O filme 'O Bicho de Sete Cabeças' retrata uma história, baseada em fatos reais, onde um jovem, chamado Neto, é internado em uma Clínica de Reabilitação por ter recebido um 'diagnóstico' de dependência química. É importante ressaltar que, o diagnóstico aqui mencionado não baseou-se em uma ciência médica. Esta designação foi dada simplesmente pela percepção daqueles que o cercam, baseado nos critérios, para eles, ligados à transgressão da lei e da moralidade. Método utilizado no século 17 e 18 para definir a loucura. Pois bem, estamos no século 21, após muita discussão sobre o assunto, e ainda nos prendemos ao triste hábito de rotular as pessoas, como se fossem produtos que podemos, com um simples olhar e observação de pequenas ações, classificar como bom ou ruim, normal ou louco, merecedor ou não da ajuda que deveriam receber da sociedade e da família.
Com a internação, Neto logo percebe que o lugar com fachada bonita e que trazia paz e tranquilidade, escondia em seu interior um ambiente desumano, de abandono e descaso, cujos familiares desconheciam. Todo o tempo recebe um tratamento que o silencia e o imobiliza. O enredo foi contado de modo que ele se tornou vilão, e seus pais acreditam que seu pedido de socorro trata-se apenas de uma reação de abstinência e/ou rebeldia. É nesse ponto que, o médico distancia a família do paciente, tornando o paciente ‘excluído’; Agora os médicos e funcionários da clínica é que passam a ser novos integrantes da família, pois os pais não acreditam mais em seu filho. Os médicos, como figuras inacessíveis para os pacientes, passam uma idéia falsa de que está tudo sob controle e que existe um diálogo com os internos, quando essa não é a realidade.
Quando falamos do diagnóstico, falamos da forma incerta com que este é dado; Agora chamamos atenção para o tratamento. No texto de Andrea Dip, é exposto algo ainda mais preocupante: A incerteza da eficácia dos tratamentos. Ao questionar um médico de uma das clínicas que ela visitou, sobre a explicação científica do tratamento por eletrochoque, ela recebe a afirmação de que ‘não se sabe exatamente o que acontece. Só se sabe que funciona’. Do mesmo modo acontece no filme: Os médicos sujeitam os pacientes a esse tipo de tratamento, mas não sabem o que realmente acontece com eles; Têm o conhecimento de que esses se acalmam, mas desconsideram o mal que isso pode causar. Andrea presencia uma sessão de eletrochoque, e questiona o comportamento do paciente quando está em surto, e recebe a surpreendente resposta de que ele xinga as pessoas na rua. Preço alto a pagar, por uma ação comumente vista. No filme, Neto é penalizado com sessões de eletrochoque porque questiona, se revolta com a situação que observa ao seu redor e com o tratamento que o debilita cada vez mais, e tenta de alguma forma mostrar o que ninguém se interessa em enxergar. A realidade do manicômio vai bem além do belo jardim visto pelos familiares.
Neto, não é somente excluído do âmbito familiar e social, mas ao repudiar o tratamento que tanto o tortura, ele também é distanciado dos próprios internos, quando isolado em quarto solitário, escuro e inacessível. Quem vive ali, apenas se acostumou com as regras e prefere não se manifestar para não pagar por isso, e as penalidades são dolorosas. O filme nos possibilita refletir a questão posta como normalidade ou não; Podemos inclusive recordar à fala do próprio médico no filme, que alega que Neto tem um distúrbio de personalidade, apontando uma ou duas ações, como se apenas isso bastasse, para classificar alguém como louco. A loucura, ou as reações dos internos poderiam ser pensadas, também, como algo que surge a partir do que se vivencia, não como algo genético ou coisa parecida.
