domingo, 9 de maio de 2010

GRUPOS DE MUTUA AJUDA E A (RE) CONSTRUÇÃO DA SUBJETIVIDADE




GRUPOS DE MUTUA AJUDA E A
(RE) CONSTRUÇÃO DA SUBJETIVIDADE

Fonte:
Edemilson Antunes de Campos


Nas últimas décadas um fenômeno novo vem chamando atenção pelo ritmo com que se propaga na sociedade brasileira. Trata-se dos Grupos de Mútua Ajuda; agrupamentos em que se reúnem pessoas de diferentes idades e classes sociais em busca de apoio mútuo para superar vícios ou comportamentos compulsivos que as levaram a uma vida destrutiva e, na maioria das vezes, a um contexto de exclusão social.

No Brasil funcionam hoje pelo menos dezessete grandes associações de mútua ajuda, com centenas de filiais nas maiores cidades brasileiras. Entre essas associações destacam-se: os Narcóticos Anônimos, os Jogadores Compulsivos Anônimos e os Alcoólicos Anônimos.
A principal matriz dos grupos de mútua ajuda é a Irmandade dos Alcoólicos Anônimos (AA), fundada em 1935, em Akron, Estado de Ohio, nos Estados Unidos, e desde seus primórdios reconhecida como um dos mais eficientes Programas de Recuperação de alcoólatras. A Irmandade Alcoólicos Anônimos conta hoje, em números aproximados, com 2,8 milhões de membros no mundo inteiro, em 90 mil grupos espalhados por 151 países. (Alcoólicos Anônimos, 1997) No Brasil, o primeiro grupo de AA surgiu em 1947 e hoje há cerca de 5700 grupos, perfazendo um total em torno de 120000 membros, segundo dados do Escritório de Serviços Gerais de Alcoólicos Anônimos.
Outra importante Irmandade em escala mundial são os Narcóticos Anônimos. Esta é uma das mais antigas e maiores associações de drogadictos em recuperação que se conhece no mundo. O método de N.A para recuperação da adicção às drogas é inteiramente não profissional, contando apenas com o apoio mútuo dos seus membros. A Irmandade N.A é organizada localmente na forma de grupos auto-geridos e auto sustentados. Devido ao sucesso de seu programa de recuperação, os Narcóticos Anônimos atende 1 milhão de pessoas em 150 países. No Brasil, funcionam 400 grupos, freqüentados por 20000 dependentes em recuperação. Atualmente, aqueles que não têm condições para freqüentar as reuniões do grupo presencial, podem fazê-lo pela internet através do grupo virtual N.A on-line. Com o objetivo de auxiliar os familiares dos dependentes químicos também encontramos o NAR-ANON.
Utilizando um método totalmente não profissional e não mantendo vínculos institucionais com o Estado, as Irmandades desenvolvem uma série de atividades pessoais conhecidas como Doze Passos, cuja base é o programa da Irmandade Alcoólicos Anônimos, com o intuito de promover a recuperação de seus membros. Estes “passos” incluem a admissão de que existe um problema, a busca de ajuda, a auto-avaliação, a partilha em nível confidencial, a disposição para reparar danos causados e para trabalhar com outros adictos a drogas que queiram se recuperar.

