A incidência dos danos psíquicos em vítimas de sequestro e cárcere privado à luz do Código Penal
Autor: Joceli Scremin da Rocha - Bacharel em Direito pela Universidade Metodista de São Paulo e servidora do Ministério Público Federal
Sumário: 1 Do conceito de sequestro e cárcere privado. 1.1 Da importância do bem jurídico tutelado. 1.2 Dos aspectos históricos do crime de sequestro e cárcere privado. 2 Tipificação do crime na legislação penal brasileira. 2.1 Considerações doutrinárias. 2.2 Da análise do crime. 2.3 Do perfil da prática do crime no Brasil. 3 O sequestro e a psiquiatria forense. 3.1 Da síndrome de Estocolmo. 3.2 Do Transtorno de Estresse Pós-Traumático. 3.3 Dos danos psíquicos. 4 Valoração da perícia psiquiátrica forense na legislação penal. 4.1 Do Transtorno de Estresse Pós-Traumático causado em vítimas de sequestro: circunstância agravante ou qualificadora? 5 Conclusão.
1 Do conceito de sequestro e cárcere privado
De início, torna-se necessário apontarmos a existência de semelhanças e diferenças entre o sequestro e o cárcere privado. Dentre as diferenças, podemos ressaltar resumidamente que a prática do cárcere privado consiste na privação da liberdade de locomoção de uma pessoa de uma forma mais estrita, efetivada por meio da clausura, no local onde ela estiver.
Por sua vez, o sequestro admite que essa mesma privação da liberdade de locomoção seja efetivada de uma forma mais ampla, admitindo sua efetivação em local diverso daquele no qual ela se encontrar.
A clausura, per se, consiste na retenção da vítima em um recinto fechado; todavia, o ato de sequestrar pode se consumar em um local aberto. Nesse sentido: “pode-se encarcerar alguém em um quarto, em uma sala, em uma casa etc; e pode-se sequestrar retirando-o de um determinado lugar e levando-o para outro, como para uma ilha, um sítio etc.”
Dessa feita, tanto no sequestro como no cárcere privado ocorrem duas situações: a detenção e a retenção de alguém. A detenção consiste basicamente em transportar a vítima para um determinado local e prendê-la; por outro lado, a retenção é caracterizada pela circunstância de impedir a sua saída.
No cárcere privado, a detenção ou a retenção da vítima é realizada, necessariamente, por meio de clausura ou confinamento. Por sua vez, o sequestro admite que a detenção e a retenção sejam realizadas em um recinto fechado, por enclausuramento, ou em um local aberto.
A semelhança existente entre ambos resta demonstrada pelo objeto jurídico tutelado pelo Estado, de forma que a liberdade de locomoção e o movimento de qualquer pessoa sejam preservados. Portanto:
Constituem o seqüestro e o cárcere privado formas da privação total ou parcial da liberdade de locomoção de alguém. Configuram-se, embora reste ainda à pessoa certa liberdade, ainda que ela possa, dentro em certos limites, movimentar-se ou locomover-se. O bem jurídico é, pois, o direito de ir e vir, a liberdade de movimento no espaço.
Tutela-o a lei, avisada de que só o Estado, por forma competente, pode privar o indivíduo do gozo desse bem.
1.1 Da importância do bem jurídico tutelado
O sequestro e o cárcere privado são crimes que atentam contra a liberdade individual, mais especificamente contra a liberdade de locomoção, do movimento de ir, vir ou ficar das pessoas.
Precisamente, o bem jurídico tutelado é o livre gozo dessa liberdade, tendo em vista que a finalidade do Direito Penal consiste na “proteção dos bens mais importantes e necessários para a própria sobrevivência da sociedade”
A fonte de todos os bens essenciais para o convívio em sociedade encontra-se resguardada na Constituição Federal. Por seu turno, o direito à liberdade qualifica-se como um desdobramento do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, esculpido no artigo 1º, inciso III, da Carta Magna, transcrito a seguir:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
[...]
III – a dignidade da pessoa humana;
Em conformidade com as palavras do doutrinador Alexandre de Moraes:
A dignidade da pessoa humana é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida. [...]
Esse fundamento afasta a idéia de predomínio das concepções transpessoalistas de Estado e Nação, em detrimento da liberdade individual.
É mister ressaltar que o direito à liberdade é consagrado como um direito indisponível e como uma garantia fundamental a todas as pessoas, devidamente assegurado no artigo 5º da Constituição Federal, in verbis:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...]
Assim, a liberdade foi eleita pela Carta Magna como um valor imprescritível, inalienável, irrenunciável, inviolável, universal, efetivo, interdependente e indispensável para a manutenção da vida social.
É justamente na Constituição Federal que o legislador penal deve se orientar para definir os delitos, obedecendo pressupostos éticos, sociais, econômicos e políticos da sociedade, com a edição de normas que proíbam determinadas condutas aptas a violar direitos fundamentais de toda e qualquer pessoa.
1.2 Dos aspectos históricos do crime de sequestro e cárcere privado
No Direito Romano, a prática da prisão arbitrária era considerada um crime punível pela Lex Julia (D. 48,6,5,5). Posteriormente, a Constituição de Zenon (486 d.C) qualificou o cárcere privado como um crime autônomo, considerando que a única pessoa apta a determinar o encarceramento de alguém era o soberano (Cód. IX, 5, 1).
Nessa época, o cárcere era configurado como crime de lesa-majestade e visto como uma usurpação do poder soberano. Por conseguinte, cominava-se aos acusados a pena capital.
O imperador romano Justiniano, durante o seu período de governo, em tese, amenizou tal punição, uma vez que determinou que o encarceramento do agente que praticasse tal crime deveria ser correspondente ao mesmo tempo da duração do crime infligido à vítima (tot dies manere inpublico carcere, quot quis in privato ab esi inclusus).
No decorrer da Idade Média, o cárcere privado continuou sendo considerado um crime de lesa-majestade. No entanto, determinava-se a extinção da punibilidade ao agente que infligisse à vítima detenção considerada justa e por tempo inferior a 20 horas (Qui capit aliquem et detinet ex injusta causa, punitur poena privatis carceris, etiam illum detinet minori spatio viginti horarum).
