Quem cheira cocaína é responsável pelo tráfico. Quem compra carro é responsável pelos engarrafamentos. Quem deposita dinheiro em banco é responsável pela riqueza dos banqueiros. É assim?
A mídia brasileira apresenta as drogas ilícitas quase sempre através de números. Números relacionados com toneladas de maconha e cocaína apreendidas regularmente pela polícia. Mais recentemente a mídia passou a referir-se à quantidade de pedras de crack encontradas com este ou aquele traficante ou usuário-quase-traficante. Quando não é assim, mostra em reportagens pseudoinformativas, excluídos, miseráveis, moradores de rua, pessoas fracassadas na dura experiência de viver em sociedade, e suas relações com as drogas, como se isto fosse o banal, o comum, quando na verdade é a excessão ou, ainda, como se o consumo de drogas ilícitas fosse um destino inelutável estampado em abomináveis outdoors e busdoors em Salvador, onde se via pés de mortos e se podia ler: “Crack: é cadeia ou caixão”, felizmente retiradas dos nossos olhos pela força do bom senso de muitos baianos. O sofrimento é condição fundamental da existência humana, o fracasso na vida em sociedade, não. Agora, mais recentemente, a mídia passou a sugerir que a responsabilidade pelo tráfico é do consumidor: “sem consumidor o tráfico não se sustenta” ou, como sugeriu a Revista Isto É em dezembro de 2010: “Consumo: a parte mais difícil da luta contra as drogas”, além de atribuir aos consumidores de cocaína e maconha em baladas e o uso de entorpecentes nas praias e nos mais diversos lugares, a responsabilidade pela força econômica do tráfico. É inacreditável como na maioria dos textos em nossos jornais e revista não se faz a necessária distinção entre os consumidores e os modos de consumo, nem se indica as diferentes possibilidades das substâncias, quer quanto a capacidade de produzir dependência, quer quanto a capacidade de produzir morte por intoxicação aguda (overdose). Aliás, já é tempo das pessoas saberem que nem toda droga é entorpecente. Entorpecente, é aquilo que entorpece, produz sono, seda. O melhor exemplo entre nós é a morfina; a cocaína é um estimulante, o oposto da morfina, assim como o é a anfetamina, todas com grande possibilidade química de produzir morte por parada cárdio-respiratória ou psicoses e hipertensão. Lembrar que o crack e o oxi são a mesma coisa: cocaína impura, básica, associada a produtos danosos à saúde física, como carbonatos, e supostamente portadores de resíduos de gasolina ou querosene, sem qualquer comprovação. A maconha, por sua vez, é um sedativo com alguma capacidade de produzir transtornos psíquicos relacionados com a concentração de seu princípio ativo o THC (tetrahidrocanabinol), sem qualquer possibilidade de causar morte por intoxicação aguda. Contudo, há indícios de risco relacionado à condução de veículos sob efeito deste produto, tanto quanto alguma perda da motivação, sobretudo entre usuários de longo curso. Entretanto, este efeito é uma possibilidade, nunca uma determinação e está relacionada ao patrimônio biológico e psíquico de cada um e às vicissitudes do meio (sócio-cultural) no qual usuário e substâncias se encontram, devendo-se considerar, ainda, o estado geral de saúde, estado nutricional, e os muitos estados emocionais. Destas circunstâncias e da ordem subjetiva construída a partir da história de cada um, resulta o imponderável-do-ser-humano, significado pelo desejo.
Dizer apenas que alguém é “toxicômano” sem uma contextualização “bio-psico-social”, não deveria ter qualquer valor porque não faz sentido, tanto quanto não faz sentido designar todas as substâncias como entorpecentes. Creio que estes conhecimentos aliados a uma condição não pré-conceituosa são fundamentais para a informação.
Talvez, se nossa mídia se (in)formasse melhor poderia ter a coragem de escrever à semelhança do Presidente Fernando Henrique Cardoso, referindo-se à maconha: “antes eu não tinha conhecimento, agora estou melhor informado e por isso reconheço o fracasso da guerra às drogas”, e pedisse desculpas pelo ignorância que ajudou e ajuda a perpetuar .
Crédito: Conversando com Antonio Nery Filho
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