Mas, qual a importância dos grupos de mutua ajuda para a (re) construção do sujeito? Como os grupos, entendidos como entidades autônomas, sem vínculos institucionais com o Estado, contribuem para a recuperação dos indivíduos? 
Em seu livro Para além da esquerda e da direita, Anthony Giddens atesta a notável importância dos grupos de mutua ajuda nas sociedades contemporâneas: “Nas sociedades contemporâneas, um número muito maior de pessoas pertence a grupos de auto-ajuda do que a partidos políticos”. (Giddens, 1996: 25) Os grupos de mutua ajuda à medida que se baseiam num intercâmbio de elementos da vida emocional, contribuem para uma interação entre os indivíduos, tornando-os mais responsáveis e preparados para o exercício da cidadania. Para Giddens, essa interação emocional entre os indivíduos pode ter também como efeito um maior amadurecimento dos indivíduos, dotando-lhes de maior autonomia. Exemplo disso é a Irmandade Alcoólicos Anônimos, pois “possui uma forma organizacional que inibe as hierarquias fixas. Ele (sic) [os AA] propositadamente se dispõe a criar o máximo de espaço discursivo para seus membros; além disso, também está interessado no desenvolvimento de autonomia. A comunicação com os outros, produzida por uma autocompreensão aumentada e para ela contribuindo, é o meio pelo qual a pessoa que padece de um vício torna-se capaz de supera-lo” (Giddens, 1996: 139). 
Embora importantes no resgate que fazem dos grupos de mutua ajuda, as análises de Giddens não abordam os grupos internamente. Ou seja, não analisam o conteúdo das práticas e narrativas produzidas no interior dos grupos. Creio assim, que para um correto entendimento da originalidade e importância dos grupos de mutua ajuda ser fundamental uma apreciação, ainda que inicial, dos conteúdos das narrativas produzidas pelos seus membros. Com isso podemos visualizar de que modo os grupos contribuem para a (re) construção da subjetividade. Para tanto é fundamental estabelecer o elo existente entre adicção, doença e pessoa, a partir da interpretação dos conteúdos narrativos expressos pelos membros dos grupos de mutua ajuda, em torno da experiência da doença da adicção.
Para efeito de interpretação selecionei a narrativa: “Quem é um adicto?”, extraída do Texto Básico da Irmandade Narcóticos Anônimos (N.A). A escolha dessa narrativa é estratégica, pois permite compreender como a adicção/doença, entendida como uma experiência vivida de modo dramático, é construída e legitimada intersubjetivamente, juntamente com a construção da noção de pessoa. A narrativa se apresenta, assim, como uma importante ferramenta de acesso à experiência, pois permite que se mantenha “o elo fundamental entre saber e contexto” (Rabelo, 1999: 75). Na narrativa de doença é possível captar o modo como os indivíduos vivenciam intensamente seus dramas, negociam e legitimam sua situação de doentes, ao mesmo tempo em que modulam sua subjetividade.
Aqueles de nós que encontram o Programa de Narcóticos Anônimos não precisam pensar duas vezes sobre: ‘Quem é um adicto?’ Nós sabemos! Nossa experiência é a seguinte. Como somos adictos, o uso de qualquer substância que altere nossa mente ou nosso humor provoca um problema em qualquer área da vida. A adicção é uma doença que envolve mais do que o uso de drogas. Alguns de nós acreditam que a nossa doença já estava presente muito antes de termos usado pela primeira vez (...) Não escolhemos nos tornar adictos. Sofremos de uma doença que se manifesta de maneiras anti-sociais, e que torna difícil a detecção, o diagnóstico e o tratamento (...) Nossa doença nos isolava das pessoas, a não ser quando estávamos obtendo, usando e arranjando maneiras e meios de conseguir mais. Hostis, ressentidos, egocêntricos e egoístas, nós nos isolávamos do mundo exterior (...) O mundo se estreitava e o isolamento tornou-se a nossa vida. Usávamos para sobreviver. Era a única maneira de viver que conhecíamos (...) Quando a nossa adicção era tratada como crime ou deficiência moral, nós nos rebelávamos e éramos confinados ainda mais em nosso isolamento. (...) Entendemos que não há nada de vergonhoso em ser um adicto, desde que aceitemos honestamente o nosso dilema e comecemos a agir positivamente. Estamos dispostos a admitir, sem reservas, que somos alérgicos a drogas. O bom-senso nos diz que seria insanidade voltarmos à fonte da nossa alergia. ( Narcóticos Anônimos, 1993: 3-5 - grifos meus)