No que tange ao direito comparado, o antigo direito italiano previa o crime de sequestro no código sardo de 1859 e no toscano em 1853, respectivamente em seus artigos 199 e 360. Não obstante, o crime de sequestro atualmente capitulado no Código Penal brasileiro apresenta características semelhantes ao código toscano de 1853.
O Código Penal francês, datado de 1810, tratou da matéria em comento especificamente no título Arrestations illégales et séquestration de personnes. Por sua vez, o Código Penal alemão, de 1871, atentou para o crime de cárcere privado introduzindo o Freiheitsberaubung.
O crime de sequestro também é mencionado no Código Penal do Paraguai. No referido instituto jurídico, o delito de sequestro encontra-se enumerado no rol dos crimes contra as garantias constitucionais.
2 Tipificação do crime na legislação penal brasileira
O Código Criminal do Império, datado de 1830, por meio do título Dos crimes contra a liberdade individual, especificou o delito de cárcere privado da seguinte forma:
Haverá cárcere privado quando alguém for recolhido preso em qualquer casa ou edifício não destinado para prisão pública, ou ali conservado sem urgentíssima necessidade pela autoridade oficial, ou pessoa que o mandar prender ou o prender, e bem assim quando for preso nas prisões públicas por quem não tiver autoridade para o fazer.
É necessário atentarmos ao fato de que o Código Criminal do Império admitia que o local do crime poderia incluir as próprias prisões públicas11. Já o nosso Código Penal de 1890, inspirado no Código Penal de Portugal vigente em 1852, instituiu o delito de sequestro e cárcere privado, em seu Livro II, intitulado Dos Crimes em Espécie, artigo 181, com a seguinte redação:
Art. 181. Privar alguma pessoa de sua liberdade, retendo-a para si ou por outrem, em carcere privado, ou conservando-a em seqüestro por tempo menor de 24 horas:
Pena – de prisão celular por dous mezes a um anno.
§ 1º Si a retenção exceder desse prazo:
Pena – de prisão cellular por 6 mezes a 2 annos.
§ 2º Se o criminoso commetter o crime simulando ser autoridade publica, ou usando de violencia:
Pena – a mesma, com augmento da terça parte.
É importante destacarmos ainda o disposto nos artigos 182 e 183, também pertencentes ao Código Penal de 1890:
Art. 182. Causar à pessoa retenda, ou sequestrada, máos tratos, em razão do logar e da natureza da detenção, ou qualquer tortura corporal:
Pena – de prisão cellular por um a tres annos.
Art. 183. Si aquelle que commetter o crime de carcere privado não mostrar que restituiu o paciente à liberdade, ou não indicar o seu paradeiro:
Pena – de prisão cellular por 2 a 12 annos.
Cumpre salientar que, no Código Penal de 1890, o local do cárcere privado passou a ser considerado qualquer casa ou edifício não destinado à prisão pública15, diferentemente do Código Criminal do Império de 1830.
Por fim, o entendimento da inclusão do delito de sequestro como uma forma alternativa do crime de cárcere privado, instituído originariamente no Código Penal de 1890, em seu artigo 181, supramencionado, permaneceu no Código Penal brasileiro de 1940.
2.1 Considerações doutrinárias
O delito de sequestro e cárcere privado encontra-se enumerado atualmente no artigo 148 do Código Penal, com o seguinte teor:
Art. 148. Privar alguém de sua liberdade, mediante seqüestro ou cárcere privado:
Pena – reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos.
§ 1º A pena é de reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos:
I – se a vítima é ascendente, descendente, cônjuge ou companheiro do agente ou maior de 60 (sessenta anos);
II – se o crime é praticado mediante internação da vítima em casa de saúde ou hospital:
III – se a privação de liberdade dura mais de 15 (quinze) dias;
IV – se o crime é praticado contra menor de 18 (dezoito) anos;
V – se o crime é praticado com fins libidinosos;
§ 2º Se resulta à vítima, em razão de maus-tratos ou de natureza da detenção, grave sofrimento físico ou moral;
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos.
A análise do tipo penal do sequestro e cárcere privado, como já dito anteriormente, relaciona-se com uma conduta praticada por alguém, de forma que provoque a restrição da liberdade de outrem, relativamente ao seu direito de ir e vir. O direito à liberdade de ir e vir representa o objeto jurídico do tipo penal; por sua vez, o objeto material desse crime é representado pela pessoa sobre quem recai a conduta criminosa.
A privação da liberdade sofrida pela vítima deve ser permanente, se prolongando no tempo por um período razoável. Destarte, a doutrina ressalta tratar-se o sequestro e cárcere privado de um crime permanente, aquele cuja consumação se prolonga no tempo.
O delito pode ser praticado e sofrido por qualquer pessoa, não se admitindo, porém, a modalidade do crime na forma culposa. O dolo representa o elemento subjetivo do crime, consistente no animus livre e consciente de privar alguém da sua liberdade de locomoção.
A tentativa é possível somente quando o agente deseja privar a liberdade da vítima, mas a execução é impedida por circunstâncias alheias à sua vontade. Tal hipótese caracteriza a forma comissiva do delito.
Considerando que se trata de um crime material, a consumação ocorre no exato momento em que a vítima é privada do seu direito de liberdade e de locomover-se, ainda que por um lapso de tempo reduzido. A modalidade do delito subdivide-se nas formas simples e qualificada.
A modalidade simples encontra-se descrita no caput do artigo acima colacionado, com pena de reclusão de um a três anos. Por outro lado, a modalidade qualificada encontra-se descrita em várias alterações recentes.
Dentre essas várias alterações, podemos citar os incisos I e V, pertencentes ao § 1º do artigo 138 do referido diploma legal, sobre os quais incidem aumento de pena, passando de dois a até cinco anos de reclusão.
