quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

O devido processo legal de internação psiquiátrica involuntária na ordem jurídica constitucional brasileira

5. O HABEAS CORPUS

habeas corpus é uma ação constitucional voltada para a libertação do "paciente" (utiliza-se esse termo técnico mesmo fora de um contexto de saúde) que esteja sofrendo lesão ou ameaça ao seu direito fundamental à liberdade de ir e vir.
Diz o art. 5º, LXVIII da Constituição Federal: "conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder".
Evidentemente que essa ação constitucional também pode ser ajuizada quando o estabelecimento hospitalar não assegurar os direitos da pessoa portadora de transtorno mental, previstos na Constituição da República e no parágrafo único do art. 2º da Lei 10.216/2001.
Registre-se que o paciente mantém, mesmo internado involuntariamente, o seu direito à liberdade de religião e consciência, possuindo direito à comunicação, à proteção de seu patrimônio, à livre expressão e ao direito de ação, inclusive direito a voto, não estando interditado (art. 15, II da CF/88), nos termos da facultatividade instituída pela Resolução nº 21.920 do Tribunal Superior Eleitoral – TSE.
Esclarece Luís Roberto Barroso que: habeas corpus pode ser impetrado por qualquer pessoa física ou jurídica, e também pelo Ministério Público (...), em favor logicamente de pessoa física, única capaz de ver tolhida sua liberdade de locomoção. Sequer é exigida capacidade postulatória do impetrante. E, mesmo que ninguém o impetre, poderão os juízes e tribunais competentes expedir, de ofício, ordem de habeas corpus [19].
Embora tenha existido alguma controvérsia sobre o assunto, atualmente doutrina e jurisprudência admitem a utilização de habeas corpus contra atos de particular (diretores de clínicas ou hospitais psiquiátricos, por exemplo).
Como explica Heráclito Antônio Mossin o habeas corpus não se projeta exclusivamente no campo penal ou processual, porquanto é ele cabível também na área extra persecutio criminis, visando tutelar o direito de liberdade corpórea do indivíduo quando estiver sendo lesada ou ameaçada de sê-lo, abusivamente por qualquer pessoa, aqui se incluindo o particular [20].
No mesmo sentido, se pronuncia Fernando Capez, para quem prevalece o entendimento de que pode ser impetrado habeas corpus contra ato de particular, pois a Constituição fala não só em coação por abuso de poder, mas também por ilegalidade. ‘Por exemplo: filho que interna pais em clínicas psiquiátricas, para deles se ver livres’ [21].
O Superior Tribunal de Justiça também admite impetração de HC contra internação psiquiátrica involuntária irregular:
"Ementa
Habeas Corpus. Internação involuntária em clínica psiquiátrica. Ato de particular. Ausência de provas e/ ou indícios de perturbação mental. Constrangimento ilegal delineado. Binômio poder-dever familiar. Dever de cuidado e proteção. Limites. Extinção do poder familiar. Filha maior e civilmente capaz. Direitos de personalidade afetados.
- É incabível a internação forçada de pessoa maior e capaz sem que haja justificativa proporcional e razoável para a constrição da paciente.
- Ainda que se reconheça o legítimo dever de cuidado e proteção dos pais em relação aos filhos, a internação compulsória de filha maior e capaz, em clínica para tratamento psiquiátrico, sem que haja efetivamente diagnóstico nesse sentido, configura constrangimento ilegal.
Ordem concedida [22].
Assim, além das ações de indenização por danos morais e materiais causados pela internação psiquiátrica involuntária irregular, é possível o manejo de habeas corpus para assegurar o pleno exercício do direito fundamental de ir e vir da pessoa portadora de transtorno mental que tenha sido internada sem consentimento, em desconformidade como o devido processo legal acima delineado, ou que esteja sofrendo violação a seus direitos fundamentais constitucionalmente garantidos.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Talvez o maior erro político do movimento social em saúde mental, nele envolvidos os profissionais de saúde mental, organizações, os pacientes e familiares, tenha sido não conseguir enxergar na Constituição Federal de 1988 o marco jurídico potente e eficiente para a efetivação de todas as mudanças necessárias para o setor. É urgente uma "saúde mental constitucional", são cerca de 40 anos de atraso doutrinário e jurisprudencial com relação a inúmeros países.
A comunidade jurídica também tem participação nessa cegueira normativa, em que ainda hoje a saúde mental se mostra envolvida, pois todos, parece, até o momento, acreditam que a Lei Federal nº 10.216/2001 é o marco jurídico da saúde mental brasileira, ignorando a forma normativa da Constituição da República Federativa do Brasil, e a abertura principiológica que ela produz a cada novo dia, permitindo ao intérprete realizar como nunca a proteção e a realização dos direitos fundamentais das pessoas portadoras de transtornos mentais.
É, pois, da Constituição que deriva o devido processo legal de internação psiquiátrica involuntária e suas fundamentais conseqüências e garantias. Realidade constitucional fundante ainda ignorada pela magistratura, advocacia, Ministério Público, profissionais da área e pelo movimento social em saúde mental.
Mesmo ainda em potência, viva a Constituição! O tempo da saúde mental ainda está por vir. O tempo da saúde mental constitucional.
Fonte: JUS NAVEGANDI