O que ressalta na narrativa acima é a compreensão da adicção como uma doença, vivenciada como uma experiência-problema. Essa definição nos remete, para o fato de que a experiência da adicção é vivida como um problema; um distúrbio que rompe a atitude natural e exige dos indivíduos medidas normalizadoras, que lhes permitam desenvolver esquemas interpretativos que possam servir para reintegrá-la ao mundo da vida cotidiana. Isso explica inclusive a polissemia que envolve o par adicção/doença, uma vez que a profusão de sentidos aponta para o processo de negociação e legitimação vivido pelos adictos na tentativa de expressar, interpretar e comunicar suas experiências de aflição.
Nota-se que a adicção é apresentada como “uma doença que envolve muito mais que o uso de drogas”, que conduz o adicto a se isolar, rompendo os vínculos com os outros. Assim, embora o diagnóstico e o tratamento sejam difíceis, trata-se de “uma doença que se manifesta de maneiras anti-sociais”. Ou seja, a adicção é vivida como uma ruptura, que distancia o adicto do convívio social, desenvolvendo nele um comportamento “hostil, ressentido, egocêntrico e egoísta”: “o isolamento tornou-se a nossa vida”. Essa compreensão projeta a idéia de um mundo à parte, separado, “nossa doença nos isolava das pessoas (...) Era a única maneira de viver que conhecíamos”. O que é reforçado pela leitura moralista do problema da adicção, que a vê como uma “fraqueza de caráter” ou um “vício”, aprofundando ainda mais o isolamento.
Mas, como o par adicção/doença remete à construção da noção de pessoa? Um exame das metáforas presente na narrativa de adicção pode ser útil para responder a essa questão. Como aponta Paul Ricoeur (1976), as metáforas não são apenas ornamentos nos discursos, mas oferecem uma inovação semântica. Em particular, nas narrativas de doença as metáforas desempenham um papel central, permitindo aos indivíduos organizarem suas experiências subjetivas, de modo a transmiti-las aos outros: familiares, amigos, terapeutas, desencadeando, assim, uma série de atitudes condizentes com a nova situação.
As funções mentais e emocionais mais relevantes, como a consciência e a capacidade de amar, foram fortemente afetadas pelo nosso uso de drogas. Nossa habilidade de viver ficou reduzida ao nível animal. Nosso espírito estava em pedaços. Tínhamos perdido a capacidade de nos sentirmos humanos (...) Enquanto usávamos, vivíamos em outro mundo. Experimentávamos apenas pequenos períodos de realidade e de auto-consciência. Finalmente, parecia que éramos duas pessoas, e não uma - o médico e o monstro. Corríamos de um lado para o outro para recompor nossas vidas antes do próximo desvario. Às vezes, conseguíamos faze-lo muito bem, mas depois tornou-se cada vez menos importante e mais difícil. Por fim, o médico morreu e o monstro assumiu (...) Tivemos que chegar ao nosso fundo-de-poço antes de estarmos dispostos a parar. (Narcóticos Anônimos, 1993, 5-7)
A narrativa acima opera com três metáforas importantes para a compreensão da relação entre adicção, doença e pessoa. Trata-se fundamentalmente de um dilaceramento do eu, vivido pela imagem de um eu despedaçado, que se reduz ao “nível animal”. O par adicção/doença é vivido como um conflito que dilacera o sujeito, apontando para um distanciamento e um estranhamento em relação a si mesmo, comprometendo a própria humanidade do adicto. Esse conflito é vivido como uma luta interior entre “duas pessoas - o médico e o monstro”, remetendo à idéia de uma duplicidade interior; de que existe um Outro dentro de si mesmo, que não conseguimos controlar. Tal qual no clássico de Stevenson, Dr. Jekyll e Mr. Hyde, o eu aparece aqui cindido, dilacerado, dividido em duas metades em conflito entre si. A vivência deste conflito interior desemboca na imagem de que se chegou no “fundo-do-poço”, momento derradeiro, em que o “monstro venceu”. Todavia, a vitória do “monstro”, aponta para a morte simbólica do indivíduo soberano, idêntico a si mesmo, capaz de controlar a própria vida pela consciência e vontade.

As metáforas constituem, assim, num importante instrumento discursivo pelo qual os indivíduos constroem e expressam suas aflições, permitindo a elaboração de um sentido para suas experiências de doença. Com efeito, somos remetidos à noção da adicção entendida como uma doença incurável:
Como adictos, temos uma doença incurável chamada adicção. A doença é crônica, progressiva e fatal. No entanto, é uma doença tratável (...) Compreendemos que nunca estaremos curados e que conviveremos com a doença pelo resto de nossas vidas. Temos uma doença, mas nós nos recuperamos. A cada dia é-nos dada uma nova oportunidade. Estamos convencidos de que, para nós, só existe uma maneira de viver: o caminho de N.A. (Narcóticos Anônimos, 1993: 8-9)
Ser um adicto, portanto, remete à idéia de que se é portador de uma doença incurável, mas que pode ser detida. A doença aqui se confunde com o próprio eu, comprometendo sua integridade e sua centralidade. Trata-se agora de eu descentrado, que deve aprender a conviver com o Outro dentro de si mesmo. O caminho para esse aprendizado é um só: “o caminho de N.A”. O grupo de mutua ajuda se apresenta, assim, como alternativa à desintegração e fragmentação completa do sujeito, estabelecendo uma rede prático-discursiva, que permite configurar a experiência da adicção como uma doença “crônica, progressiva e fatal”, mas que é tratável e ao mesmo tempo permite a modulação e a construção da noção de pessoa.