A inclusão do teor vítima ascendente, descendente, cônjuge ou companheiro do agente ou maior de 60 anos no inciso I, deve-se respectivamente à promulgação e vigência das Leis n. 11.106/2005 e n. 10.741/2003.
A Lei n. 11.106/2005 atendeu ao preceito constitucional do artigo 226, § 3º, da Constituição Federal, reconhecendo a união estável entre homem e mulher como entidade familiar. Dessa forma, o inciso em comento evidenciou a prática do crime contra companheiro ou companheira, da mesma forma que já era dispensada ao cônjuge, ascendente e descendente.
Em relação ao crime envolvendo vítima maior de 60 anos, a ampliação da qualificadora se deve pela criação do Estatuto do Idoso, hodiernamente em vigência por meio da Lei n. 10.741/2003.
Outro aspecto importante é demonstrado no inciso V, que ressalta a prática do crime de sequestro e cárcere privado para fins libidinosos. A inclusão desse inciso também é decorrente da edição da Lei n. 11.106/2005, que revogou todos os crimes de rapto previstos anteriormente no Código Penal de 1940, enumerados nos artigos 219 a 22217.
Observa-se que o crime de rapto violento ou mediante fraude, anteriormente descrito no artigo 219 do Código Penal, e atualmente revogado, apresentava uma pena mais severa, cuja reclusão variava de dois a quatro anos, comparando-se ao delito de sequestro e cárcere privado, cominado com pena de reclusão de um a três anos.
Além disso, a vítima deveria ser mulher e honesta. O conceito de honestidade em meados de 1940 excluía não somente da tutela penal, mas mormente da sociedade, as prostitutas ou as mulheres que demonstrassem um comportamento sexual considerado liberal aos padrões da época.
Como se não bastasse, verificamos que o delito de rapto não fornecia tutela aos homens, se restringindo somente à mulher, não se levando em conta que um homem também poderia sofrer privação de sua liberdade para fins libidinosos.
Portanto, a introdução do inciso V no artigo 148, § 1º, do Código Penal, por meio da Lei n. 11.106/2005, tipifica como crime a privação de liberdade para fins libidinosos, eventualmente sofrida por qualquer pessoa, e independentemente de sua condição sexual, atentando-se mormente ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.
Cumpre salientar que a pena é mais severa, com reclusão variável de dois a oito anos, se resultar à vítima, em razão de maus-tratos ou da natureza dadetenção, grave sofrimento físico ou moral, conforme as disposições expressas no artigo 148, § 2º, do mesmo diploma legal.
São exemplos de maus-tratos a prática de atos violentos, falta de alimentação, ausência do fornecimento de medicamentos, restrição da liberdade em um local perigoso ou insalubre etc. O sofrimento físico da vítima poderá ser demonstrado pelo desenvolvimento de doenças, manifestação de sentimento de vergonha, medo, pavor etc.
Em se tratando da hipótese de lesão corporal, o agente responderá por concurso material, uma vez que a configuração da prática do delito de sequestro e cárcere privado, em sua modalidade qualificada, não possui o condão de absorver as lesões eventualmente produzidas pelos agentes.
O consentimento válido da vítima para a prática do sequestro, por sua vez, respalda a atipicidade da conduta. Ressalte-se, porém, que o entendimento corroborado pela doutrina e pela jurisprudência é que se torna irrelevante o consentimento da vítima, em se tratando de menores de 14 anos de idade.
2.2 Da análise do crime
Podemos afirmar que outra qualidade do crime de sequestro é a subsidiariedade. Isso significa que, em grande parte dos casos, ele é praticado, na realidade, para o cometimento de outro crime, podendo nessas hipóteses ser absorvido pelo delito-fim, dependendo do caso in concreto.
Dessa forma, o operador do Direito, ao tipificar a conduta delituosa, deverá atentar ao animus do agente, na prática do crime em questão, demonstrado no decorrer das investigações, presentes a autoria e a materialidade.
Na hipótese de o agente subtrair menor de 18 anos para dele cuidar, sem, contudo, inexistir o animus de privá-lo de sua liberdade de locomoção, não será responsabilizado pelo sequestro, mas sim pelo crime de subtração ou sonegação de incapazes, descrito no artigo 249 do Código Penal.
Em outra situação, caso exista encarceramento da vítima com finalidade corretiva, mas com rigores excessivos, restará demonstrado o crime de maus-tratos, capitulado no artigo 136 do diploma legal em referência.
Por outro lado, caso o agente tenha a intenção do sequestro, com a finalidade de receber vantagem econômica, responderá pelo crime de extorsão mediante sequestro, previsto no artigo 159 do Código Penal, com o seguinte teor:
Art. 159. Seqüestrar pessoa com o fim de obter, para si ou outrem, qualquer vantagem, como condição ou preço de resgate:
Pena – reclusão de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.
§ 1º Se o seqüestro dura mais de 24 (vinte e quatro horas), se o seqüestrado é menor de 18 (dezoito) ou maior de 60 (sessenta) anos, ou se o crime é cometido por bando ou quadrilha:
Pena – reclusão, de 12 (doze) a 20 (vinte) anos.
§ 2º Se do fato resulta lesão corporal de natureza grave:
Pena – reclusão de 16 (dezesseis) a 24 (vinte e quatro) anos.
§ 3º Se resulta a morte:
Pena – reclusão, de 24 (vinte e quatro) a 30 (trinta anos).
§ 4º Se o crime é cometido em concurso, o concorrente que o denunciar à autoridade, facilitando a libertação do seqüestrado, terá sua pena reduzida de um a dois terços. [g.n.]
É necessário ressaltarmos que o crime de extorsão mediante sequestro é também considerado um crime hediondo, nos moldes do artigo 1º, inciso IV, da Lei n. 8.072/1990, com a seguinte redação:
Art. 1º São considerados hediondos os seguintes crimes, todos tipificados no Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, consumados ou tentados:
[...]
IV – extorsão mediante seqüestro e na forma qualificada (art. 159, caput e §§ 1º, 2º e 3º); [g.n.]
