidez com que pude compreender tudo o que vira sob o efeito do alucinógeno, que estava louco. Em suma: já não era capaz de voltar a sentir-me integro como enquanto via anjos e átomos sem perder o mundo, nem de voltar a integrar-me nesse mundo cuja realidade fora posta em questão. De todo modo, minha mente estava exausta das operações estéticas, lógicas e afetivas a que se dedicara com tanta espontaneidade. 

Eu sentia a mesma saudade das pessoas e das coisas que tinha experimentado com o lança-perfume e com a maconha, só que, em vez de sentir-me como um fantasma numa zona penumbrosa na periferia da vida, sentia-me vivo, demasiado vivo, cheio de nervos ativos e em incontrolável desordem. 

Arranquei-me da imobilidade com violência, mas percebi com grande decepção que isso não me trouxe de volta a inteireza do eu. O modo brusco como me movi e os gritos com que tentei me comunicar explicando o que sentia logo preocuparam meus amigos, que, a partir desse momento - pois todos já estavam também voltando da "viagem" , passaram a cuidar de mim, procurando acalmar-me por meio de carícias ou repreensões. Lembro de Duda falando muito sério, como a dar à minha possível capacidade de autocontrole uma característica de responsabilidade moral. E Dedé falando pouco, omitindo-se, arriscando investidas esporádicas, esperando captar um momento bom para ser útil de fato. (Como, em retrospecto, vejo esses dois sendo tão caracteristicamente eles mesmos!) Eu sabia que já não sabia quem, o que era eu. Pedi então que Dedé me levasse ao espelho do banheiro. Vendo-me, pensei, reconquisto-me. Mas o que vi no espelho – embora na lembrança eu reconheça como tendo sido exatamente meu rosto, nem mais nem menos - me pareceu uma imagem indecifrável. O fato de, mesmo então, eu saber que essa imagem indecifrável era, não uma deformação decorrente de alucinação, mas meu rosto de sempre, me dava a certeza de que estava louco. Esse eu que tinha tal certeza era como que indestrutível: ele não fica louco, não dorme, não morre, não se distrai. Eu sofria com a percepção intelectual e sensorial da existência como se sofre ao ouvir um giz que range sobre o quadro-negro ou uma unha sobre o vidro. Por algumas horas andei de um lado para outro do apartamento, vivendo no inferno. O mal, com efeito, era vivido como eterno. A intensidade da dor se multiplicava com a perspectiva de sua perpetuação e o reconhecimento de sua duração já longuíssima. 

Curiosamente, de todos os amigos presentes, apenas um me volta sempre à memória como estando, de algum modo, ligado - seja como indutor ou mero espectador - aos primeiros momentos de esperança de melhora. Waly Salomão, com sua cara larga, sua modéstia autêntica escondida sob um egocentrismo espetaculoso, sua doçura acuada pelo brilhantismo e pelas reações às vezes injustas, parece que estava qualificado para dar-me as boas-vindas de volta à vida. Waly me fora anunciado como João Gilberto: um colega do clássico (Wanderlino) me disse que eu, que gostava de coisas loucas, precisava conhecer um sujeito maravilhoso, um conterrâneo seu (da cidade de Jequié, no interior da Bahia) que tinha muito a ver comigo. Ficou de trazê-lo até o Severino Vieira (Waly estudava no Central) para fazer as apresentações. Depois de uns dois alarmes falsos, finalmente nos encontramos. Wanderlino falara-lhe também de mim. Waly não me decepcionou, mas me parece que, embora não o tenha desagradado, eu não o entusiasmei. Wanderlino sabia mais do que nós: em pouco tempo, Waly e eu tínhamos nos tornado amigos e o somos até hoje. Sua capacidade de surpreender com associações de idéias insuspeitadas e reveladoras, seu humor genuinamente anárquico e de uma inteligência que mete medo, enfim, toda a sua imensa energia tão destrutiva quanto enriquecedora me apaixona. Nesse dia da viagem de auasca percebi com clareza o que já vislumbrava desde sempre: essa fúria e festa permanente também me comove. 

Não foi uma volta segura. Sentado com Waly na varandinha atapetada, com o sol já entrando pelas vidraças, eu tateava em direção à resignação a uma aliança provisória e precária com o real. Acho que todos os outros, inclusive Dedé, tinham ido dormir, tranqüilizados com minhas mostras de retorno à normalidade. A cara de Waly, seu clima de doce seriedade (o exato oposto de sua persona habitual), ficou relacionada, para mim, aos momentos em que a frágil felicidade se apresentava como possível. Como no caso do lança-perfume - mas de modo muito mais complexo - a suave alegria de voltar à vida era estragada pela certeza de que a experiência recém finda representaria uma ameaça para sempre. De fato, por mais de um mês eu me senti vivendo como que um palmo acima de tudo o que existe. E por mais de um ano certos resquícios específicos se mantiveram. Na verdade, algo de essencial mudou em mim a partir daquela noite. 

Caetano Veloso, Livro VERDADE TROPICAL

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