Lembrava quando Luis Vieira participou de uma seresta, durante aniversário de meu pai, há muitos anos... Era como se pudesse ouvi-lo cantar :"Sou menino passarinho com vontade de voar"... Como eu queria voar e sair daquele local maldito em que me puseram.
Estava numa residência, cercada por grades e imensos alambrados, confinado, junto com cinquenta residentes involuntários, também presos, em um espaço diminuto.
Nos momentos em que podia circular pelo avarandado da casa, isolava-me e ficava num canto lateral da casa, observando a paisagem enquanto refletia. Isso se repetia sempre. Era o cantinho da dor, das meditações e de clamores que só Deus podia escutar.
Todos os dias, durante o resto de tarde que me sobrava, dirigia-me para este local da casa, transformada em carcere.
Via muita beleza detrás do alambrado, como um bando de tucanos e outros pássaros me tiravam do lugar comum. Uma ocasião vi um pica-pau, bem de perto, e achei magistral aquela aparição, surpreendente. A flora e a fauna compunham um cenário belíssimo para meus apaziguar meu mundo interior e me ajudar a resistir a tudo.
Meu interior estava tão cheio de dúvidas, que tais visões me confortavam. É duro sentir-se como um estranho no ninho. Minhas dúvidas voltavam-se para a família e o tempo que iria levar naquele lugar que me era indigno.
Sempre no mesmo horário uma garça voava solitariamente, bem distante, até pousar suavemente no galho da mesma árvore. Era um ritual que a mesma obedecia todos os dias.
Levava cerca de uma hora até bater asas e seguir o destino dela. Era solitária. Eu olhava aquele voo e invejava a liberdade que a mesma desfrutava naquele ir e vir. Queria poder voar para bem longe, mas estava trancafiado.
Em poucos dias já pensava em fugir. Não confiava em ninguém! Ia identificando o pessoal insatisfeito. Achei uma serra, que alguém estava usando para uma eventual fuga. Deixei a mesma no mesmo lugar. Quem seria o fugitivo solitário?
Ninguém busca fugir quando recebe tratamento digno. Quando há satisfação, dificilmente alguém foge... Ali, naquela casa, só mesmo um alienado suportaria ficar.
Éramos 50 internos, confinados ,dentro de uma casa, a maior parte do tempo; uma senhora e uma garota ficavam em celas especiais, fora da casa. Eram celas privadas e mais caras, com frigobar e algum conforto extra. O luxo custa caro. Era uma ex-manequim e uma garotinha de 16 anos. O lance delas era o "branco".
A garotinha tinha aparência frágil. Era do interior paulista. Logo quando chegou, sofreu um abuso sexual, praticado por um adicto, secretário particular do dono da casa. Imagine só!
Tinha regalias e por isso abusava, enquanto o pastor economizava com a mão de obra escrava.
A garotinha me contou como tudo aconteceu e o enorme susto que levou quando viu seu quarto sendo invadido. Estava impotente e indefesa quando o provavel ex-usuário de crack e cocaína a violentou. Era um mau caráter, metido a valentão, mas daqueles que só são valentes quando se sente protegido. Ela não contou detalhes, nem era preciso. A ex-manequim, dependente da cocaína, sentia-se velha e é natural que ela sentisse saudades do que ela foi e representou. A beleza cedeu lugar a tristeza!
Naquela casa tudo que acontecia era errado. Internos subornavam GAPs (Grupo de apoio a "pacientes") e até mesmo o monitor, para chegarem até ela, tarde da noite. Os rapazes davam roupas e objetos valiosos e, desse modo, tinham acesso ao quarto da garota, que já não dizia nada, nem reclamava. Um dia tal acontecimento vazou e chegou ao conhecimento do pastor. A descoberta resultou em uma espinafração pública da garota, chamada, na frente de todos, de "putinha" enquanto um rapaz de Londrina levava uma bofetada no rosto. A verdade foi mal contada.
Os GAPs eram adictos em recuperação, utilizados como mão de obra escrava e funcionavam como vigilantes dos internos. Nenhum apoio. Com isso, adquiriam certas regalias. GAP geralmente era um puxa-saco. Gente desfibrada!