A referida lei aponta que os crimes considerados hediondos são insuscetíveis de anistia, graça, indulto, fiança ou liberdade provisória e que as penas deverão ser cumpridas inicialmente em regime fechado20.
Na atualidade, as estatísticas apontam um crescimento vertiginoso da prática do crime de extorsão mediante sequestro. É relevante observarmos que, embora o artigo 159 do Código Penal admita que o agente obtenha qualquer vantagem para si ou para outrem, na maioria dos casos, a barganha mais incidente nesta modalidade de crime é exclusivamente econômica ou patrimonial.
Devemos considerar ainda a existência de outra modalidade de privação da liberdade das vítimas, largamente praticada em nossos dias e conhecida como sequestro relâmpago.
Na realidade, tal modalidade de delito não se trata do sequestro tipificado no artigo 148 do Código Penal, mas sim do delito de roubo, capitulado no artigo 158, § 2º, acrescido do inciso V, com as modificações trazidas pela Lei n. 9.426/1996, da seguinte forma:
Art. 157. Subtrair coisa imóvel ou alheia, para si ou outrem, mediante grave ameaça ou violência à pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à impossibilidade de resistência:
Pena – reclusão de quatro a dez anos, e multa. [...]
§ 2º A pena aumenta-se de um terço até metade:
[...]
V – se o agente mantém a vítima em seu poder, restringindo sua liberdade. [g.n.]
No entanto, verifica-se que a tipificação penal de sequestro relâmpago foi tratada recentemente pelo legislador, com a edição da Lei n. 11. 923, de 17 de abril de 2009, nestes termos:
Art. 1º O artigo 158 do Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, passa a vigorar acrescido do seguinte § 3º:
Art. 158
[…]
§ 3º Se o crime é cometido mediante a restrição da liberdade da vítima, e essa condição é necessária para a obtenção da vantagem econômica, a pena é de reclusão, de 6 (seis) a 12 (doze) anos, além da multa; se resulta lesão corporal grave ou morte, aplicam-se as penas previstas no art. 159, §§ 2º e 3º, respectivamente [...].
2.3 Do perfil da prática do crime no Brasil
O sequestro ou cárcere privado, conforme já mencionado, classifica-se como um crime subsidiário. Dessa forma, ele pode ser utilizado pelo agente como um auxílio ou como um recurso, exclusivamente voltado à obtenção de uma outra finalidade, representada pela concretização de outros crimes, alguns de extrema gravidade.
À guisa desse exemplo, pode-se afirmar que, em algumas hipóteses, o emprego do sequestro ou cárcere privado consiste em um modus operandi ou um ritual, utilizado por serial killers para estuprar, sodomizar, assassinar ou esquartejar suas vítimas. Nesse sentido, a pesquisadora Ilana Casoy entende que “rituais são enraizados na fantasia e freqüentemente envolvem parafilias, como cativeiro, escravidão, posicionamento do corpo e overkill, entre outras. Pode ser constante ou não”.
Porém, no Brasil, as estatísticas apontam que o ato de sequestrar, em tese, é utilizado com maior frequência por criminosos para a obtenção de vantagem econômica ou patrimonial. Tal conduta, à letra fria da lei, configura o crime de extorsão mediante sequestro, envolvendo, mormente, como vítimas empresários, artistas, profissionais do esporte e seus respectivos familiares.
Historicamente, o primeiro crime de extorsão mediante sequestro ocorreu em São Paulo, na década de 1950, em face do empresário Eduardo José Maria Matarazzo, herdeiro de um enorme império econômico.
No Brasil, uma modalidade do delito de sequestro que não foi praticada para a obtenção de uma vantagem patrimonial, mas sim em razão de um interesse político e ideológico, e considerado de enorme importância para compreendermos o retorno do regime democrático em nosso país, ocorreu em julho de 1969, por meio do sequestro do embaixador americano Charles Burke Elbrick.
É importante destacarmos que, se um crime com aspectos semelhantes fosse praticado nos dias de hoje, não obstante a presença do pluralismo político e da liberdade de convicção política, assegurados taxativamente pela Carta Magna como um princípio e um direito fundamental, o sequestro, in casu, seria enquadrado como um crime contra a Segurança Nacional, previsto no artigo 20 da Lei n. 7.170/1983:
Art. 20. Devastar, saquear, extorquir, roubar, seqüestrar, manter em cárcere privado, incendiar, depredar, provocar explosão, praticar atentado pessoal ou ato de terrorismo, por inconformismo político ou para obtenção de fundos destinados à manutenção de organizações políticas clandestinas ou subversivas:
Pena – reclusão, de três a dez anos.
Parágrafo único. Se do fato resulta lesão corporal grave, a pena aumenta-se até o dobro; se resulta morte, aumenta-se até o triplo. [g.n.]
Cumpre salientarmos que a competência para julgar os crimes contra a Segurança Nacional, mencionados na referida lei, pertence à Justiça Federal, em consonância com o disposto no artigo 109, inciso IV, da Constituição Federal:
Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:
[…]
IV – os crimes políticos e as infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços, ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, excluídas as contravenções e ressalvada a competência da Justiça Militar e da Justiça Eleitoral;24
3 O sequestro e a psiquiatria forense
Como vimos, o sequestro é um crime comum, material, comissivo e subsidiário, podendo ser utilizado como um meio-fim para a consecução de outras espécies de delitos, alguns deles considerados ainda mais repugnantes pela sociedade. Infelizmente, no âmbito científico, já se comprovou que o sequestro é capaz de produzir em suas vítimas sofrimentos emocionais, traumas ou, mais precisamente, danos psíquicos.
Dentre algumas modificações psicológicas que assolam as vítimas nessa modalidade de crime, é importante destacarmos a Síndrome de Estocolmo e o Transtorno de Estresse Pós-Traumático, ambos considerados pela psiquiatria como transtornos psíquicos.
É forçoso reconhecer que, devido ao patamar elevado da prática de crimes de sequestro e cárcere privado na atualidade, incluindo-se, outrossim, todas as suas modalidades criminosas subsidiárias, aumentam-se na mesma proporção o número de vítimas portadoras de abalos psíquicos, em decorrência da conduta agressiva empregada pelos agressores.
