quinta-feira, 12 de junho de 2014

CAETANO VELOSO - O PRIMEIRO TAPA

Gil, Dedé, Sandra, Péricles Cavalcanti, Rosa Maria Dias, então mulher de Péricles, Waly, Duda e eu, cada um tinha sua dose de auasca. Todos tomaram. Menos eu, que, anos depois dessa experiência com o lança-perfume - e pouco mais de um ano antes dessa noite -, tivera um sofrimento igualmente infernal por causa de maconha. 

Tinha sido uma negra americana que vivia em Salvador - ou ali tinha um apartamento alugado aonde vinha de Nova York para passar semanas -, uma mulher muito interessante cujas atividades na cidade nunca conseguimos precisar, quem nos iniciara, a mim e a um grupo de amigos baianos, na marijuana. Ela tinha grandes quantidades de erva de primeiríssima qualidade - "cabeça de negro" – e deu um cigarro a cada um. Sem saber que isso era muito, fumei o cigarro inteiro puxando com força e segurando a fumaça no pulmão, como ela ensinava. Como eu nada sentisse, procurei seguir suas instruções à risca. Depois de findo o cigarro, ainda dizendo que não sentia nada, levantei-me para ir até a janela. De vez, a luz caiu (era dia), meu coração disparou, minha boca secou e meu corpo ficou dormente - sobretudo as pernas. 

O susto foi muito grande e cheguei à janela esperando que aquilo passasse logo. Vi as pedras do calçamento como que coladas ao parapeito do terceiro (ou quarto) andar em que estávamos. Percebi que aquilo estava apenas começando. Nenhum dos meus amigos igualmente iniciantes teve reação parecida. Imediatamente demonstrei meu desespero e eles, a partir daí, passaram a se concentrar em cuidar de mim. Eu me sentia longe e tinha uma saudade enorme das mesmíssimas pessoas que estavam ali comigo. 

Sentia uma saudade desesperada, da Bahia, de mim mesmo, de Dedé, da vida. Me deram doce, leite, laranjada. Nada me fazia melhorar. Por umas cinco horas sofri como louco. Quando comecei a perceber que voltava, um amor (não há outra palavra) muito intenso tomou conta de mim, tendo como objeto as pessoas que estavam ali - todas e cada uma -, as paredes, os móveis, o chão da casa, depois, o bairro da Barra, o mundo. Não era apenas a felicidade de recuperar em mim essas coisas: eu sabia que o sentimento também era sublinhado pelo tipo de embriaguez produzido pela droga. Mas as horas intermináveis de angústia - e a modificada sensação do tempo fez com que elas parecessem milênios - me deixaram traumatizado e eu me prometi que nunca mais fumaria aquilo outra vez. Essa sessão de maconha me trouxera à memória com vivacidade o horror vivido com o lança-perfume. 

CAETANO VELOSO, LIVRO VERDADE TROPICAL

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