No dia do meu aniversário eu estava no último dia de "axé" (podia fumar e ficar no corredor da casa, em certos momentos; não tinha que lavar, cotidianamente o quarto, o que passou a ocorrer pouco depois, finado o tal "axé".
Neste 15/05, abriram um precedente e me deixaram receber telefonemas. Meu pai, meus irmãos, filhos, esposa e cunhada ligaram. Não deu para uma irmã telefonar vez que estava passeando pela Europa e se achava em Londres. Eu não podia falar a realidade porque era monitorado e falar a verdade era pedir para ser castigado e desacreditado como manipulador para a família. Donos desses pardieiros já têm um discurso pronto para cada situação.
Senti imensamente a falta da ligação de um dos meus filhos e isso me deixou abatido e, de certo modo, com uma pulga atrás da orelha. Porque logo ele? A minha filha falou comigo efusivamente, minha cunhada do mesmo modo, mas a esposa parecia um ser despojada de afeição. Fria, como quem não tem assunto para entreter, nem algo de bom para consolar, apenas me prometeu que no dia 12 de junho iria me visitar. MENTIRA, mas cheguei a acreditar. Sabia dos planos dela e das crises que padece todos os anos, quando se aproxima a festa junina, em uma cidade do interior, onde ela morou grande parte da vida. Também morei na mesma cidade, quando tinha poucos anos de idade. Mesmo assim, achei que ela não faltaria. Porquê mentir?!
Fiquei triste com meu filho, que havia me presenteado com um livro, no qual deixou uma dedicatória preocupante, pois dava entender que minha permanência, naquele lugar, levaria muito tempo. Não li o livro porque sou míope, não tinha óculos, e, também, em função de dormir debaixo de um beliche, que apelidei "balança mais não cai", sem luminosidade alguma, no quarto de passagem.
Dormia muito mal. O beliche tremia, rangia, eu achava que aquele cacete armado ia cair em cima de mim. Acordava sobressaltado durante as madrugadas. Certa feita reclamei com o marinheiro carioca que dormia na parte de cima. Noutra até briquei: - que porra é essa fulano, parece que você fica batendo punheta ai em cima!!
O frio era excessivo. Só então pude entender o que é "frio de doer nos ossos". Não era a temperatura, mas aquele vento gélido que dava uma sensação térmica inferior a do termômetro. Parece que eu era o mais friorento do local.
Até este terceiro dia eu estava "aceitando" vez que não podia mudar nada, apenas eu mesmo. Nada de amizade, pouco papo. Conversa, a princípio, só com o pessoal do quarto, onde tinha um marinheiro carioca, dois paranaenses e um baiano. Este baiano, coitado, sofria humilhações terríveis. Estava ali porque fumava marijuana e porque gostava da vodka "Absolut". Já havia passado por várias internações e só tinha 19 anos de idade. Filho de pais separados. Sentia-se rejeitado pelo pai.
Na casa, a maioria era de jovens que viviam desfilando, com roupas de grife, caras, e que acabavam resultando em um tal de "business", que nada mais era do que a troca de pertences, incluindo os chamados de GAPs subornáveis. Uma loucura!
Vivia com duas ou três meias, duas calças e sete camisas e, por cima destas, um blusão de couro. O banho era a partir das 5 da tarde, quando começava a gelar.
Numa ida do pastor à casa disse ao mesmo que era nordestino, acostumado com calor e que sentia muito frio para tomar banho conforme era estabelecido. Pedi para banhar-me às 15 horas e ele consentiu. Era um alívio! Até umas 7 horas da noite eu segurava a barra do frio, depois disso gelava a cabeça, mãos e pés. Foi assim o tempo inteiro. Quando chegava uma frente fria era um horror.
Puseram-me de castigo, certa feita, em um local por onde esta frente fria passava, como uma correnteza. Dois companheiros apiedaram-se e me deram um cobertor.