3.1 Da Síndrome de Estocolmo
A Síndrome de Estocolmo pode ser definida como certas condutas estranhas que demonstram a existência de um elo afetivo envolvendo respectivamente os sequestradores e suas vítimas.
Assim, acredita-se que a síndrome possa ser qualificada como uma enfermidade que sofrem algumas pessoas que passam por uma situação de cativeiro.
Do ponto de vista psicológico, a Síndrome de Estocolmo pode ser considerada uma resposta emocional produzida na vítima, pelo cárcere ou pelo cativeiro, consubstanciada em sua total indefesa e na sua situação de extrema vulnerabilidade.
Nessa vereda, a jornalista e psicóloga Marisa Fortes, profissional militante do Grupo Operativo de Resgate à Integridade Psíquica (GORIP), do Hospital das Clínicas em São Paulo, ao ser entrevistada pelo editor Fernando Galacine, em relação aos sintomas da síndrome, manifestou a seguinte opinião:
Essa síndrome pode ocorrer em qualquer situação de opressão em que havia um algoz e uma pessoa subjugada a ele, dependendo dele para manter-se viva. […] Note que envolve situações de extrema violência e que envolve a certeza por parte da vítima de que pode ser morta ou seriamente ferida por seu agressor […] Como estamos falando do que pensamos ser um desdobramento do TEPT (Transtorno de Estresse Pós-Traumático), há que se lidar também com os sintomas desta problemática. Porém o que temos percebido é que, após algum tempo distante da influência do opressor e afastada a crença de que este poderá fazer-lhe mal, há uma tendência de que a vítima experimente remissão dos sintomas que são os seguintes: sentimentos de amor e ódio pelo agressor; gratidão exagerada por qualquer bondade mostrada pelo agressor; negação ou racionalização da violência do agressor; visão de mundo a partir da ótica do agressor,percepção de pessoas que querem ajudá-la como más e dos agressores como bons; medo de que o agressor volte para pegá-la, ainda que preso ou morto [...].
Isso posto, pode-se afirmar que, quando alguém é retido contra sua vontade e permanece por um tempo isolado somente em companhia de seus sequestradores, eventualmente, poderá buscar desenvolver laços de afetividade como forma de sobrevivência.
O estudo realizado pelo pesquisador Emílio Meluk, em 1998, denominado El Secuestro, una muerte suspendida, descreve os efeitos psicológicos do sequestro em suas vítimas, ressaltando que a partir do momento em que a Síndrome de Estocolmo é manifestada, a vítima ou refém se identifica com os propósitos dos sequestradores e expressa sentimentos de simpatia, sem que tenha, necessariamente, um propósito deliberado ou um objetivo explícito.
Nesse jaez, alguns pesquisadores defendem que, para que o desenvolvimento da síndrome seja favorável, é necessário que o sequestrado não seja agredido, violentado e que não sofra maus-tratos por parte dos sequestradores. Caso contrário, o trato repulsivo transforma-se em uma barreira defensiva, impossibilitando a vítima de se identificar com seus algozes e desenvolver laços afetivos.
Geralmente, os efeitos da síndrome são mais perceptíveis por observadores externos, que podem considerar irracional e desproporcional o fato de uma vítima defender, adotar atitudes para desculpar seus sequestradores e até mesmo justificar os motivos que os levaram à prática do delito.
Cumpre salientar a necessidade de que exista um tempo decorrido após a finalização do ato delituoso para que a vítima seja integrada novamente às suas rotinas habituais, de forma que se acostume com o fim de sua situação de cativeiro. Isso significa que o tratamento prescrito às vítimas pelos profissionais competentes, visando à sua recuperação e ao seu retorno às atividades normais, exige uma demanda de tempo.
Além disso, as manifestações de agradecimento e admiração dos pacientes pelos opressores, via de regra, prolongam-se por um determinado período. Por derradeiro, aponte-se que as reações da Síndrome de Estocolmo, desde que compreendidas e acompanhadas por ajudas profissionais qualificadas, poderão ser superadas.
3.2 Do Transtorno de Estresse Pós-Traumático
Os aspectos abordados neste item possuem como referência a tese de qualificação para o Doutorado em Ciências Médicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo redigida pelo doutor Eduardo Ferreira Santos, médico atuante no Serviço de Psicoterapia do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da FMUSP.
O trabalho científico elaborado por este profissional, intitulado Avaliação da magnitude do transtorno de estresse em vítimas de seqüestro, explana com maestria que atualmente o Transtorno de Estresse Pós-traumático infelizmente atinge vítimas de sequestro em picos consideravelmente elevados, devendo receber maior atenção por parte da Saúde Pública e da Segurança Pública Estadual.
As assertivas expostas no trabalho revelam que o ato de sequestrar é suficientemente capaz de provocar nas vítimas danos morais e psicológicos, que podem manifestar-se de uma forma imediata ou tardia.
Os transtornos podem evidenciar o diagnóstico dos sintomas do Transtorno de Estresse Pós-Traumático, previstos no DSM-IV e CID-10, ou ainda os sintomas de Reação Aguda ao Estresse, marcados por graves consequências mentais, impossibilitando que as vítimas possam voltar a exercer suas atividades habituais.
Frise-se que as disposições expressas no manual da Classificação Internacional de Doenças – CID-10 descrevem que, para a configuração do Transtorno de Estresse Pós-Traumático, o paciente deve ter sido exposto a um evento ou situação estressante (de curta ou longa duração) de natureza excepcionalmente ameaçadora ou catastrófica, a qual provavelmente causaria invasiva em quase todas as pessoas.
