quarta-feira, 14 de março de 2012

Seguindo os passos

Percorria, junto com um padre jesuíta, as dependências do Museu de Arqueologia e Etnologia, quando o padre parou e ficou a examinar a beleza de um arco. Perguntei a ele sobre um pequeno grupo de tijolos que se sobressaiam dos demais e ele me disse: esta é a "chave da volta", isto é: a cunha, ou pedra angular. Retirando-a, tudo vem abaixo. 

Ontem li no Grupo Carmo Sion de A.A. um interessante artigo sobre o quinto passo e, como não poderia deixar de ser, sobre o quarto passo, por tabela. 

Hoje a reflexão diária do A. A. diz respeito ao terceiro passo como sendo fundamental na trilha que estamos a percorrer e que se resume nos doze passos do programa, até alcançarmos nosso esperado despertar espiritual.  É o passo da entrega, decisivo. Abrimos a porta da nossa recuperação:

"o Terceiro Passo pede uma ação positiva, pois é somente através de ação que conseguimos interromper a vontade própria que sempre impediu a entrada de Deus - ou, se preferir, de um Poder Superior - em nossas vidas"...

A meditação diária de Narcóticos anônimos cuida das RELAÇÕES e nos remete ao quarto e quinto passo. No quarto passo devemos escrever sobre nós, nossa vida, sem nada querer ocultar, por isso mesmo é o passo em que expomos para nós mesmo nossas mazelas. Não é fácil, mas é necessário até que venhamos a sofrer o partilhar dos nossos segredos. Fiz o quarto e o quinto passo em fevereiro de 2009. Tendo sofrido uma de tantas recaídas, voltei a uma clínica, desta vez, de modo voluntário, mas, sob o regime involuntário. 

Todos os dias eu ia fazendo uma espécie de diário, onde expunha tudo. Os companheiros, que ainda  não compreendiam os passos desdenhavam. "Vamos, cara, você precisa sair desse isolamento, jogar buraco", diziam os companheiros. Não sei como certas clínicas aceitam jogos, principalmente quando o mesmo é utilizado para apostas, ainda que de cigarros.

Eu sabia, perfeitamente bem, que estava fazendo meu inventário diário e, ao faze-lo, também ia me ocorrendo revelações úteis à confecção do quarto passo. Não me incomodava ver e ouvir um neófito no ramo querendo me aconselhar. Esse é um lado chato, em clínicas, que devemos aturar. Tem sempre um sabe-tudo... Eles diagnosticam, receitam e, costumam dizer que qualquer mal estar é causado pela droga, ou pela abstinência. Por conta disso quase que um diabético não morreu!

Desta vez não cheguei a partilhar o que eu chamaria de complemento do quarto passo, feito em 2009. Este último foi mais profundo, contudo sai da clínica sem partilha-lo com outro ser humano. Havia uma previsão de alta que foi mudando e isso foi me deixando um pouco preocupado com o que estavam me reservando: era "só" mais uma nova temporada na clínica, como se eu estivesse ido para passar por um novo "tratamento". Estavam querendo aumentar o meu tempo, fugindo ao acertado por livre e espontânea vontade. Não aceitei e pedi para sair. Deu trabalho, mas sai sem poder efetivamente realizar a partilha. Este é um inconveniente de clínicas: estender e firmar contratos. 

Devo dizer que para mim não é doloroso partilhar, doloroso é guardar o que precisa ser vomitado. Doloroso não é sentir nossa própria verdade, mas nega-la. E, eu, particularmente, tenho a vida tão devassada que não me incomoda muito falar e escrever sobre minha própria personalidade. Muitas vezes o que me incomoda é ouvir mentiras a meu respeito. É ter que ver os fatos torcidos e distorcidos, mitificados e mistificados ao sabor das conveniências pessoais. Triste época esta em que o homem tem que dizer que é homem. Triste época em que as pessoas fazem cobranças indevidas sobre o amor, sobre se somos ou não ciumentos, se somos sensíveis, se choramos, se eramos amados e se sabiamos amar. Recordo de um bom companheiro, que devido à falência de 6 casamentos, ele conseguia traçar o perfil da mulher infiel. Ele fazia perguntas sobre como era o relacionamento amoroso dos internos e estes contavam. No final ele dava o parecer: "ah, meu amigo, ela já vinha lhe chifrando há muito tempo". Ele imitava e caricaturava suas ex-companheiras e era muito engraçado.

Há uma luta gigantesca para mudar toda uma cultura social que é alicerçada no preconceito, nos estigmas, na discriminação. Comerciais são veiculados, temas específicos são debatidos, informações esclarecedoras são produzidas e a cultura parece permanecer a mesma. É certo que mudanças culturais levam décadas para acontecer.

O adicto quando diz que sofre preconceito e/ou discriminação pode ser interpretado mal e até visto como homossexual. E aqui, triste época, devo dizer que sou hetero. Se vestimos uma camisa cor de rosa, se alguém usa brinco na orelha ou se admiramos o arco-iris, estamos sujeitos aos prejulgamentos dos preconceituosos e, por que não dizer, de gente inescrupulosa, maledicente e ignorante. 

No campo da adicção é comum usuários de drogas discriminarem uns aos outros. O cocainômano discrimina o alcoólico, o maconheiro, o craqueiro e, por sua vez é discriminado pelo alcoólico e pelo tabagista. Todos na mesma canoa furada a brigarem entre si em função de preconceitos tacanhos. Até mesmo em brigas dentro de clínicas é possível observar tal comportamento.

A tatuagem também é objeto de censura porque muita gente associa a mesma ao mundo do crime. O surfista é discriminado, de cara, por ter sua imagem associada ao uso de drogas. A mulher descolada é vítima de rotulações absurdas e, nós, adictos, também temos nossa parcela de culpa na perpetuação dos estigmas e rotulações preconceituosas.

E porque toquei neste assunto? é porque, em nossos inventários morais, também podemos colocar o quanto fomos vítimas do preconceito, sendo, muitas vezes, de modo injustificado, taxados disso e daquilo. Além do mais, não devemos nos esquecer de como nos relacionamos com as pessoas e o mundo, enquanto meio social. 

Meu adendo ao quarto passo (o primeiro), elaborado em 2009, compõe um quadro melhor de mim mesmo e isso me leva a um bem estar emocional maior, tornando-me em um cara mais seguro de mim
mesmo em outras esferas da vida.  

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