O processo de recuperação implica na abstinência e na prática dos Doze Passos. No Primeiro Passo encontramos: “Admitimos que éramos impotentes perante nossa adicção, que nossas vidas tinham se tornado incontroláveis”. Fazer esse passo é condição necessária para o início da recuperação e significa admitir para o adicto, que há forças maiores que a consciência e a vontade. Nesse primeiro passo, o adicto, ao invés de afirmar “eu quero”, “eu posso”, “eu consigo”, tão ao gosto do egocentrismo, próprio à ideologia moderna, reconhece sua impotência. Esse passo implica, assim, um momento decisivo para o reconhecimento de que o sujeito não é um, mas antes múltiplo, pois há nele forças que o guiam e que o controlam independentes do ego, implicando num distanciamento da representação da pessoa moderna. Em outras palavras, trata-se de um distanciamento da concepção de indivíduo autônomo e soberano, centrado na consciência, próprio à tradição cartesiana e uma ênfase no aspecto relacional como constitutivo do próprio sujeito. É preciso, assim, admitir que existe um Outro dentro de si mesmo e que não o controlamos a partir de nossa vontade. Assim, em oposição à representação da pessoa individualizada, cujo centro está na consciência, a narrativa aponta para a alteridade como constitutiva do próprio sujeito. Com efeito, enquanto a representação individualista da noção pessoa ressalta o caráter egocêntrico do sujeito, aqui se trata de uma noção de pessoa cuja abertura para o Outro tem um papel central.
Admitir a impotência implica também estabelecer uma relação de rendição ao Poder Superior, tal como expresso no segundo passo: : “Viemos a acreditar que um Poder Maior do que nós mesmos poderia devolver-nos à sanidade.” A construção da noção de pessoa passa também por uma relação hierárquica entre o indivíduo e o Poder Superior. Com efeito, a identidade do adicto se constrói na relação existente entre o todo - Poder Superior - e a parte - adicto em recuperação: “Qualquer um que tenha o desejo de parar de usar pode tornar-se membro de N.A . Somos adictos e nosso problema é a adicção” (Narcóticos Anônimos, 1993: 71 - grifos meus). E aqui se coloca a importância do princípio do anonimato. Com efeito, o anonimato aponta para o fato irremediável de que se é portador de uma doença incurável e que a única forma possível de recuperação é através da rendição ao Poder Superior.
O apoio mútuo entre os membros da Irmandade é uma das chaves para o êxito do processo de recuperação. Pois é, na medida em que partilha suas experiências com outros adictos, que o membro de N.A reata um vínculo que tinha perdido com o Outro. O que é confirmado pelo Décimo Segundo Passo que afirma: “Tendo experimentado um despertar espiritual, como resultado destes passos, procuramos levar esta mensagem a outros adictos e praticar estes princípios em todas as nossas atividades”. Aquele que se sentia diferente dos outros pelo uso de drogas, e as usava para se diferenciar em tudo e se isolava por isso, descobre-se igual a muitos outros com o mesmo problema. Trata-se de uma relação de igualdade entre pessoas que se reconhecem como diferentes; outras em seu problema da adicção. É, portanto, no encontro das diferenças que se torna possível a emergência de uma relação mais igualitária, sem as pressões da culpa e da marginalidade social: “Quando nos identificamos como adictos, a ajuda torna-se possível. Podemos ver um pouco de nós mesmos em cada adicto e ver um pouco deles em nós” (Narcóticos Anônimos, 1993: 8)

A alteridade, inscrita simbolicamente na presença do Outro adicto em recuperação, funda a possibilidade de se pensar numa noção de pessoa descentrada, que passa agora a incorporar o Outro no seu interior. Com efeito, numa primeira aproximação creio que as práticas dos grupos de mutua ajuda sinalizam para uma sensibilidade social centrada no reconhecimento simbólico do Outro. Vistos desta forma pode-se dizer que os grupos de mutua ajuda pautam-se no seu interior por uma verdadeira ética da alteridade, na qual o apoio mútuo e a reciprocidade entre seus membros é a pedra de toque para a recuperação do adicto.

Referências Bibliográficas:
Alcoólicos Anônimos em sua comunidade. (1997) São Paulo, Junta de Serviços Gerais de Alcoólicos Anônimos no Brasil - JUNAAB [folder de apresentação].
Narcóticos Anônimos. (1993) (trad.) da quinta edição do livro Narcotics Anonymous, Narcotics Anonymous World Service, Inc. Chatsworth, Califórnia USA.
GIDDENS, Anthony. (1996) Para além da esquerda e da direita: o futuro da política radical., (trad.) Álvaro Hattnher, São Paulo: Editora da UNESP.
RABELO, Miriam Cristina M. (1999) Narrando a doença mental no nordeste de Amaralina: relatos como realizações práticas. In RABELO, Miriam Cristina M. Experiência de doença e Narrativa, Rio de Janeiro: FIOCRUZ.
RICOEUR, Paul. (1976) Teoria da interpretação: o discurso e o excesso de significação, Lisboa: Edições 70.

Edemilson Antunes de Campos
Autor do livro A tirania de Narciso: alteridade, narcisismo e política, São Paulo: Annablume/FAPESP, 2001, é doutorando em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e professor de antropologia da Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero e Centro Universitário Capital.


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