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


ANDRADE, José Carlos Vieira de. O internamento compulsivo de portadores de anomalia psíquica na perspectiva dos direito fundamentais, in A lei de saúde mental e o internamento compulsivo, Coimbra: Coimbra Editora, 2000.
BARRETO. Irineu Cabral Barreto. A Convenção Européia dos Direitos do Homem Anotada, 2 ed, Coimbra: Coimbra Editora, 1999.
BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da constituição brasileira, 7. ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2003.
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, 13 ed, São Paulo: Malheiros, 2003.
CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 12. ed, São Paulo: Saraiva, 2005.
BOTEGA, Neury Jr & DALGALARRONDO, Paulo. Saúde mental no hospital geral, São Paulo: Editora Hucitec, 1997.
DELDUQUE, Maria Célia & OLIVEIRA, Mariana Siqueira de Carvalho. O papel do ministério público no campo do direito e saúde, in Questões atuais de direito sanitário, Brasília: Editora MS, 2006.
MENDES, Gilmar Ferreira. Os direitos individuais e suas limitações: breves reflexõesin Hermenêutica constitucional e direitos fundamentais, Brasília: Brasília Jurídica, 2002.____ Repertório IOB de Jurisprudência. São Paulo: IOB, 1/18145, março de 2003.
MOSSIN, Heráclito Antônio. Habeas Corpus, 7 ed., Barueri: Manole, 2005.
NOVAIS, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela constituição, Coimbra: Coimbra Editora, 2003.
KRAUT, Alfredo Jorge. Los derechos de los pacientes. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 2000.
PORTANOVA, Rui. Princípio do processo civil, 4 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais, 2 ed, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002.
STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares a direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2004.

Notas

  1. PORTANOVA, Rui. Princípio do processo civil, 4 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 145.
  2. STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares a direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 227.
  3. Supremo Tribunal Federal, Recurso extraordinário nº 201819/RJ, Segunda Turma, Relator para acórdão Ministro Gilmar Mendes, Diário da Justiça de 27 de outubro de 2006.
  4. ANDRADE, José Carlos Vieira de. O internamento compulsivo de portadores de anomalia psíquica na perspectiva dos direito fundamentais, in A lei de saúde mental e o internamento compulsivo, Coimbra: Coimbra Editora, 2000, p. 78.
  5. BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, 13 ed, São Paulo: Malheiros, 2003, p. 563/564.
  6. BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, 13 ed, São Paulo: Malheiros, 2003, p. 561/562.
  7. MENDES, Gilmar Ferreira. Os direitos individuais e suas limitações: breves reflexõesin Hermenêutica constitucional e direitos fundamentais, Brasília: Brasília Jurídica, 2002, p. 227.
  8. ANDRADE, José Carlos Vieira de. O internamento compulsivo de portadores de anomalia psíquica na perspectiva dos direito fundamentaisin A lei de saúde mental e o internamento compulsivo, Coimbra: Coimbra Editora, 200, p. 81-82
  9. O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, porém, num louvável esforço de interpretação integradora, tem estendido as garantias típicas dos "presos" aos doentes mentais fora de um contexto penal. A notícia é de Irineu Cabral Barreto, juiz da referida Corte, no seu prestigiado "A Convenção Européia dos Direitos do Homem Anotada", 2 ed, Coimbra: Coimbra Editora, 1999.
  10. MENDES, Gilmar Ferreira. Os direitos individuais e suas limitações: breves reflexõesin Hermenêutica constitucional e direitos fundamentais, Brasília: Brasília Jurídica, 2002, p. 240.
  11. MENDES, Gilmar Ferreira. Os direitos individuais e suas limitações: breves reflexões, in Hermenêutica constitucional e direitos fundamentais, Brasília: Brasília Jurídica, 2002, p. 240.
  12. NOVAIS, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela constituição, Coimbra: Coimbra Editora, 2003, p. 449-450.
  13. BOTEGA, Neury Jr & DALGALARRONDO, Paulo. Saúde mental no hospital geral, São Paulo: Editora Hucitec, 1997, p. 15.
  14. Segundo Gilmar Ferreira Mendes, in Colisão de direitos fundamentais na jurisprudência do Supremo Tribunal federal. Repertório IOB de Jurisprudência. São Paulo: IOB, 1/18145, março de 2003, p. 185: "A doutrina cogita de colisão de direitos em sentido estrito ou em sentido amplo. As colisões em sentido estrito referem-se apenas àqueles conflitos entre direitos fundamentais. As colisões em sentido amplo envolvem os direitos fundamentais e outros princípios ou valores que tenham por escopo a proteção de interesses da comunidade.
  15. KRAUT, Alfredo Jorge. Los derechos de los pacientes. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 2000. p. 545.
  16. Constituição Federal da República Federativa do Brasil, "art. 5º, XXXV: a lei não excluíra da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito".
  17. SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais, 2 ed, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 45.
  18. DELDUQUE, Maria Célia & OLIVEIRA, Mariana Siqueira de Carvalho. O papel do ministério público no campo do direito e saúde, in Questões atuais de direito sanitário, Brasília: Editora MS, 2006, p. 14.
  19. BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da constituição brasileira, 7. ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 184-185.
  20. MOSSIN, Heráclito Antônio. Habeas Corpus, 7 ed., Barueri: Manole, 2005, p. 77.
  21. CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 12. ed, São Paulo: Saraiva, 2005, p. 493.
  22. Superior Tribunal de Justiça, HC 35301 / RJ, T3, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJ de 13/09/2004.



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