Às 21 horas, todos os dias, em clima de bagunça, vinha um ex-usuário de crack, que era chamado de ladrão e de sexualmente indeciso, pelo pastor, para administrar a medicação que,. por sua vez, era preparada e colocada em copinhos, por um adicto em recuperação.
Imaginem a bagunça de uma casa administrada por adictos, em um pseudo tratamento, também obra de adictos, todos ex usuários de crack. Não é muito louca essa "clínica"?
Por uma única vez fui obrigado a tomar um medicamento diferente. Dia seguinte reclamei. Na hora de tomar o medicamento ficávamos fechados numa sala, todos comprimidos. Iam chamando de um a um, na base do grito. Iraildes, certa, feita, tomou a dose do medicamento de outro residente e foi obrigado a tomar a outra dose, que era a dele.
Era do Paraná e foi parar naquele lugar enganado. Não usava droga alguma. Disseram que ele iria visitar a tia, foi enganado e caiu no engodo e acabou sendo despejado, pela família, naquele lugar infernal. Entrou no alçapão e se fodeu. Outros internos eram convidados a conhecer a "clínica" e, entrando no caçuá, eram trancafiados. Depois o pastor manipulava a família na base do 171. Se o recém chegado reagisse, caia no "mata-leão". O pobre IRAILDES vivia com a bíblia debaixo do braço o tempo quase que inteiro, enquanto confinado. Um dia pegaram ele, no banheiro, batendo punheta e foi a maior gozação.
Depois da medicação tínhamos direito de fumar o último cigarro para depois irmos para o chamado "berço". Dormíamos dez da noite e acordávamos às 7 da manhã. Escovávamos os dentes rapidamente, para, em seguida, ficarmos ouvindo a leitura de trecho bíblicos e, depois, do Pão Diário. Quem é que chefiava e nos ensinava alguma coisa de religião? um ex-usuário de crack! Era tudo assim, até quem fazia e servia a comida e varria a área e catava o cocô dos cachorros, eram internos em recuperação. Que recuperação?
O pastor só tinha 3 empregados. Nos primeiros dias, pela manhã, estranhei o "café". Era meio copo plástico, com nescau gelado, servido às 9 da manhã, com direito a dois pães que se esfarelavam. Quanto ao nescau gelado, Gonçalo, descendente de espanhol, pediu para tomá-lo quente e por isso foi punido, em compensação passaram a colocar nescau morno.
Após pequeno intervalo todos tinham que pegar vassoura, rodo e água com desinfetante, para lavagem dos respectivos quartos. O local em que dormia era chamado "quarto de passagem"...Inexistia privacidade. Todo sábado era dia da "super-limpeza".
Havia uma piscina que ninguém se atrevia usar. Era suja. Não totalmente, mas era. Raras ocasiões vi uma, ou outra pessoa, jogando-se na mesma, em dias de sol. Um cidadão aparecia, vez em quando, para tirar a sujeira da superfície. Em determinados horários podíamos chegar até ela e ficarmos sentados, na área circundante, com alambrados muito altos, fechando tudo. Dessa área eu só enxergava como ponto de fuga o telhado. Como alcança-lo? pelo refeitório, onde havia uma janela quebrada e dai pelo telhado. Teria que pular de uma boa altura e eu me imaginava caíndo de mal jeito e me ferrando. Contaram-me que certa feita um interno tentou fugir, do mesmo modo, mas foi logo capturado, tomou muita porrada, depois foi sofrer tortura no chamado "quartinho do pânico".
Em meus planos, acabei descobrindo no sanitário, uma serra de ferro. Já mencionei o ocorrido. Alguém estava serrando uma grade. Comecei, sem que ninguém soubesse, a serrar tal grade. Mas fugir como e para onde? Sem dinheiro e sem documento? Teria que sair correndo por uma estrada de barro, estreita, cercada pela mata, até a Raposo Tavares. Lá teria que caminhar rumo a São Paulo, capital, ou solicitar carona de alguma alma caridosa. Coisa rara nos tempos atuais. Então o pessimismo me levava a repensar tudo.
