quinta-feira, 12 de junho de 2014

CAETANO VELOSO - LANÇA PERFUME


VERDADE TROPICAL, CAETANO VELOSO:

Minha primeira experiência com uma droga que não fosse álcool ou tabaco tinha sido uma catástrofe. Aos catorze anos, no primeiro Carnaval que passei em Santo Amaro depois de voltar do meu ano no Rio, Luis César, um companheiro do ginásio que já fora meu colega no curso primário, propôs que tomássemos um porre de lança-perfume juntos. O lança-perfume era um sinônimo de felicidade para mim. Vendido em garrafinhas de metal dourado ou de vidro com um dispositivo para fazer, com uma pressão do polegar, esguichar um jato fino de perfume que gelava a pele que tocasse, esvanecendo-se em segundos, ele era um elemento que ampliava a magia do Carnaval, porque trazia antevivências de paixões amorosas (em princípio, ele existia para ser apontado por nós para meninas que se sentiriam fugazmente geladas, perfumadas e lisonjeadas - ou assim esperávamos) e uma sugestão olfativa de sonho. Meu pai comprava uma garrafinha para cada um de nós (que respeito ele tinha pelo Carnaval!), mas diversas vezes o ouvi recriminar o uso que se fazia do seu conteúdo como entorpecente e frisar que podia causar uma parada cardíaca. Sem embargo, eu ouvia de alguns conhecidos mais velhos (inclusive meus irmãos) elogios à maravilhosa sensação do "porre". Assim, quando Luis César me propôs a experiência, embora eu resistisse por muito tempo, chegou um ponto em que a curiosidade foi maior que o medo. 

Aspirei o lenço embebido no líquido e, em um segundo, era a pessoa mais infeliz sobre a face da terra. Toda a praça iluminada mergulhou numa escuridão que se originava em mim, e um zumbido em meus ouvidos, de intensidade regularmente oscilante mas também regularmente crescente, me levava a sentir-me perdendo o mundo - e perdendo-me para o mundo. O mais feroz pavor infantil de aniquilamento tomou conta de mim nesses segundos que pareceram durar uma eternidade, pois, à medida que eu afundava mais e mais na escuridão e na zoeira, eu era como que gradualmente desfeito de tudo, menos da lucidez para observar, dilacerado, o horror que estava me acontecendo. Luís César foi e voltou de seu mergulho sem demonstrar grande gozo ou grande sofrimento. Suas primeiras palavras denotavam um mero aumento da curiosidade a respeito do que se podia extrair de interessante do lança-perfume como droga. A imensurável alegria que ia se apossando de mim, à medida que eu percebia que estava voltando à vida, não foi bastante para impedir que, imediatamente depois de refeito, eu entrasse numa espécie de depressão que estragou meu Carnaval de 57 - e, em certa medida, todos os meus dias dali em diante. Eu visitara um inferno onde o absurdo insuportável de uma alma sem corpo - e de uma consciência sem objeto - se me apresentara como uma evidência terrível: odiei para sempre a idéia de que possamos seguir sendo nós mesmos depois da morte. Ainda hoje, cada vez que ouço alguém falar de espíritos de parentes ou conhecidos mortos que tentam se comunicar com os vivos, me angustio só de imaginar a situação. Sinto pena dos mortos e raiva dos vivos que aventam com leviandade uma possibilidade tão horrorosa. 

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