sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Um troço qualquer morreu

Meu caro amigo Zezinho,

Faz um bom tempo que não nos encontramos, que não nos vimos, que não estamos sentados numa mesa de bar, alegres e sorridentes. Tantas coisas mudaram e alteraram nossas vidas, não é mesmo?  Eu aprendi muito com aquela minha vidinha vulgar, de mesa em mesa, de bar em bar. Um dia cansei daquela euforia artificial e preferi ser do jeito e da maneira que sou. 

Recordo que um belo dia lí, em algum lugar do passado, uma frase de Engels : "A liberdade nasce do conhecimento da necessidade". Esta frase que lhe pode parecer oca é uma verdade que me aconteceu e me trouxe ao mundo da sobriedade.

Companheiro, você sabe que nos não éramos só álcool no organismo. Chegamos, com o correr do tempo, a nos tornarmos num "total flex". Usavámos tudo em nossa insanidade, corríamos perigos absurdos que só mesmo a drogadição pode nos levar. Chegamos ao ponto de usarmos aquela droga infeliz, que é a cocaína fumada, em latas e cachimbos. Fomos a quase todas as quebradas, becos, vielas, barracos e favelas numa busca deplorável por ciscos de droga. 

Largamos nossas mulheres e filhos entregues ao desespero e é muito natural que nossos entes queridos entrem em desespero, porque nós só éramos desespero. Sabe, aquela frase que diz "quando a gente ama, é claro que a gente cuida"? Pois é, ela, hoje, tem uma nova significação que não é mais e tão somente minha. Essa frase traduz pra mim o amor dos nossos co-dependentes. Eles têm um modo de cuidar, que é deles, mesmo ciente de que a co-dependência é uma doença. Por amor se comete loucuras e nós nunca amamos o mundo das drogas, essa é a nossa verdade, muitas vezes inconfessa... e, depois de um certo tempo, passamos a renega-las e, ainda assim, num "que será que será", íamos em busca delas. Passávamos tantas horas da madrugada à cata de uma boca disponível, para fazermos uso do que já repudiávamos. Teimosamente não sabíamos nos controlar. Estávamos perdidos. 

Hoje é dia de finados e, se olharmos para trás, poderemos enxergar aqueles caras "muito-loucos", como nós, do outro lado da vida. Nossos finados amigos, ou amigos finados, como queira! 

Gente que se foi e que, quando morriam, costumávamos dizer que mais uma estrela brilhava no céu. Eu olhei para trás e, de vivo, só encontrei você, que, infelizmente, perdoe-me a franqueza, ainda é um "total flex".

Mundo louco, não é mesmo Zezinho? Não sei aonde vê-lo agora, para confortar-me e abraça-lo, feliz em saber que está vivo e que você vai levando essa chama (ultrajante) que se opõe ao que denominamos vida
.
Libertei-me, de tantas coisas, mas não me libertei do desejo de querer lhe ver outra vez, como fomos em nossa juventude, limpos e caretas, mas felizes, compartilhando outras especies de loucuras que, ou eram sonhos, ou eram meras ilusões... mas tantos sonhos bons que tivemos concretizaram-se, não é mesmo?
Sei que mesmo com " com toda a fama, com toda a brahma... a gente vai levando" ; eu de uma forma, você de outra. Estamos em mundos diferentes, agora, mas no mesmo plano. 

Quero que saiba que sou seu amigo, Tão amigo que pensei em mudar um trecho, da letra da canção de Chaplin, cuja versão diz:

"Vidas que se acabam a sorrir
Luzes que se apagam, nada mais
É sonhar em vão tentar aos outros iludir
Se o que se foi pra nós
Não voltará jamais
Para que chorar o que passou
Lamentar perdidas ilusões
Se o ideal que sempre nos acalentou
Renascerá em outros corações"

Sim, sei, é uma versão! Mudar o que, afinal? pense! Perdemos muitas coisas, mas tem muita coisa que eu acho que poderia mudar, em todos nós, para que nossas vidas (verdadeiras novelas dramáticas) tenham um final feliz, para que nossos dramas transformem-se, ao menos, em comedias.

Pois é amigo, só queria lhe dizer, que mesmo sabendo que a gente não tem cura, que reconquistei algo que desprezei por muito tempo: minha vida, tenho uma esperança viva em você que me toca o coração!

Qualquer dia nos veremos e, creia, lhe abraçarei, ainda que o seu abraço seja diferente do que foi um dia, mesmo que seu sorriso seja triste, mesmo que sinta vergonha, ou tente escapulir de uma pequena prosa, esquivando-se. Eu te entendo porque fomos muito parecidos, até o dia em que li que "a liberdade nasce do conhecimento da necessidade"; é uma frase simples e ao mesmo tempo complexa, contida na ideologia marxista, que me salvou e o me salvar é o que importa, só por hoje. 

Creia amigo, eu tive uma vontade, uma boa e inquebrantável vontade; eu queria, era preciso, tinha que mudar, do jeito que era não poderia mais ficar, não podia ser. Aquele pesadelo parece ter se finado em mim, cara. 

Pois hoje, dia de finados, a droga morreu pra mim e eu estou vivo festejando a vida e orando pelos que usam, pelos que ainda estão no breu das tocas, para que não se finem sem antes regressarem ao mundo real. Oro pelos meus mortos, pelos entes queridos que se foram.  

Forte abraço, amigo.
L.

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