Nesse jaez, o manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais – 4ª edição – DSM-IV descreve que um evento traumático poderá desencadear transtornos nas hipóteses em que “a pessoa vivenciou, testemunhou ou foi confrontada com um ou mais eventos que envolvem morte ou grave ferimento, reais ou ameaçadores, ou uma ameaça à integridade física própria ou a de outros”
Comungando do mesmo entendimento, Julio Bobes Garcia, catedrático de psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de Oviedo, esclarece que:
[...] la situación estresante se refiere a aquellas em las que el individuo está em peligro grave, o em las que puedan estarlo em su pareja, hijos, familiares cercanos o amigos. Ser testigo de la destrucción de la propia casa o de la muerte de otras personas también se há relacionado com la aparición de este trastorno. Las situaciones traumáticas realizadas de manera intencionada por el hombre tienen más possibilidades de desenadenar este trastorno que los desastres naturales. La capacidad que tienen las diferentes situaciones traumáticas de producir transtorno de estrés postraumático varia enormemente. [...]
Os sintomas presentes nas vítimas consistem basicamente em uma recordação persistente do evento traumático, ausência de responsividade e excitação mental. Mister frisarmos que esses sintomas encontram-se presentes no comportamento das vítimas, em regra, por um prazo, no mínimo, superior a um mês, após a extinção do evento traumático, provocando-lhes, por conseguinte, sofrimentos e prejuízos em sua vida social, profissional ou ocupacional.
É importante observarmos, também, que tal modalidade de transtorno decorre, em tese, de uma conduta violenta ou agressiva empregada pelos agentes para a consumação do sequestro. O trabalho científico do doutor Eduardo Ferreira Santos informa ainda que, na literatura médica e psicológica, o crime de estupro, a saber, é destacado como a principal causa que pode desencadear nas vítimas transtornos mentais.
Saliente-se que as afirmações expostas na tese de doutorado referenciada neste trabalho acrescentam que a primeira citação do delito de sequestro como causa da manifestação do Transtorno de Estresse Pós-Traumático foi feita pela psiquiatra infantil doutora Leonore Terr.
A tese destaca ainda que 81 pessoas de ambos os sexos, maiores de 18 anos, residentes em São Paulo, vítimas dos crimes de extorsão mediante sequestro e sequestro relâmpago, procuraram espontaneamente o Serviço de Psicoterapia do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
As avaliações psiquiátricas realizadas nessas vítimas apontaram que todas elas apresentaram sintomas do Transtorno de Estresse Pós-Traumático. No que tange aos sintomas, as perícias enfatizaram que não foram encontradas diferenças significativas ao se compararem situações que envolveramsequestro relâmpago com situações que envolveram sequestro com cativeiro.
O trabalho científico em comento, contudo, assevera que os transtornos de estresse, em ambos os casos, acarretam consequências negativas às funções psíquicas das vítimas, a ponto de incapacitá-las para suas atividades cotidianas, profissionais e afetivas.
Por derradeiro, o teor da pesquisa destaca a possibilidade de os pacientes simularem a presença dos sintomas dessa modalidade de transtorno psíquico ao serem submetidos à avaliação psiquiátrica.
A simulação é algo muito frequente na psiquiatria forense, tendo-se em vista que, em algumas hipóteses, a intenção dos pacientes consiste em empregá-la para interesses egoísticos e para a obtenção de algum benefício. No entanto, existem técnicas profissionais adequadas empregadas pelos profissionais envolvidos aptas a desmascarar o suposto simulador.
3.3 Dos danos psíquicos
A psiquiatria forense define o dano psíquico como uma doença psíquica manifestada em alguém em razão de algum sofrimento traumático, eventualmente relacionado a algum acidente, doença ou delito. Nesse passo, o resultado deve acarretar ao indivíduo um prejuízo irreversível no exercício de suas aptidões, ainda que temporariamente.
De início, é certo que todos os prejuízos emocionais ocasionados às vítimas por acontecimentos negativos, sejam doenças, delitos ou acidentes, admitem a possibilidade de regresso em face dos responsáveis e a posterior percepção de um ressarcimento pecuniário, ou de uma indenização, no âmbito civil.
É importante ressaltarmos que as avaliações e valorações de danos psíquicos, seja na esfera penal, civil ou administrativa são objeto de estudo da psiquiatria forense. No entanto, em relação aos métodos de avaliação, existem diferenças nos critérios empregados pelos médicos especializados em psiquiatria, isoladamente, e pelos peritos criminais, no âmbito forense.
Isso se deve ao fato de que, em tese, o médico é um profissional mais preocupado com o sofrimento e conforto emocional das pessoas; doutra feita, a psiquiatria forense estabelece critérios mais rígidos e formais para aceitar o diagnóstico.
É incontestável que uma experiência de sequestro pode acarretar em suas vítimas sofrimentos emocionais. Tais sofrimentos poderão ou não ser classificados pelo psiquiatra como Síndrome de Estocolmo, Transtorno de Estresse Pós-Traumático, Reação Aguda ao Estresse etc., nas modalidades moderada ou severa.
A rigor, a psiquiatria forense considera que, para que um sofrimento emocional seja considerado um dano psíquico, o evento negativo deve causar ao indivíduo alguma incapacidade permanente, em relação às suas atividades profissionais, sociais e afetivas.
Porém, temos de considerar a existência de sofrimentos emocionais que não acarretam necessariamente às suas vítimas uma incapacidade permanente ou definitiva, mas que são capazes de impedir que elas voltem a ter a mesma qualidade de vida que gozavam antes do evento traumático e delitivo.
Nesse diapasão, existem várias vítimas que foram submetidas à torturas, estupros ou sequestros que continuam trabalhando para sobreviver, incluindo-se também vítimas de sequestro relâmpago. No entanto, o fato de estarem trabalhando não significa que estejam plenamente recuperadas do evento traumático, tampouco que se pode infirmar a configuração de danos psíquicos.