Quando Neto sai do manicômio, o manicômio não sai dele. Não raro, o medo, a insegurança e os distúrbios que ele tinha lá dentro retornam a sua mente. O que deveria ter melhorado seus relacionamentos, agora o atormenta e o exclui, e eis a grande contradição ao utilizar o termo reabilitação. Voltando a questão de rotular as pessoas, percebemos no filme a forma que Neto é recebido pelos que estão a sua volta: rejeição, desconfiança e desprezo. Quando ‘louco’, as pessoas o rejeitam e o isolam; Quando ‘reabilitado’, desprezam e o afastam. Loucura é afirmar que isso, de alguma forma, reabilita um ser humano. Por isso, o termo utilizado no texto de referência ‘Cidade dos Esquecidos’, é muito apropriado à situação exposta. Mesmo atormentado com tudo o que havia passado, Neto se esforça para se interar na sociedade novamente, com a família, com os amigos e até mesmo busca um novo emprego. Nessa tentativa, de volta a ser uma pessoa ‘normal’ e enfrentando os tormentos decorrentes, ainda, do tratamento, ele tenta se distrair, e foi em uma dessas ocasiões que ele teve mais um surto; Ao receber a notícia de que seu filho teve uma reação agressiva quando estava em uma festa, o pai de Neto não cogita outra hipótese a não ser, novamente, a internação.
Novamente a sensação de imobilidade toma o personagem. A todo tempo o filme nos comove e basta nos deixar envolver para sentirmos a mesma sensação de impotência passada por Neto. Uma situação aparentemente sem saída. Um fundo do poço sem corda, sem ajuda, totalmente vedado. Ninguém te ouve, ninguém se interessa, ninguém se propõe a trazê-lo à superfície. É mais cômodo assim: Aquilo que incomoda, a gente afasta. Se é a loucura tratada como doença, esse é mais um agravante, quando pensamos que estamos abandonando um amigo, um parente, um ser humano doente, quando mais necessitam de ajuda. Não procuramos saber onde, nem em que condições eles vivem. Olhamos seus rostos e, mais uma vez, concluímos que está tudo bem porque aparentemente engordam ‘uns quilinhos’. Vale até mencionar um trecho da carta de Neto ao pai: ‘ ...as coisas ficam muito boas quando a gente esquece...’.
O ponto do alto do filme é justamente a leitura dessa carta. Neto, após passar por vários conflitos, pessoais, sociais e familiares, resolve então desabafar. O pai que o tinha como alguém que sempre o desrespeitava, como um drogado, um rebelde, um louco, por fim tem de ouvi-lo. Foi a forma encontrada por Neto para dizer algumas poucas palavras, de grande importância, que há tempos ninguém lhe permitia dizer. Quando ele admite que ‘ele chegou ali e ali era o lugar dele’, nós já não percebemos um pedido de socorro como tanto vinha fazendo ao longo do filme. Ele então fala da triste verdade, que também é mencionada no texto ‘Cidade dos esquecidos’, que a família sente vergonha e incômodo, e ao sentir isso, sente também culpa. O que fazer? Esquecer. O filme, bem como o texto, não falam de algo distante de nós. É a triste realidade observada nas Clínicas manicomiais; É o comportamento que adotamos diante de situação similar; É o descaso com que tratamos o assunto; É a camuflagem que existe nos tratamentos psiquiátricos; É o grito de socorro que deixamos de ouvir; É toda uma realidade que não devemos mais desconsiderar.
Não nos cabe classificar alguém como normal ou louco, por um simples olhar. É de extrema importância refletirmos neste respeito, pois não é preciso internar alguém para excluirmos essa pessoa de relações, de oportunidades ou até mesmo de ajuda. Excluimos alguém quando deixamos de nos relacionar por este ou aquele motivo, que só se apóia no incômodo que aquele indivíduo nos passa.
E se é, de fato, constatado o problema mental, é urgente repensar de que forma os tratamentos utilizados hoje, que em nada ou pouco diferem dos utilizados em séculos passados, contribuem para uma possível melhora do quadro clínico; Pensar na forma como nós ajudamos à inserção desse indivíduo na sociedade; Lembrar que estamos falando de pessoas que sentem, que choram, que precisam de atenção, que precisam, assim como qualquer um de nós, ditos ‘normais’, de companhia, lazer, carinho e amor.
Pensando em todas as situações expostas nos textos de referência e no filme, podemos pensar o quanto restaria de normalidade em cada um de nós, quando postos nas mesmas circunstâncias.