Aquela garça a que me referi no inicio, significava a existência de terreno alagadiço. Era inviável tomar aquele rumo. Olhava em outra direção e via um local que me diziam ser uma espécie de aeroclube, mas não havia sáida. Fuga, para mim, estava descartada. Me veio a ideia de iniciar um movimento de rebelião e logo aglutinei os insatisfeitos mais corajosos. Aquele pessoal mais barra pesada, dentre eles, dois ex-sentenciados, que já haviam cumprido pena. Eles diziam que no presídio passavam melhor que ali dentro. Teríamos que fazer como se faz em prisões. Seríamos forçados a fazer reféns. Teríamos que usar a violência, queimar colchões e fazer com que alguns internos chegassem até a imprensa e ao Ministério Público, para denunciar tudo o que ocorria de errado na casa.
Recordo que nNo dia 15 de maio, pela tarde, Ruber..., fugiu arrancando uma grade do quarto. Pouco tempo depois alguém caguetou. Foi apanhado, tomou muita porrada e foi torturado. Ficou vários dias no quarto do pânico.
Tempos depois, Dario fugiu. Temia que a mãe, que seria submetida a uma cirurgia cardíaca, viesse a falecer. Pediu permissão para visita-la e disseram: -se ela morrer, morreu, é da vida. Você não pode mudar o destino, portanto, não venha com manipulação, pois o que você quer é usar droga!
A história do D. é uma conversa à parte. Facilitavam a ida dele para fora das grades pois ele trabalhava como serralheiro, de graça, na casa do pastor. Numa dessas facilitações ele subiu em um monte de entulho e conseguiu pular o muro. Fugiu. Correu. Foi visto. Entrou na mata, mas logo foi apanhado e tomou algumas porradas. Foi para o quartinho do pânico, donde saiu no dia seguinte, sem tortura. Nessa ocasião, D. fez uma denúncia grave.
Outro companheiro nosso, G., que efetuava trabalhos de carpinteiro, de graça, na casa do pastor, foi acusado por D. de espalhara noticia de que o olho roxo do pastor havia sido fruto de um murro que havia sido dado pelo próprio filho. Contou, ainda, que G. estava comendo a empregada do pastor e que ela havia contado ao mesmo, que o pastor (quando cheguei na tal clínica, o pastor estava com um hematoma no olho esquerdo) depois de tomar a chave do carro do filho, também adicto, em recuperação, ex-usuário de crack, com passagem pela televisão e tudo, acabou levando um soco no olho, desferido pelo rapaz. Então a empregada contou isso e mais coisas... O filho, rapaz alto e forte, lutador de artes marciais, cacetou o pai. Isso resultou no maior escândalo. A empregada, despedida, em reunião, foi chamada e tratada como puta, repetidas vezes.
Passava das 11 da noite, já estava dormindo, morto de frio, quando me acordaram para ouvir mais um dos sermões loucos do pastor, para tratar do assunto. Só terminou quase duas da madrugada. Ele levava a mulher, que ria muito quando ele ironizava e proferia palavras de baixo calão contra internos. A risada dele e dela eram satânicas.
Eu já havia passado por uma dessas sessões. Depois conto... Poderia resumir muito se encontrasse o e-mail que enviei a OAB e ao Ministério Público de São Paulo, que adotou medidas rigorosas, inclusive, abrindo inquérito civil. Não deixei barato o que passei naquele lugar infernal. A esposa do pastor, certa feita disse que eu era perigoso.
Fui para o tudo, ou nada, no dia em que recebi visita. Já vinha estudando o pastor. Um companheiro mais próximo me disse, não desafie ele, porque ele adora ser desafiado e vai lhe ferrar. Não se abra com ninguém e foi além: - ele é o diabo em pessoa! isso eu já havia percebido, pois não respeitava nem a bíblia e pregava a mesma proferindo pornografias. A pedra da sepultura de Lázaro era uma enorme pedra de crack, para ele, o pastor!!! Continuo outro dia. Só escrevi devido a um comentário pedindo para prosseguir a história.
Essa clínica foi fechada por uma fora tarefa convocada pelo Ministério Público
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