De acordo com os ensinamentos proferidos pelo doutor Genival Velloso de França (2004), a perícia para a avaliação do dano psíquico deveria avaliar, mormente, os quesitos enumerados a seguir:
1) Questões de natureza penal:
a) se do dano resultou incapacidade para as ocupações habituais por mais de trinta (30) dias;
b) se do dano resultou debilidade permanente de membro, sentido ou função;
c) se do dano resultou perda ou inutilização de membro, sentido ou função;
d) se do dano resultou aceleração de parto;
e) se do dano resultou aborto;
f) se do dano resultou incapacidade permanente para o trabalho;
g) se do dano resultou uma enfermidade incurável;
h) se do dano resultou deformidade permanente;
i) se do dano resultou incapacidade temporária;
j) se do dano resultou “quantum doloris”;
k) se do dano resultou prejuízo de afirmação pessoal;
l) se do dano resultou prejuízo futuro.
2) Questões de natureza administrativa;
3) Questões de natureza trabalhista.
Em relação aos quesitos supracitados, cumpre esclarecermos que a expressão quantum doloris é referente ao tempo de sofrimento traduzido pela angústia, ansiedade ou abatimento da vítima, em face do risco de morte.
A medição é efetuada por meio de níveis quantitativos, em uma escala de valores enumeradas de 1 a 5. No que tange ao quesito da afirmação pessoal, verifica-se se a pessoa foi prejudicada em suas realizações pessoais.
Por fim, esclarecemos neste trabalho que a perícia atual relativa ao dano psíquico é constituída por somente quatro elementos:
a) a existência de um prejuízo na performance da pessoa decorrente de alguma alteração mórbida que não havia antes do fato;
b) uma causa ou evento relevante, diretamente relacionado e a partir da qual a alteração mórbida passou a existir;
c) um diagnóstico médico preciso;
d) o prognóstico do dano classificado como incapacitante e permanente.
4 Valoração da perícia psiquiátrica forense na legislação penal
Considerando que o delito de cárcere privado e sequestro, incluindo-se suas formas subsidiárias, pode ocasionar em suas vítimas transtornos e sofrimentos emocionais, a perícia psiquiátrica forense é um instrumento com utilidade para avaliar e atestar a presença dos sintomas específicos, em relação ao evento delituoso.
A perícia psiquiátrica é uma forma de avaliação especializada com a finalidade de esclarecer e auxiliar a autoridade judicial, policial e administrativa, constituindo, portanto, um meio de prova.
Em relação à área cível, o exame pericial psiquiátrico poderá ser um meio utilizado para avaliar os transtornos decorrentes do sequestro, a fim de que a vítima possa pleitear judicialmente uma ação indenizatória.
A referida ação deverá obedecer ao procedimento ordinário, previsto respectivamente nos artigos 282 a 294 do Código de Processo Civil. Porém, a perícia psiquiátrica em direito criminal, em regra, somente é utilizada em relação ao réu a fim de verificar sua capacidade de imputação.
É necessário atentarmos ao fato de que, na legislação penal, o crime de sequestro e cárcere privado, capitulado no artigo 148, prevê aumento de pena ao agente quando resultar à vítima, em razão de maus-tratos, grave sofrimento físico ou moral.
No entanto, o tipo penal em comento não faz alusão ao aumento de pena, em se tratando de eventual decorrência de um transtorno ou dano psíquico. Por outro lado, a doutrina não é clara ao esclarecer o teor do que seria enquadrado como um grave sofrimento moral. Dessa forma, o ideal seria que o legislador tivesse cominado aumento de pena, utilizando-se juridicamente da expressão grave sofrimento moral e ou mental.
O mesmo ocorre em relação ao crime de extorsão mediante sequestro e a modalidade de sequestro relâmpago, correspondente ao delito de extorsão, enumerados respectivamente nos artigos 159, caput, e 158 do Código Penal.
Nesses casos, o aumento de pena atribuído ao agente é decorrente da existência de lesão corporal e morte. Note-se que os delitos supracitados também não fazem qualquer alusão à hipótese de um possível sofrimento mental, transtorno ou dano psíquico infligido à vítima, causando-lhe, por conseguinte, uma incapacidade de forma temporária ou permanente.
Mas não é só. Note-se que o legislador também permaneceu silente no tocante à valorização de danos psíquicos ou, mais precisamente, aos graves sofrimentos mentais sobrevindos às vítimas, ao deixar de enquadrá-los como uma circunstância agravante no artigo 61 do Código Penal.
4.1 Do Transtorno de Estresse Pós-Traumático causado em vítimas de sequestro: circunstância agravante ou qualificadora?
Como já mencionado anteriormente, os crimes de sequestro, infelizmente praticados com enorme incidência nos dias atuais, podem desencadear em suas vítimas o Transtorno de Estresse Pós-Traumático, enumerado no manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, 4ª edição – DSM-IV, e que se manifesta de forma leve, moderada ou severa.
Assim, podemos concluir que o Transtorno de Estresse Pós-Traumático pode ser plenamente considerado um dano psíquico, atentando-se ao modelo de avaliação psíquica forense sugerido pelo doutor Genival Velloso de França, consagrado autor da ciência médica brasileira, que considera a situação da vítima e a existência de sintomas de entorpecimento e hiperestimulação.
O doutor Eduardo Ferreira Santos assevera que os sintomas de entorpecimento e hiperestimulação inabilitam a pessoa para o exercício de suas funções cotidianas, tornando-a, portanto, temporariamente incapaz.
Dentre os sintomas de entorpecimento e hiperestimulação que detectam a incapacidade da vítima, podemos citar a redução de seus interesses para exercer atividades cotidianas, a restrição de sua capacidade afetiva, o seu esforço para evitar pensamentos ou sentimentos ligados ao trauma, bem como a presença de insônia e irritabilidade.
Ele esclarece ainda que, embora os traumas emocionais de um sequestro possam ser permanentes, a readaptação dos pacientes torna-se possível por meio de um tratamento adequado, infirmando a configuração de incapacitação permanente.
Dessa forma, podemos declarar que o Transtorno de Estresse Pós-Traumático, que poderia juridicamente encontrar-se consubstanciado na legislação penal pátria como grave sofrimento mental ou dano mental, detém todos os requisitos de uma circunstância qualificadora.