Resenha: CIDADES DOS ESQUECIDOS – Relação do filme ‘O Bicho de Sete Cabeças’ com a questão da normalidade e exclusão. publicado 24/11/2010 por Vanessa Oliveira em http://www.webartigos.com
Resenha notável! Lastimável é verificarmos que a questão das drogas, com todas as suas repercussões e nuances, sejam as lícitas (como o álcool), ou as ilícitas sempre levam familiares a enxergar o manicômio como solução. No caso de NETO(interpretado por Rodrigo Santoro), usuário de maconha, sujeito feliz, mas vitimado pelos absurdos olhares conservadores e concepções que me fizeram indagar quem era louco de verdade: as instituições familiares, caducas, determinados profissionais que diagnosticam um paciente baseado em juízos de valor de terceiros, ou nossos sistemas manicomiais? É triste verificar que ainda existe "camisa de força" e gente que recorre às mesmas para tratar uma doença que já possui muitos novos recursos de terapia sem a necessária violência, que gera um terrível trauma no dependente, seja lá de que droga for. Quem acorrenta, prende, põe em cárcere privado algum Dep. Químico mereceria ir para a cadeia, ou passar um tempo internado em uma clínica capaz de abrir a mente de adeptos do choque elétrico, camisas de força e manicômios como solução para uma doença. Triste civilização do atraso!
ResponderExcluirPodem me internar, tudo bem. Mas, gente, não esqueçam de internar minha família noutra clínica. Estamos todos doentes e só eu aceito e admito. Pensem neste meu apelo, senhores e senhoras que acreditam no progresso da ciência!
ResponderExcluirTambém não aceito idéias que me transformem em um robot conformista, que diuturnamente faz um discurso de auto flagelação e carrega nas costas o peso do mundo, como uma espécie de Hercules. Não preciso de lavagem cerebral, mas de um bom tratamento e uma boa recuperação.
É verdade...Escrevi em meu blog recentemente como me "interno" todas as vezes junto com meu marido.Somos responsáveis por amar e caminhar juntos e atingir maturidade para entender que precisamos ser tratados como família.Isso é amar!
ResponderExcluirImpressionante esta abordagem feita nos comentários que li. Creio ser de fundamental importância que os poderes públicos tratem não apenas a adicção como um problema isolado do adicto, vez que, a família "contagiada", e não tratada, poderá vir agravar a condição do drogadicto. O clamor feito por um dos comentaristas, pedindo que o internem, mas façam isto conjuntamente com a família não pode ser desprezado. Outro fator que merece atenção é a criação de um ambiente de histeria, que envolve múltiplos interesses, que nem sempre é o de defender a saúde do adicto. É triste verificarmos que, em muitas famílias, o problema atinge contornos complexos e deve-se ter muita atenção para o aparecimento de interesses escusos. O adicto é um problema de saúde e sua família também. No mundo atual, muitas vezes, o adicto padece com ações tristes, impensadas, rígidas, definidas por consciências conservadoras e, outras vezes, fisiológicas e oportunistas, principalmente quando demonizam o adicto e passam a minar a saúde do mesmo com o pseudo intuito de "salvaguardar" a saúde do drogadicto, quando, em verdade, pretende-se golpea-lo. Não é bem o caso do filme, cuja atuação dos familiares para a solução do problema foi uma internação descabida, baseada em fatos reais. Recordo o caso de um rapaz promissor, que se deixou enveredar pelo uso da maconha e a família resolveu interna-lo em um manicômio como louco. O usuário que possuía uma boa faculdade mental terminou saindo louco do manicômio. É bom recordar que, em casos que não envolvem drogas, idosos são tratados como se fossem um estorvo, ou uma droga na vida de determinados familiares que acabam por internar aqueles que lhes deram luz, em um comportamento reprovável e que se tornou corriqueiro. Família precisa de ajuda antes de adotar soluções aparentemente corretas, mas que possuem como pano de fundo atitudes injustas, nefastas e que só agravam o estado psicológico dos que já são vitimados, ou pela droga e/ou pela idade. O problema precisa ser pensado e refletido e nem tudo que parece ser, é. Fica meu registro, pois já pessoas perfeitamente sadias sendo internadas como loucas, assim como idosos que poderiam receber o carinho da família serem abandonados à própria sorte e lançados em asilos. A analogia é cabível vez que familiares sentem-se muito mais confortáveis livrando-se de um ente, que dizem ser querido,do que realmente ministrando as doses necessárias de amor que cada quadro envolve. É sempre bom pensar antes de adotar soluções que constituem uma "desgraça" na vida de outrem. Felicito os que despertaram a lebre!
ResponderExcluirBaixar o Filme - Bicho de Sete Cabeças - http://mcaf.ee/d5tq9
ResponderExcluir