domingo, 17 de novembro de 2013

O dom do perdão


CARDEAL D. EUSÉBIO OSCAR SCHEID

Arcebispo da Arquidiocese do Rio de Janeiro

Em nossa vida de cristãos, para sermos dignos deste nome, há uma virtude que devemos cultivar sempre: a capacidade de perdoar. O autêntico perdão é dado gratuitamente, mesmo que o ofensor não o peça, como aconteceu com a humanidade, quando sacrificou o próprio Salvador, e este se dirigiu ao Pai, dizendo: “Pai, perdoai-lhes, porque não sabem o que fazem” (Lc 23,34).

A Bíblia acentua que o perdão é divino, quer dizer, tem um acento divinal, a assistência de Deus no ato de perdoar. Os próprios judeus e fariseus tinham consciência disso: “Ninguém pode perdoar pecados, porque só Deus tem poder para isso” (Mc 2,7). Perdoar é um dom que Deus nos dá, uma sensibilidade que Ele nos faculta, pela sua própria graça, para podermos promover a reconciliação com quem quer que seja, mesmo com aqueles aos quais, normalmente, negaríamos o nosso perdão.

Excluindo alguém do perdão, também o excluímos do nosso convívio. Portanto, perde-se o senso comunitário, o que é muito grave. Deus nunca condena, a não ser que a pessoa se auto-condene. Por exemplo, na excomunhão, não é a Igreja que exclui alguém, mas é a própria pessoa que abandona a comunidade dos fiéis de Cristo, por um ato desumano, desregrado e contrário à fé e à moral católica.

Além de divino, o perdão é um ato autenticamente humano, no sentido de sua nobreza e dignidade. Perdoar sempre é nobre. Vingar-se é um ato brutal, até mesmo diabólico, destrutivo em sua essência. Por outro lado, conceder o perdão não é fácil. É uma das iniciativas mais difíceis de se levar a cabo, especialmente, diante das injúrias graves. O que nos confunde é não conhecermos a verdadeira intenção de quem age. Então, sempre se perdoe, porque não se pode julgar a intenção antecipadamente. Diz São Tiago: “Não há mais que um legislador e um juiz: Aquele que pode salvar e perder. Mas quem és tu, que julgas o teu próximo?” (Tg 4,12).

O perdão é prova de amor ao outro. A pessoa que não ama, não perdoa. Mas, tanto o amor quanto o perdão, fundamentam-se no auxílio divino. Pela ação do Espírito Santo em nós é que nos vem essa força sobrenatural. O dom do perdão nos vem da própria cruz de Cristo. Ele, para efetivar isto, instituiu o Sacramento da Reconciliação, com Deus e com os irmãos.

Para recebermos o Sacramento do Perdão, nosso primeiro ato deve ser a análise profunda e sincera de nossos pensamentos, intentos, palavras e ações, mediante critérios objetivos do Evangelho. É o chamado exame de consciência. Depois, é preciso arrepender-se, isto é, sentir dor pelo que se fez de errado, e fazer o firme propósito de rejeitá-lo, definitivamente. Nesse propósito talvez esteja o maior problema, porque exige conversão, mudança de rumo: metanoia.

O melhor exemplo disto é o chamado Filho Pródigo, citado pelo Evangelho de São Lucas (cf. Lc 15,11-32). Aquele filho ingrato, malvado, fugitivo, que pediu ao Pai a herança e foi-se embora. Cometeu, assim, seu primeiro grave erro: afastar-se do Pai, perdendo o amor e a graça, que possuía na casa paterna. Dissipou o capital que tinha, a linda veste que trajava e, até, o anel que o Pai lhe dera, sinal de sua nobre condição. Rebaixou a própria dignidade, trabalhando na pior ocupação para um judeu: cuidar de porcos. Esses animais, considerados impuros segundo a mentalidade judaica e bíblica, representam a maior degradação que existe. Quantos vivem nessa miséria, indigna de seres racionais e belos, como os seres humanos foram criados para ser! Caem na violência, na droga e na devassidão, e perdem tudo o que têm de melhor. 

Mas, aquele filho, em boa hora, repensou sua situação e seu estado de vida. Enquanto isso, o Pai olhava aquela curva do caminho, onde seu filho desaparecera. Dia após dia, hora após hora, esperava o seu retorno, sem esmorecer. Esse amor do Pai, eternamente fiel, atraiu de volta o filho, reavendo-o sadio e arrependido, como conhecemos da história, narrada por São Lucas.

Esta passagem do Evangelho enfatiza, não tanto a imagem do pecador, mas a do Pai misericordioso, que nos aceita e nos perdoa. Entretanto, o próprio Jesus diz: “Perdoai, e sereis perdoados. Porque, com a mesma medida com que medirdes, sereis medidos vós também” (Lc 6,37-38). Isto é muito sério. “Perdoai-nos as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido”, rezamos no Pai-Nosso.

O perdão divino é condicionado pela proporção em que concedemos o perdão aos outros. Por isso, devemos perdoar tudo e sempre. E não guardar ressentimento. Sem isso, não há perdão. O perdão esquece a ofensa feita, como Deus o faz. Ele não encobre o mal, conforme dizem alguns. Ele o erradica. Não esquece, simplesmente, mas elimina, até, o efeito do mal que praticamos.

O perdão é caminho para a conversão. Conversão é mudança de rumo. O pecado nos faz esquecer a finalidade, a meta dos nossos atos, para nos propor uma outra finalidade: desumana e contrária à caridade e ao respeito do próximo. Assim, a conversão é o redimensionamento de tudo, para dirigi-lo ao fim que nobilita toda nossa atitude e nosso modo de proceder.

Cabe, aqui, o esclarecimento de uma aparente contradição. Jesus nos fala sobre o pecado que não tem perdão: “Todo pecado e toda blasfêmia serão perdoados aos homens, mas a blasfêmia contra o Espírito Santo não lhes será perdoada” (Lc 12,31). Existe alguma falta que Deus não possa perdoar? O perdão só não é concedido àquele que não quer ser perdoado; ou que não acredita na misericórdia divina; ou, ainda, que acha seu pecado tão grande, a ponto de superar a capacidade de Deus perdoar. Ele esquece que Deus é onipotente. E, se de qualquer grãozinho de areia, Ele é capaz de criar um serafim santo, inocente e generoso, muito mais pode tornar reta uma linha que se entortou em nosso modo de proceder.

Aquele que desespera pode chegar ao desatino de tirar a própria vida, num ato fundamentalmente desordenado, salvo quando induzido por um estado psicológico totalmente doentio. O desapego à vida não significa abreviá-la, qualquer que seja o motivo. Só existe um desapego santificante: quando a vida é dedicada ao bem do próximo. Arriscá-la, em benefício de outrem, torna-se um ato heróico.

Estou convencido de que todo pecador, cujo agir leva a conseqüências graves para a comunidade, para a santidade da Igreja, e para a própria sociedade, essa pessoa não sabe o que faz. Evidentemente, é culpada pelas escolhas conscientes e livremente assumidas, mas não avalia o pleno alcance de seu erro. Talvez só venha a descobri-lo, quando for tarde demais.

Rezemos sempre pela nossa conversão, a exemplo de Jesus que, no auge da ignomínia e da injustiça que lhe impuseram na cruz, clamou: “Pai, perdoai-lhes, porque eles não sabem o que fazem”. Aquele foi um ato de amor infinito, derivado de um Coração completamente entregue a Deus e aos homens.

Nenhum comentário :

Postar um comentário

soporhoje10@gmail.com

LinkWithin

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...