A qualificadora de grave sofrimento mental ou dano mental, por sua vez, deveria estar expressa nos tipos penais de sequestro ou cárcere privado, extorsão mediante sequestro ou roubo, capitulados respectivamente nos artigos 148, 158 e 157, inciso V, todos do Código Penal, ou, ainda, como uma circunstância agravante, prevista taxativamente na parte geral do mesmo diploma legal.
Considerando que a lei penal é omissa, não fazendo alusão clara à cominação de alguma circunstância agravante ou qualificadora relativa aos transtornos emocionais ou psíquicos sobrevindos às vítimas desses crimes, pergunta-se: os magistrados atualmente possuem consciência de tais transtornos e os valorizam, sejam eles transitórios ou permanentes, severos ou moderados, considerados ou não pela psiquiatria forense como um dano psíquico, no momento da cominação da pena in abstrato?
É aconselhável aos operadores de Direito meditarem em relação a essa questão. No que tange à circunstância qualificadora enumerada na atual redação do delito de sequestro e cárcere privado, estipulando o aumento de pena caso resulte à vítima grave sofrimento moral, novamente mencionamos que a doutrina não é clara.
Conforme Mirabete, “sofrimentos morais são perturbações psíquicas, a vergonha, o terror etc.”37. Porém, esse sofrimento moral é somente no momento do crime?
Não existem diferenças entre o sofrimento moral e os sofrimentos mentais ou danos psíquicos adquiridos, em tese, pelas vítimas de forma imediata ou tardia, acarretando cicatrizes emocionais perenes?
Nesse sentido, o aconselhável é um estudo mais profundo dessas questões, de forma que a legislação possa tratá-las com mais especialidade e até com mais severidade.
Além disso, ao adotarmos uma interpretação especificadora da norma prevista no artigo 148, § 2º, verificamos não ser cabível que sofrimento moral seja sinônimo de perturbações psíquicas ou psicológicas adquiridas pelas vítimas, em virtude da materialidade e da autoria delitiva.
Em conformidade com esse entendimento, colham-se as assertivas do doutrinador Tércio Sampaio Ferraz Junior:
Uma interpretação especificadora parte do pressuposto de que o sentido da norma cabe na letra do seu enunciado. Tendo em vista a criação de condições para que os conflitos sejam decidíveis com um mínimo de perturbação social (questão de decidibilidade), a hermenêutica vê-se pragmaticamente dominada por um princípio de economia de pensamento.
Postula, assim, que para elucidar o conteúdo da norma não é necessário sempre ir até o fim de suas possibilidades significativas, mas até o ponto em que os problemas pareçam razoavelmente decidíveis.
Indispensável, portanto, seria uma revisão da Política Criminal atuante em nosso país, em relação ao assunto. Nesse sentido, podemos afirmar que:
A Política Criminal é conceituada, por muitos autores, como a ciência e a arte dos meios preventivos e repressivos de que o Estado, no seu tríplice papel de Poder Legislativo, Executivo e Judiciário, dispõe para atingir o fim da luta contra o crime.
Como ciência, a Política Criminal firma princípios e, como arte, aplica-os.
A Política Criminal examina o Direito em vigor, apreciando a sua idoneidade na proteção social contra os crimes e, em resultado dessa crítica, sugere as reformas necessárias.
Verificando se a legislação vigente alcança a sua finalidade, trata de aperfeiçoar a defesa jurídico-penal contra a delinqüência. O seu meio específico de ação, é em verdade, a legislação penal.
Pelo exposto, nas condições atuais da legislação penal brasileira, atualmente o mínimo a ser feito seria considerar com mais cuidado, na fixação da penain abstrato, os sofrimentos e transtornos infligidos às vítimas nos casos de sequestro, em todas as suas modalidades, em consonância com o disposto nos artigos 59 e 68 do atual Código Penal.
Não obstante ser a perícia psiquiátrica forense, em síntese, direcionada ao réu, no âmbito criminal, para verificação da sua capacidade de imputação, não podemos esquecer que ela é um meio de prova, estendendo-se inclusive à vítima.
Assim, a perícia também poderia ser utilizada perfeitamente por uma vítima portadora de Transtorno de Estresse Pós-Traumático, Síndrome de Estocolmo, Reação Aguda ao Estresse etc. e como um meio de prova na esfera criminal, de acordo com o artigo 159 do Código de Processo Penal.
Ora, a prova pericial produzida em contraditório judicial é um instituto legal que colabora para a livre convicção do Juiz, consubstanciada no princípio da persuasão racional, para a posterior cominação e individualização da pena ao agente. Nesse sentido:
Prova legal: é o método ligado à valoração taxada ou tarifada da prova, significando o preestabelecimento de um determinado valor para cada prova produzida no processo , fazendo com que o juiz fique adstrito ao critério fixado pelo legislador, bem como restringido na sua atividade de julgar.42
Além disso, no que tange à simulação de um falso sofrimento ou transtorno psíquico de estresse traumático, a psicopatologia forense descreve que existem artifícios empregados no referido simulador para que sua prática seja reconhecida. Dentre esses artifícios para desmascarar o suposto simulador, um deles consiste em adotar as seguintes regras:
O primeiro encontro entre o medico e o simulador deve aparentar a credulidade do primeiro: o actor (sic) representará melhor, mais folgadamente, dando pleno desenvolvimento à sua farça (sic), exagerando-a, insistindo nas minúcias, à medida que se vai convencendo que causa impressão e está tentando exito. Para evitar a prudencia calculada e reflectida das respostas convem (sic) precipitar as questões, artificio util (sic) segundo a observação de Chavigny43.
5 Conclusão
Dessa forma, atentando-se às considerações acima expendidas, é forçoso reconhecer que os danos psíquicos causados às vítimas, em decorrência do crime de sequestro e cárcere privado, incluindo-se, outrossim, todas as demais modalidades delituosas subsidiárias, infelizmente, ainda não receberam um tratamento diferenciado na legislação penal brasileira.
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“Art. 274º – El que fuera de los casos previstos por la ley o contra la prohibicíon de ella arrestare, detuviere o secuestrare a una persona, o la privare de outro modo de su libertad, será castigado con tres a seis meses de penitenciaria”.
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